quinta-feira, 10 de junho de 2021

As troianas, Eurípides

As troianas, Eurípides, 415ac, 101 páginas, tradução de Mário da Gama Kury, Zahar. 

As troianas é uma peça que demonstra o horror da guerra, em especial para as mulheres. Após a derrocada de Troia, as mulheres troianas são divididas entre os gregos, para servirem de escravas ou amantes. A guerra é um desastre e uma tragédia e, parece-me, a guerra é uma “diversão” e fantasia masculina. Quem sabe, um mundo matriarcal não teria guerras. A peça é tragédia absoluta: só há sofrimento e desesperança. Não há consolo para as troianas, tampouco para nós nestes tempos sombrios que vivemos no país sem esperança. Um libelo contra a guerra e a violência, predominantemente masculina, de todas as épocas.



A peça começa com o lamento de Hécuba pela derrota da cidade. Diferentemente de outras peças, há dois coros (ou semicoros) compostos por mulheres troianas, cada um dos quais tendo como corifeu uma mulher. Há um coro de mulheres jovens e um coro de viúvas. 

“É insensata a criatura que se alegra / com um momento de felicidade e o julga / interminável, pois a sorte, sempre incerta, / é igual ao homem delirante que em seus transes / cai para um lado agora, depois para o outro. / Quem poderá dizer que sempre foi feliz?” 

Cassandra, profetisa e bacante, filha de Hécuba, foi escolhida por Agamenon. Ela sai de sua tenda em estado de delírio e, sendo virgem pois sacerdotisa de Apolo, anuncia suas “núpcias” e profetiza que será assassinada juntamente com Agamenon. A outra filha de Hécuba, Polixena, foi sacrificada em honra de Aquiles. 

Ouvem-se novamente os lamentos de Hécuba. Os coros exaltam Troia e recordam a artimanha do cavalo de madeira. 

Entram Andrômaca, a viúva do herói troiano Heitor, com o filho Astiânax. Andrômaca foi escolhida por Neoptólemo, filho de Aquiles. Ela pensa que partirá com o filho, porém Ulisses aconselhou aos gregos que o menino fosse morto para não se vingar no futuro. O mensageiro Taltíbio vem buscar a criança. 

Menelau chega para buscar Helena. Discute-se o castigo para Helena, a morte, e a sua culpa na guerra. Helena se defende e Hécuba a acusa e pede a morte de Helena. Menelau assegura que Helena será morta na Grécia, mas o futuro dela permanece incerto, por causa de sua beleza e sedução. 

Os coros lamentam Troia e o cativeiro. Taltíbio traz o corpo de Astiânax, que foi arremessado do alto das muralhas de Troia. Hécuba prepara o corpo do neto para o funeral; levam o corpo do menino. 

Troia em chamas, as cativas vão embarcar nos últimos navios gregos. Hécuba e os coros ajoelham-se e batem na terra para invocar os mortos. Depois, caminham para os navios.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Antígona, Sófocles

Antígona, Sófocles, século V a.C., 90 páginas, tradução de Mário da Gama Kury, Zahar. Lido em 27/05/2021.



Antígona é uma das tragédias que mais rende discussões e pontos de vista. Por isto, tão fascinante. Em Antígona, todos estão errados e todos estão certos – ou todas as posições geram conflitos. 

Após a morte de Édipo em Colono, Tebas entra em uma guerra civil. A guerra deriva do desentendimento entre Etéocles e Polinices, filhos de Édipo. Eles haviam concordado em dividir o poder na cidade: cada um reinaria um ano. Mas Etéocles recusou-se a devolver o trono a Polinices. Este procurou aliados em outras cidades e formou um exército para tomar o poder. 

Na batalha pela cidade, Polinices e Etéocles se matam mutuamente, e os deuses protegem a cidade, livrando-a dos inimigos. 

Creonte, irmão de Jocasta e tio dos irmãos mortos, frente ao vácuo de poder, assume o trono. Nós estamos muito distantes da cultura grega da época, mas devemos perceber que Creonte é um tirano no sentido grego: o tirano é alguém que assume o poder em situações excepcionais, mas que não deixa de lado a democracia e que pretende conduzir o governo para a volta à democracia (democracia grega, diferente do nosso entendimento). 

Creonte assume o poder e decide que Etéocles terá as honras fúnebres – pois defendia a cidade – enquanto o cadáver de Polinices será deixado exposto às aves e aos animais – visto que este tencionava destruir a cidade. 

Antígona, irmã dos dois mortos, decide que não vai se submeter às ordens de Creonte. Para ela, há uma ordenação maior, divina, e é necessário dar tratamento digno aos mortos. 

Creonte convoca os anciãos, como se fossem senadores, e comunica sua decisão. De certo modo, Creonte respeita um rito democrático. Todavia, ele desrespeita a cultura: a humanidade costuma honrar os corpos de seus mortos, independentemente de ordens divinas. 

Antígona desrespeita a lei civil, que considera menor que a lei divina (ou a cultura). Ela não questiona a legitimidade do poder de Creonte, mas se pode pensar que sub-repticiamente ela também desafia o poder do autoproclamado tirano-rei. 

O coro de anciãos parece ter medo de desafiar o novo rei. Um guarda, do corpo de guardas que foi encarregado de vigiar e garantir que o cadáver de Polinices não fosse enterrado, tem muito medo da ira do rei, e demonstra isso quando traz más notícias. 

Antígona exerceu honras fúnebres, incompletas até, ao corpo do irmão. Foi presa e levada para Creonte. Este a condena a uma morte indireta: ordena que seja aprisionada em uma caverna, mas com alguma comida. O filho de Creonte, Hêmon, namorado de Antígona, tenta convencer o pai do erro, mostrando que a população não concorda com a falta de respeito aos mortos e com a prisão de Antígona. Creonte não cede. 

Mais tarde, interpelado pelo adivinho Tirésias e aconselhado pelo coro de anciãos, decide reverter as ordens e enterrar Polinices e libertar Antígona. Mas é tarde: Antígona se matou na caverna. Creonte vai até lá e encontra o filho, Hêmon, que ataca o pai. Não consegue ferir Creonte, mas se mata, lançando-se sobre sua espada. Para completar a punição (dos deuses?) a Creonte, sua esposa também se mata ao saber da morte do filho. 

Observa-se como há riqueza de elementos nesta tragédia. Posso desafiar as leis civis em nome de crenças religiosas? E em nome da dignidade humana? E se as leis civis foram feitas de forma excepcional, em um período não de todo democrático? Polinices era um traidor? Etéocles foi um traidor? A maldição da família de Édipo foi responsável por todas as crises de Tebas? 

Muito foi escrito e pensado sobre Antígona e continuará sendo.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

A mão esquerda da escuridão, Ursula K. Le Guin, 1969

A mão esquerda da escuridão, Ursula K. Le Guin, 1969, 304 páginas, tradução de Susana Alexandria, Aleph.



Excepcional história de Le Guin. Ficção científica ampla, sem a estreiteza comum nesta área. Le Guin conta uma história que trata de sexualidade, patriotismo, preconceito, empatia, amor, companheirismo, política, aventura. 

A autora criou um planeta inteiro, com seus mitos, países, costumes, tradições, geografia, clima. Um trabalho admirável. 

Diferentemente dos autores famosos e suas branquitudes, Bradbury, Asimov, Orwell e outros, um dos personagens principal é negro e outro não tem gênero definido. Sim, pois no planeta Gethen, os humanos somente assumem um gênero em determinado período do mês, o kemmer. Neste período, os humanos procuram outro ser na mesma fase de kemmer e juntam-se. O kemmering pode ser para toda a vida ou apenas naquele período. 

O romance traz, também, vislumbres sobre o misticismo e as religiões de Gethen, bem como a vida rural e urbana. Vale muito a pena ler Ursula K. Le Guin. 

Breve resumo. 

Capítulo 1. No planeta Inverno (ou Gethen), Genly Ai é o enviado da Ekumen, uma aliança de planetas. O enviado vai convidar Gethen a participar da aliança. Ele está em Erhenrang, capital do reino de Karhide; o rei se chama Argaven XV; o Ouvido do Rei, uma espécie de primeiro-ministro é Estraven; o primo do rei é Tibe; kyoremy é o parlamento do país. Os humanos do planeta não têm gênero definido.

Capítulo 2. Conta-se uma história antiga de Gethen sobre dois irmãos em kemmering (um tipo de casamento) e que foram proibidos de permanecer juntos após o parto de um filho deles. Suicídio e maldições, a história me fez pensar em Édipo Rei. 

Capítulo 3. O primeiro-ministro Estraven foi acusado de traição e expulso do país, em seu lugar ficou Tisbe. Genly Ai se encontra com o rei mas não o convence a aceitar a aliança de planetas. 

Capítulo 4. Conta-se história antiga sobre os Retiros e os Vaticínios. Como nos oráculos gregos, as respostas são dúbias. 

Capítulo 5. Genly Ai viaja pelo interior de Karhide para conhecer os Retiros e os Videntes. 

Capítulo 6. Estraven narra sua fuga para Orgoreyn. 

Capítulo 7. Notas sobre a sexualidade dos gethenianos. 

Capítulo 8. Genly Ai viaja para Orgoreyn. 

Capítulo 9. Conta a história do jovem Estraven. 

Capítulo 10. Estraven visita Genly na capital de Orgoreyn. Genly é apresentado aos políticos do país. 

Capítulo 11. Estraven medita sobre os acontecimentos envolvendo a chegada de Genly ao planeta. 

Capítulo 12. Sobre o culto à Meshe. 

Capítulo 13. Genly é traído pelos políticos de Orgoreyn e enviado para uma fazenda prisão no interior do país. 

Capítulo 14. Estraven consegue resgatar Genly da fazenda. 

Capítulo 15. Genly muito fraco. Estraven organiza a fuga dos dois para Karhide por uma região gelada. 

Capítulo 16. A odisseia de cruzar gelo, montanhas e vulcões. 

Capítulo 17. Mito sobre a criação da humanidade. 

Capítulo 18. Continua a travessia gelada. 

Capítulo 19. Conseguem chegar ao interior de Karhide. São denunciados. Estraven tenta atravessar a fronteira para Orgoreyn e é morto. 

Capítulo 20. Genly é levado para a capital de Karhide. Os governos dos dois países são substituídos. O rei Argaven aceita a aliança com o Ekumen. A nave do Ekumen desce em Karhide. Os representantes do Ekumen começam a trabalhar em prol das relações entre Gethen e os demais planetas. Genly visita a família de Estraven.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Livros lidos em maio 2021

Total de livros lidos no ano: 53 livros. 

Lidos em MAIO 2021 

1 – Ninfeias negras, Michel Bussi, 346 páginas, tradução de Fenanda Abreu

2 – A noiva jovem, Alessandro Baricco, 177 páginas, tradução de Joana Angélica d'Ávila Melo

3 – O Homem Ilustrado, Ray Bradbury, 320 páginas, tradução de Eric Novello

4 – Morte e vida severina e outros poemas, João Cabral de Melo Neto, 143 páginas

5 – Felicidade clandestina, Clarice Lispector, 160 páginas

6 – A mão esquerda da escuridão, Ursula K. Le Guin, 304 páginas, tradução de Susana Alexandria

7 – Antígona, Sófocles, 90 páginas, tradução de Mário da Gama Kury

8 – O diário de um mago, Paulo Coelho, 246 páginas

9 – Apocalipse, 26 páginas


Lidos em ABRIL 2021 

1 – Édipo Rei, Sófocles, 125 páginas, tradução de Mário da Gama Kury

2 – O diabo no corpo, Raymond Radiguet, 136 páginas, tradução de Paulo César de Souza

3 – Novembro de 63, Stephen King, 727 páginas, tradução de Beatriz Medina

4 – Utopia, Thoma More, 216 páginas, tradução de Denise Bottmann

5 – Livro de Rute, 5 páginas, na tradução da Bíblia de Jerusalém

6 – A paciente silenciosa, Alex Michaelides, 349 páginas, tradução de Clóvis Marques

7 – Édipo em Colono, Sófocles, 125 páginas, tradução de Mário da Gama Kury

8 – Shakespeare, Claude Mourthé, 240 páginas, tradução de Paulo Neves

 

Lidos em MARÇO 2021 

1 – O caderno rosa de Lori Lamby, Hilda Hilst, 86 páginas

2 – Doze contos peregrinos, Gabriel García Márquez, 256 páginas, tradução de Eric Nepomuceno

3 – O sol é para todos, Harper Lee, 349 páginas, tradução de Beatriz Horta

4 – O tempo desconjuntado, Philip K. Dick, 267 páginas, tradução de Braulio Tavares

5 – Livro de Josué, 33 páginas, tradução da Bíblia de Jerusalém

6 – Livro de Judite, 18 páginas, tradução da Bíblia de Jerusalém

7 – Matadouro-Cinco, Kurt Vonnegut, 228 páginas, tradução de Daniel Pellizzari

8 – Estamos todos completamente transtornados, Karen Joy Fowler, 331 páginas, tradução de Geni Hirata

9 – Antônio e Cleópatra, William Shakespeare, 174 páginas, tradução de Beatriz Viégas-Faria

10 – Juízes, 36 páginas, tradução da Bíblia de Jerusalém

11 – O fim da eternidade, Isaac Asimov, 256 páginas, tradução de Susana Alexandria

12 – Livro de Ester, 15 páginas, tradução da Bíblia de Jerusalém

13 – A escrava Isaura, Bernardo Guimarães, 176 páginas

 

Lidos em FEVEREIRO 2021 

1 – Medeia, Eurípides, 98 páginas, tradução Mário da Gama Kury

2 – O conto da aia, Margaret Atwood, 368 páginas, tradução Ana Deiró

3 – A tempestade, William Shakespeare, 116 páginas, tradução Beatriz Viégas-Faria

4 – O Senhor das Moscas, William Golding, 217 páginas, tradução Geraldo Galvão Ferraz

5 – A outra volta do parafuso, Henry James, 199páginas, tradução Paulo Henriques Britto

6 – A fazenda dos animais, George Orwell, 133 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto

7 – Vida querida, Alice Munro, 316 páginas, tradução de Caetano Galindo

8 – Pequeno-burgueses, Maksim Górki, 190 páginas, tradução de Lucas Simone

9 – Kindred, Octavia E. Butler, 424 páginas, tradução de Carolina Caires Coelho

10 – Noite na taverna, Álvares de Azevedo, 73 páginas

11 – Piquenique na estrada, Arkádi Strugátski e Boris Strugátski, 320 páginas, tradução de Tatiana Larkina

 

Lidos em JANEIRO 2021 

1. Mrs. Dalloway, Virginia Woolf, 228 páginas, tradução de Claudio Alves Marcondes

2. 1Q84, volume 3, Haruki Murakami,469 páginas, tradução de Lica Hashimoto

3. Macbeth, William Shakespeare, 133 páginas, tradução de Bárbara Heliodora

4. Mundo Fantasmo, Braulio Tavares, 125 páginas

5. O amante, Marguerite Duras, 128 páginas, tradução de Denise Bottmann

6. Deuteronômio, 48 páginas

7. Drácula, Bram Stoker, 638 páginas, tradução de José Francisco Botelho

8. A espinha dorsal da memória, Braulio Tavares, 223 páginas

9. Le Horla, Guy de Maupassant, 35 páginas

10. Bartleby, o escriturário, Herman Melville, 95 páginas, tradução de Luís de Lima

11. O colecionador, John Fowles, 343 páginas, tradução de Antônio Tibau

12. Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, Nikolai Leskov, 95 páginas, tradução de Paulo Bezerra

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Felicidade clandestina, Clarice Lispector, 1971

Felicidade clandestina, Clarice Lispector, 1971, 160 páginas, Rocco. Início: 18/05/2021 – Fim: 19/05/2021. Nota 2 (Regular).


Livro bem rápido de ler, contos curtos, uns poucos memoráveis, alguns bem fracos. O livro dá a impressão de ter sido alinhavado entre textos esquecidos nas gavetas – apesar dos dois ou três contos mais marcantes, que fazem valer a pena a leitura do livro.

Resumo dos contos.

Felicidade clandestina. Uma menina no Recife anseia pelo livro “Reinações de Narizinho” que uma amiguinha prometeu emprestar. Ótimo conto, o amor aos livros, a ansiedade por ter em mãos um livro desejado; é bom ouvir sobre Monteiro Lobato sem esse olhar torto atual. 

Restos do carnaval. Uma menina no Recife anseia pelos três dias de carnaval, embora para ela o carnaval é olhar o carnaval da porta do sobrado onde mora. Até que um certo domingo de carnaval, ela consegue uma fantasia de papel crepom. Muito bom. 

Come, meu filho. Criança tenta enrolar a mãe para não comer. 

Perdoando Deus. Mulher em Copacabana passa por uma epifania que é cortada abruptamente. 

Com anos de perdão. Menina que rouba rosas e pitangas. 

Uma esperança. O inseto verde que entra na sala da casa da narradora. 

A criada. Observação de uma jovem empregada doméstica ensimesmada. 

Menino a bico de pena. Um bebê, sua completa dependência da mãe, suas tentativas de comunicação. Muito bom. 

Uma história de tanto amor. Uma menina que amava muito suas galinhas. 

As águas do mundo. As sensações de uma mulher ao entrar no mar, isolada, mal nasce o dia. 

Encarnações involuntárias. Uma mulher que exerce o mimetismo compulsoriamente. 

Duas histórias a meu modo. Fraco exercício de escrita no qual a autora reconta uma história de outro autor. 

O primeiro beijo. Garoto conta à primeira namorada como foi seu primeiro beijo, sutil descoberta da masculinidade.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

O Homem Ilustrado, Ray Bradbury, 1955

O Homem Ilustrado, Ray Bradbury, 1955, 320 páginas, tradução de Eric Novello, Biblioteca Azul. Nota 2 (Regular).



Bradbury juntou vários contos que já publicara e alinhavou com o personagem do Homem Ilustrado, um cara com o corpo cheio de figuras “mágicas”, onde cada figura mostra uma história ao observador. As histórias todas encontram-se no campo da ficção científica. 

Livro fácil e rápido de ler, embora irregular, e na maior parte com contos curtos. Há poucos contos realmente bons. 

O que mais me incomoda nesses contos de Bradbury é a constância de mulheres subalternas, donas de casa e mães, enquanto os maridos estão na vida. Também a insistência em peles brancas, olhos e cabelos claros nas descrições. E, apesar de serem contos “espaciais”, a Terra não é a Terra e sim apenas os Estados Unidos. Só os Estados Unidos importam. Há uma evidente militarização do espaço, não há cientistas, apenas capitães e tenentes e armas. Em qualquer planeta desconhecido, os machos soldados estadunidenses descem de armas em punho. E todos fumam, claro. 

Sob o aspecto da ciência, Bradbury ignora as impossibilidades de vida humana em planetas inóspitos: seus personagens circulam por Marte e Vênus como se estivessem em uma Greenville estadunidense. Ademais, é tudo perto, Marte é um pulo e habitado por marcianos muito semelhantes aos terráqueos. 

Muitos contos, é evidente, são metáforas de problemas terrestres, mas isso não os torna melhores. Bradbury diz que “o Homem Ilustrado esconde metáforas prestes a explodir.” 

Breve resumo. 

Prólogo. Um caminhante encontra-se com o Homem Ilustrado; as figuras foram tatuadas em seu corpo por uma mulher que, diz o Homem, deve ter vindo do futuro. 

A savana. Bradbury: “E se você pudesse criar um mundo dentro de uma sala, que quarenta anos depois seria chamado de primeira realidade virtual, e colocasse uma família nessa sala, cujas paredes poderiam afetar suas mentes e induzir a pesadelos?” É um dos bons contos do livro: uma sala de realidade virtual para as crianças da casa. Crianças mal-educadas que se revelam cruéis. 

Caleidoscópio. Um foguete é atingido por meteoritos e explode; os ocupantes são arremessados ao espaço em movimento de expansão. Parece que inspirou aquele filme “Gravidade”. 

O jogo virou. Negros (dos Estados Unidos) fugiram da Terra (leia-se Estados Unidos) para morar em Marte e agora está chegando o primeiro foguete da Terra com o primeiro branco em décadas. 

A estrada. Notícias esparsas de uma distante guerra atômica chegam a um lugarzinho esquecido do mundo. 

A longa chuva. Uma chuva constante e enlouquecedora afeta os tripulantes de uma nave que caiu em Vênus. 

O homem do foguete. Um homem viciado no espaço. Ele tenta permanecer na Terra mas não consegue, não importam para ele o filho e a esposa. 

A última noite do mundo. Todas as pessoas sonharam o mesmo sonho: o mundo vai acabar naquela noite. 

Os exilados. A ciência expulsou a magia, a fantasia, os livros foram queimados. Poe, Shakespeare, Dickens estão todos em Marte. 

Nenhuma noite ou manhã específica. Em uma nave distante da Terra, o niilismo absoluto: não é possível provar que algo existe. 

A raposa e a floresta. Casal de 2155 viaja no tempo para passar férias em 1938, tentam permanecer no passado, mas é obrigatório voltar para casa. 

O visitante. Marte é o leprosário da Terra e para lá são enviados aqueles atacados por uma peste, uma espécie de Morte Rubra. 

O misturador de concreto. Marte invade a Terra. Metáfora esnobe sobre a alta cultura subjugada e derrotada pela cultura popular estadunidense. 

Marionetes, S.A. Marido compra uma cópia mecânica perfeita de si mesmo para ter algum tempo livre enquanto a cópia fica com a esposa dele. Parece que inspirou aquele filme “O sexto dia”. 

A cidade. Faz pensar em H. P. Lovecraft. Uma cidade mecânica e inteligente que espera há milênios para se vingar dos terráqueos. 

Hora zero. Por meio das crianças, seres incorpóreos promovem a invasão e o extermínio dos humanos. 

O foguete. Imaginação e fantasia: um pai constrói um foguete de ferro-velho e leva os filhos para férias espaciais. 

O Homem Ilustrado. Conta como o Homem Ilustrado conseguiu suas figuras e as consequências advindas. 

Epílogo. O caminhante foge do Homem Ilustrado.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Édipo Rei, Sófocles

Édipo Rei, Sófocles, século V a.C., 125 páginas, tradução de Mário da Gama Kury, Zahar. Lido entre 01/04/2021 e 04/04/2021. Nota 3 (Bom).



A peça é famosa; quase todos conhecem o enredo do rapaz que mata o pai e casa com a mãe, sem saber que é filho de ambos. Oráculos profetizaram que o menino faria isso. Os mortais tentam evitar que a profecia se cumpra. Não conseguem. A peça mostra que os mortais não podem fugir ao destino que lhes foi traçado pelos deuses. 

A peça começa quando Tebas enfrenta uma época de peste e acontecimentos nefastos. Durante a peça, gradativamente, o leitor será informado pelos personagens acerca dos acontecimentos prévios. 

Laio e Jocasta, rei e rainha de Tebas, receberam a profecia de que o filho de ambos mataria o pai e casaria com a mãe. Para evitar isso, Laio manda jogar a criança de um precipício. O servo não executa a ordem e entrega a criança a um pastor de Corinto. Este entrega a criança ao rei e rainha de Corinto que a adotam como filho. O jovem Édipo vai ao oráculo e recebe a mesma profecia. Por isso, evita voltar a Corinto para não matar o “pai”. Em uma estrada, briga com um homem e o mata: era Laio, pai dele. Em seguida, Édipo decifra o enigma da esfinge, ser que atormentava a vida dos habitantes de Tebas. Ao chegar à cidade e contar da destruição da esfinge, entregam-lhe o trono da cidade e o casamento com a rainha Jocasta, que ele não sabia ser sua mãe. Édipo tem quatro filhos com Jocasta. A peça começa neste ponto. 

O rei Édipo vai às portas de Tebas ouvir os suplicantes que portam ramos. Sempre os ramos, ramos de Baco, de Judite, de Jesus, procissão de ramos. Tebas está totalmente transtornada. Há uma peste, os campos e as mulheres, estéreis. Creonte, cunhado de Édipo, consultou o oráculo de Delfos e está de volta. O oráculo disse que o assassino de Laio, antigo rei de Tebas, está na cidade. É necessária vingança. Édipo garante que vai encontrar o assassino. 

O profeta Tirésias não quer revelar quem é o assassino de Laio. Édipo insiste. Tirésias declara: tu és um maldito aqui, tu és o assassino que procuras, tuas relações torpes e sacrílegas são a causa da peste. Édipo acha que isso é uma armação de Tirésias com Creonte, irmão de Jocasta: Creonte tramou a minha queda. Jocasta intercede por Creonte. Jocasta afirma que os oráculos se enganam. Jocasta conta que Laio traspassou os tornozelos do filho e mandou jogá-lo do precipício por causa dos oráculos. Jocasta: Laio tinha traços teus. 

Édipo compreende quem é: lancei maldições contra mim mesmo. Édipo percebe que matou Laio, mas ainda não compreendeu tudo. Jocasta diz que não acredita mais em presságios. O coro reclama da descrença, como se os oráculos não valessem nada, pois perde-se a reverência aos deuses. Jocasta: os oráculos erraram porque o pai de Édipo, Pôlibo morreu de causas naturais. Édipo, em dúvida, concorda. E sobre a mãe de Édipo, ela diz: muitos mortais em sonhos já subiram ao leito materno. 

O mensageiro de Corinto diz que Édipo não é filho de Pôlibo e conta a história da criança. Jocasta: não penses nisto. Ela foge para o palácio, já compreendeu a terrível situação, Édipo ainda não. O coro ainda não viu a verdade e tem um momento de júbilo, o júbilo antes da catástrofe. O servo encarregado de matar a criança confessa que não o fez. 

Édipo compreende a extensão do drama. Jocasta se suicida, enforca-se. Édipo fura os olhos com os broches de ouro dela. Édipo não se matou, declara, porque não suportaria ver o pai e a mãe no outro mundo. Édipo pede a Creonte que zele por suas filhas. Pede para ser exilado, mas Creonte não permite, quer consultar os deuses sobre o que fazer. Édipo: os deuses me odeiam.

Édipo em Colono, Sófocles

Édipo em Colono, Sófocles, século V a.C., 125 páginas, tradução de Mário da Gama Kury, Zahar. Lido entre 17/04/2021 e 20/04/2021. Nota 3 (Bom).

Édipo em Colono – Jean Harriet Fulchran – 1798

Guiado por Antígona, Édipo, envelhecido e cego, chega a Colono, pequena localidade situada a três quilômetros da Acrópole (hoje, Colono é um bairro de Atenas, completamente urbano). Ele faz uma pausa em um bosque sagrado dedicado às Erínias. 

Depois de alguns anos em Tebas, Édipo foi expulso da cidade por seu filho mais velho, Polinices, rei da cidade. Desde então, Édipo vaga como um mendigo, com a ajuda da filha Antígona. 

Etéocles, o irmão mais novo de Polinices, com apoio da população, assume o governo de Tebas. Polinices foge, procura aliados e forma um exército para atacar Tebas. No ínterim, oráculos profetizam que o lugar onde Édipo morrer será favorecido pelos deuses. Éteocles, então, manda o tio Creonte e soldados buscarem Édipo onde ele estiver, à força, se necessário, e trazê-lo para morrer nas imediações de Tebas – a cidade continua proibida para Édipo. 

Toda esta trama se desenrola nas margens da peça e dela nós saberemos aos poucos, pela chegada dos personagens que vêm de Tebas. 

Inicialmente, chega Ismene, a outra filha de Édipo, para avisar que Creonte está vindo para buscá-lo. Creonte chega, captura as duas filhas e tenta levar Édipo. Todavia, Teseu, rei de Atenas, havia colocado Édipo sob sua proteção, e impede a captura de Édipo e traz de volta Antígona e Ismene. 

A seguir, Polinices, que expulsou Édipo, vem pedir a ajuda do pai na luta contra o irmão. Édipo amaldiçoa os dois filhos e profetiza que eles se matarão um ao outro. Nota-se que, a partir de certo ponto de sua vida, Édipo começou a profetizar e a perceber os sinais dos deuses, uma característica dos cegos na mitologia grega. Polinices pede a Antígona que lhe providencie um funeral adequado, quando ele morrer. 

Édipo sente que a morte se aproxima. Acompanhado apenas de Teseu, vai à entrada do Hades e é levado, sem passar pelos padecimentos da morte, aparentemente. A cidade de Atenas fica, então protegida e favorecida por Édipo e pelos deuses. 

As filhas de Édipo iniciam seu retorno a Tebas, para tentar “deter a marcha da carnificina” entre os irmãos. 

A peça tem muitas argumentações sobre a velhice e a culpa. Édipo afirma não ter culpa dos crimes cometidos, visto que agia sem saber a verdade sobre os pais. A peça demonstra que os humanos são marionetes nas mãos dos deuses. As Erínias, as deusas vingadoras, estão presentes na origem e no desenrolar dos acontecimentos. Édipo foi punido durante sua vida após os crimes e, ao final, parece contar com a benevolência de Zeus. 

Cabe um adendo sobre as deusas pavorosas: 

As Erínias desempenham relevante papel na trajetória de Édipo, sem aparecer. Em Colono, Édipo chega ao bosque consagrado a elas, as deusas que não podem ser nomeadas. As Erínias são chamadas, então, de “as Benevolentes”, Eumênides, para evitar o epíteto tenebroso. São as Fúrias dos romanos. Fazem parte do grupo mais antigo de deuses e portanto não reconhecem a autoridade dos deuses mais jovens. Sua função essencial é a vingança dos crimes, especialmente os crimes cometidos contra a família. Neste sentido, desempenham papel importante nas maldições que pesaram sobre Édipo. 

Também castigam a hybris (húbris: excesso) dos humanos (o excesso de orgulho, presunção e arrogância, especialmente contra os deuses) que levam o homem a esquecer que é mortal. Elas impedem os adivinhos e profetas de revelar o futuro com demasiada precisão, impedindo-os de tirar os humanos da incerteza em que se encontram. 

Uma das suas funções essenciais é castigar os assassinos, mesmo os involuntários. Os homicidas são banidos e vagam errantes até o momento em que se aceita purificá-los. 

Enfim, esta peça parece ser menos conhecida que as duas outras da Trilogia Tebana, mas é de fácil leitura, traz profundas discussões, e faz compreender melhor o destino de Édipo e o fechamento da tragédia com Antígona.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Livros lidos em ABRIL 2021

Total de livros lidos no ano até agora: 44 livros

Édipo em Colono

Lidos em ABRIL 2021

1 – Édipo Rei, Sófocles, 125 páginas, tradução de Mário da Gama Kury

2 – O diabo no corpo, Raymond Radiguet, 136 páginas, tradução de Paulo César de Souza

3 – Novembro de 63, Stephen King, 727 páginas, tradução de Beatriz Medina

4 – Utopia, Thoma More, 216 páginas, tradução de Denise Bottmann

5 – Livro de Rute, 5 páginas, na tradução da Bíblia de Jerusalém

6 – A paciente silenciosa, Alex Michaelides, 349 páginas, tradução de Clóvis Marques

7 – Édipo em Colono, Sófocles, 125 páginas, tradução de Mário da Gama Kury

8 – Shakespeare, Claude Mourthé, 240 páginas, tradução de Paulo Neves

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Lidos em MARÇO 2021

1 – O caderno rosa de Lori Lamby, Hilda Hilst, 86 páginas

2 – Doze contos peregrinos, Gabriel García Márquez, 256 páginas, tradução de Eric Nepomuceno

3 – O sol é para todos, Harper Lee, 349 páginas, tradução de Beatriz Horta

4 – O tempo desconjuntado, Philip K. Dick, 267 páginas, tradução de Braulio Tavares

5 – Livro de Josué, 33 páginas, tradução da Bíblia de Jerusalém

6 – Livro de Judite, 18 páginas, tradução da Bíblia de Jerusalém

7 – Matadouro-Cinco, Kurt Vonnegut, 228 páginas, tradução de Daniel Pellizzari

8 – Estamos todos completamente transtornados, Karen Joy Fowler, 331 páginas, tradução de Geni Hirata

9 – Antônio e Cleópatra, William Shakespeare, 174 páginas, tradução de Beatriz Viégas-Faria

10 – Juízes, 36 páginas, tradução da Bíblia de Jerusalém

11 – O fim da eternidade, Isaac Asimov, 256 páginas, tradução de Susana Alexandria

12 – Livro de Ester, 15 páginas, tradução da Bíblia de Jerusalém

13 – A escrava Isaura, Bernardo Guimarães, 176 páginas


Lidos em FEVEREIRO 2021

1 – Medeia, Eurípides, 98 páginas, tradução Mário da Gama Kury.

2 – O conto da aia, Margaret Atwood, 368 páginas, tradução Ana Deiró.

3 – A tempestade, William Shakespeare, 116 páginas, tradução Beatriz Viégas-Faria.

4 – O Senhor das Moscas, William Golding, 217 páginas, tradução Geraldo Galvão Ferraz

5 – A outra volta do parafuso, Henry James, 199páginas, tradução Paulo Henriques Britto

6 – A fazenda dos animais, George Orwell, 133 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto

7 – Vida querida, Alice Munro, 316 páginas, tradução de Caetano Galindo

8 – Pequeno-burgueses, Maksim Górki, 190 páginas, tradução de Lucas Simone

9 – Kindred, Octavia E. Butler, 424 páginas, tradução de Carolina Caires Coelho

10 – Noite na taverna, Álvares de Azevedo, 73 páginas

11 – Piquenique na estrada, Arkádi Strugátski e Boris Strugátski, 320 páginas, tradução de Tatiana Larkina


Lidos em JANEIRO 2021

1. Mrs. Dalloway – Virginia Woolf (leitura iniciada em dezembro), 228 páginas

2. 1Q84, volume 3 – Haruki Murakami,469 páginas

3. Macbeth – William Shakespeare, 133 páginas

4. Mundo Fantasmo – Braulio Tavares, 125 páginas

5. O amante – Marguerite Duras, 128 páginas

6. Deuteronômio, 48 páginas

7. Drácula – Bram Stoker, 638 páginas

8. A espinha dorsal da memória – Braulio Tavares, 223 páginas

9. Le Horla – Guy de Maupassant, 35 páginas

10. Bartleby, o escriturário – Herman Melville, 95 páginas

11. O colecionador – John Fowles, 343 páginas

12. Lady Macbeth do distrito de Mtzensk – Nikolai Leskov, 95 páginas

terça-feira, 27 de abril de 2021

Shakespeare, Claude Mourthé

Shakespeare, Claude Mourthé, 2007, 240 páginas, tradução de Paulo Neves, L&PM. Início: 20/04/2021 – Fim: 25/04/2021. Nota 2 (Regular).



Como tudo que se refere ao Bardo de Avon está envolto em névoa, este é um livro repleto de “talvez”, “possivelmente”, e muitas ilações não fundamentadas. William Shakespeare nasceu em 23 de abril de 1564 e morreu, aos cinquenta e dois anos, em 23 de abril de 1616. 

O que se sabe sobre Shakespeare é pouco e embasado em alguns documentos. Tem-se o batismo; o casamento aos dezoito anos; o nascimento dos filhos, Suzanna e os gêmeos Judith e Hamnet; a morte de Hamnet aos onze anos; a morte dos pais do Bardo; o casamento das filhas; os sonetos e suas peças; sua participação no mundo do teatro; as casas que comprou; sua morte em Stratford-upon-Avon. 

Isso é praticamente tudo. Quase todo o resto é suposição. 

Decorre que este livro traz as informações básicas, um panorama de Londres na época elisabetana, e muita imaginação sobre a vida do Bardo. Também discorre sobre muitas das peças, inclusive com longas citações de trechos relevantes. O autor nos diz quanto custava a entrada do teatro, um penny, e o salário diário de um trabalhador, seis pence. As sessões transcorriam entre as três e as seis da tarde e o ambiente do teatro era aquela confusão que a gente assiste em alguns filmes de época. 

É um livro interessante, lê-se rapidamente, mas não há muita informação a ser dita sobre a vida de Shakespeare. Melhor assim. O essencial do Bardo é o que ele escreveu. 

Resumo. 

Uma graciosa cidadezinha: mostra a cidade de Stratford.

Controle de identidade: informações biográficas documentadas.

Os anos obscuros: não se sabe o que WS fez entre o casamento e as primeiras peças em Londres. O autor dá uma pincelada nas vidas de Henrique VIII (1491 – 1547) e sua filha Elizabeth (1533 – 1603).

My gentle Shakespeare: a peste fecha os teatros, William retorna a Stratford e publica poesias.

Uma rainha de teatro: o teatro elisabetano e as peças mais sombrias de Shakespeare.

Todos em cena: os teatros rudimentares, o povo e a classe média, os trajes e o raro cenário.

Um teatro nacional e popular: as companhias, os lucros, as inimizades entre autores, a pirataria dos textos.

Uma jornada na vida do Bardo: o autor imagina como seria um dia comum na vida de Shakespeare.

Shakespeare e as mulheres: somente perguntas e talvez isso, talvez aquilo.

Teatro do ambíguo: ambiguidades sexuais nas peças do Bardo.

Sonetos no ponto culminante: os 154 sonetos de Shakespeare, alguns deles eróticos.

Cor da pele: sobre Otelo e Shylock

Ser ou não ser Hamlet: sobre esta peça.

O teatro e o infinito: continua a discorrer sobre Hamlet.

Shakespeare e o sobrenatural: as feiticeiras em Macbeth, os fantasmas das peças.

Os mistérios de Londres: capítulo inútil sobre maçonaria e sociedades secretas; ilações. A tempestade.

Fugindo do barril de pólvora: o atentado fracassado de Guy Fawkes; Shakespeare retorna a Stratford.

Uma morte alegre: o autor se refere a Shakespeare como velho, mas o Bardo só tinha 52 anos; o autor imagina que a morte dele se deu após uma noite de farra com amigos.

Posteridade de Shakespeare: as montagens das peças, os filmes.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Utopia é uma distopia

Utopia, Thomas More, 1516, 216 páginas, tradução de Denise Bottmann, Penguin Companhia. Lido entre 06/04/2021 e 16/04/2021. Nota 2 (Regular).



Thomas More nasceu em 1478, foi conselheiro de Henrique VIII, negou-se a rejeitar o catolicismo, foi preso na Torre de Londres, declarado traidor e decapitado. Depois de uns quatrocentos anos, foi transformado em santo. Certamente, não valeu a pena perder a cabeça para virar santo. E hoje, a briguinha entre católicos e anglicanos é nada: são seitas amiguinhas. O grande interesse das religiões é influência, poder e dinheiro. Tolo é aquele que perde a cabeça para defender crenças infantis e aquele que se mete na briga dos poderosos. Religião, política e futebol é somente grana, briga de cachorro grande: os aficionados são bucha de canhão. 

O livro. 

A ilha de Utopia é uma distopia. 

Isto é o mais espantoso para quem, como eu, nunca havia lido o livro de More. O pouco que eu sabia do livro se misturava a um pouco de imaginação. Eu imaginava uma ilha onde a vida seria um paraíso na terra, tudo funcionaria, todos felizes. Ora, o que é que se imagina como uma utopia? 

Thomas More criou a palavra utopia, cujo significado original em grego, “lugar nenhum”, se expandiu para “lugar ou sociedade ideal, de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos”. Mas temos também como sinônimo de utopia: quimera, fantasia, fábula. 

Daí, que o leitor ingênuo vai ler a Utopia de More e se depara com uma sociedade distópica, um lugar onde “se vive em condições de extrema opressão”. Talvez, para More, a ilha de Utopia seja um lugar ideal para viver. É uma visão ingênua e distorcida do autor. 

Desse modo, curiosamente, Thomas More criou, ao mesmo tempo a utopia e a distopia. Vou listar aqui algumas das características principais que fazem da ilha de Utopia um péssimo lugar para viver (cabe observar, antes, que a ilha de Utopia é um tipo de comunismo: não há dinheiro nem comércio, tudo é de todos, e todos são vigiados). 

Características distópicas da ilha de Utopia: 

- Moradores da cidade e do campo são obrigados a mudar de lugar periodicamente entre as localidades.

- Dentro da cidade em que habitam, os moradores são obrigados a mudar de casa a cada dez anos.

- O dia e as atividades cotidianas são rigidamente determinadas, inclusive o parco lazer, a hora de dormir e a quantidade de horas de sono.

- Escravos fazem as tarefas “sujas”; somente as mulheres cozinham.

- Os habitantes são deslocados de acordo com a necessidade do estado, caso haja sub ou superpopulação em algum lugar.

- Todos são vigiados por todos, e os jovens são especialmente vigiados.

- Para viajar, é preciso autorização e data de retorno.

- Uma vez por mês, as esposas devem se ajoelhar diante dos maridos para confessar os pecados. Deduz-se que os maridos não têm pecados porque não existe o mesmo dever para eles.

 

Portanto, vê-se que a Utopia de Thomas Mores nada tem de utopia; é, sim, uma sociedade militaresca, rígida, fanática, ortogonal.

 

Segue o resumo dos pontos principais do livro. 

Livro 1 

O autor viaja e passa por Bruges e Antuérpia. Conhece um homem que se chama Rafael Hitlodeu (fornecedor de absurdos, em grego). Português, Hitlodeu se juntou a Américo Vespúcio – não se fala de Colombo – e viajou por Ceilão, Calicute e pela América. Na América imaginada pelo autor, Hitlodeu visitou numerosas vilas e países. Ensinou o uso da bússola aos “americanos”. 

Havia monstros em todos os lugares e no oceano, mas Hitlodeu quer mesmo é contar sobre os utopianos. Utopia fica na região equatorial. Mas antes de iniciar a narração, Thomas More diz a Hitlodeu que este, com seu conhecimento, deveria assessorar reis e príncipes. Hitlodeu discorda e demonstra que não funcionaria. Descreve uma longa conversa na casa do arcebispo de Canterbury: discutem sobre a pena de morte para ladrões, os ricos, a propriedade, o ócio, o desperdício, a exploração pelos proprietários de terras, guerras, a falta de terras para o povo. A sociedade cria ladrões para depois puni-los por o serem. A solução de Hitlodeu para os ladrões é colocá-los para trabalhar, como escravos, para o bem coletivo. 

Thomas More insiste que Hitlodeu deveria ser conselheiro de príncipes. Hitlodeu dá exemplos de que não daria certo. É inútil sugerir conselhos para os governantes. A filosofia não tem lugar entre os príncipes. Os sábios têm razão em se afastar dos assuntos públicos. 

“Se eu propusesse leis justas a um rei e tentasse extirpar as fontes do mal dentro de si, pensas que eu não seria sumariamente expulso ou convertido em motivo de ridículo?” 

Hitlodeu prega o estado com um mínimo de leis e tudo igualmente dividido. More diz que não é possível viver onde tudo é comunal. Hitlodeu diz que só voltou de Utopia “para revelar esse novo mundo”. Utopia: uma revelação (portanto, apocalipse, em grego). 

Livro 2 

A ilha de Utopia tem a forma da lua crescente, com uma enorme baía. Seu nome anterior era Abraxas (sigla grega que junta as iniciais dos “sete planetas” conhecidos). A ilha era ligada ao continente, mas Utopo realizou a obra de separação, cortando o istmo. A descrição que Hitlodeu vai fazer sugere um lugar rígido, militaresco, ortogonal, restrito, em todos os aspectos. 

A ilha conta com 54 cidades semelhantes, porque planejadas da mesma forma. A capital é Amaurota (cidade ilusória, sem grego). Moradores da cidade e moradores do campo mudam de lugar periodicamente. Organização social rigorosa. Não há comércio. 

Amaurota fica à margem do rio Anidro (anidro significa sem água). Há água doce e fresca. Em nenhum momento, Thomas More se preocupou com o esgotamento sanitário. A cidade é cercada por muralhas. Há um riacho dentro da muralha, fontes e cisternas, para o caso de sítio. As ruas são ortogonais e tem largura de 600 metros. As portas são automáticas (!), abrem e fecham sem toque humano. 

Os moradores trocam de casa a cada dez anos. Cada casa cultiva, no quintal, vinhas, frutas, legumes. Todas as casas são iguais e com três pavimentos. Os telhados são planos (completamente inadequado para regiões equatoriais de muita chuva). 

As cidades são divididas em quatro distritos. Governador é cargo vitalício. O Senado decide questões públicas. Os conflitos privados são raríssimos. Os ofícios são poucos: tecelagem, alvenaria, metalurgia, carpintaria. Nota-se que o autor esqueceu diversos ofícios essenciais, alguns citados depois, como a medicina e a agricultura. 

Todas as roupas são iguais e adaptadas a frio e a calor (tecnologia de ponta que ainda não alcançamos). Cada família costura sua própria roupa. As mulheres assumem profissões mais leves. Os filhos adotam a profissão dos pais. Se quiserem outra profissão, devem ser adotados por outra família. São seis horas de trabalho por dia; de nove às doze, e de duas às cinco da tarde. Às oito da noite, todos deitam para dormir durante oito horas. 

O tempo livre não deve ser usado para o ócio. Há palestras públicas antes do amanhecer. Depois do jantar, há uma hora de recreio, com música e conversa e uns jogos chatos. (Resta saber qual é o tempo livre: as famílias devem costurar, cuidar de suas hortas, trabalhar em seus ofícios e seguir os horários estritos impostos.) 

A manutenção das edificações é feita permanentemente. A roupa de trabalho dura sete anos. Sobre ela, usa-se um manto para a vida social, de uma única cor para todos. Os mantos duram dois anos. Cada casa abriga dez a dezesseis adultos. Quando há cidade subpovoadas, transferem-se habitantes de outras cidades para lá. Se há superpopulação na ilha, transferem-se habitantes para colônias no continente, seguindo as mesmas leis da ilha. Se faltar gente na ilha, aqueles da colônia são repatriados. 

Aqueles que recusam as normas, são expulsos. Se forem um grupo, estabelece-se uma guerra contra aqueles rebeldes. 

Nos depósitos e feiras, os cidadãos podem pegar o que precisarem, sem pagamento. Animais são mortos e a carne tratada fora da cidade por escravos. Refeições são feitas em conjunto em salas comunais. As tarefas “sujas” são realizadas por escravos. As mulheres cozinham os alimentos. As crianças e adolescentes comem em pé e em silêncio. As pessoas jovens comem nas mesas misturadas com os mais velhos para coibir atitudes inadequadas. Durante as refeições, leituras de tema moral que suscitam conversas respeitáveis. Os hospitais e os médicos são pefeitos. 

Para viajar, é necessário obter licença e especificar data de retorno. Viajante sem licença é detido e punido. Não existem tabernas, bares e bordéis. Encontros furtivos não são permitidos; a vigilância pública garante o comportamento adequado. O lazer não pode ser indecoroso. 

A exportação de excedentes gera riqueza que é usada quando as guerras se fazem necessárias. A maior parte do exército é de mercenários. Ouro e prata são usados para fazer urinóis e grilhões para prisioneiros. A ilha tem pérolas e diamantes. 

A religião é grave, severa, rígida, soturna. Acreditam na alma imortal e na bondade de deus. Só se admite o prazer bom e honesto. A razão conduz a deus. (Essa parte é cheia de baboseiras religiosas). “Aquelas coisas não naturais não contribuem para a felicidade”. O prazer verdadeiro é contemplar a verdade com a esperança em alegrias futuras. O prazer físico é, por exemplo, esvaziar os intestinos e fazer filhos. Os utopianos têm opiniões únicas; todos concordam. “O que faço é descrever, não defender”, diz Hitlodeu. 

O clima de Utopia não é grande coisa mas, contraditoriamente, as safras são abundantes e os rebanhos férteis. Os escravos são gente do próprio povo. Se a doença é incurável e torturante, recomendam a eutanásia. Essa ideia é excelente. Entretanto, o suicídio é desonroso: o corpo é jogado no pântano. Idade mínima para casamento: 18 anos, mulheres; 22 anos, homens. O sexo antes do casamento recebe severa punição; os infratores ficam proibidos de casar. Os pretendentes são apresentados nus. 

O adultério é crime, a reincidência é punida com a morte. Divórcio permitido. Os maridos podem castigar as esposas e os filhos. Há pouquíssimas leis (isso é fantasioso). Não há advogados; o juiz protege a parte mais fraca. Homens e mulheres fazem treinamento militar. Na visão de Hitlodeu, guerras e relações internacionais são muito simples. Os mercenários são do povo zapoleta: soldados perfeitos. 

As armaduras são sólidas e ágeis. Há várias religiões; cultuam o Sol, a Lua, Mitra, mas muitos adotaram o cristianismo. Não há conflitos religiosos, mas o ateísmo é proibido, não se pode acreditar que a alma morre e que somos governados pelo acaso. A morte é feliz por causa da vida após a morte. Alguns acreditam que as almas dos mortos circulam entre os vivos. Os antepassados mortos protegem os vivos. Eles rezam por milagres. 

As esposas se ajoelham diante dos maridos para confessar os pecados. Os sacerdotes usam trajes feitos com plumagens de pássaros. Só há dois dias não úteis por mês: o último e o primeiro. Hitlodeu pontua, por fim, que a sociedade dos nobres e aristocratas é injusta, composta por parasitas e bajuladores. A república é uma conspiração dos ricos. Cristo não consegue impor sua autoridade por causa de uma besta: a soberba. 

Thomas More diz a Hitlodeu que as leis e costumes de Utopia são absurdos, especialmente a vida comunal e a abolição do dinheiro, mas que ele gostaria de ver algumas das características de Utopia nas “nossas cidades”.