Sistemas de transporte na Holanda

Holanda, muito além da bicicleta
Leia a entrevista do Mobilize Brasil com Ivo Bastiaansen, especialista de mobilidade urbana da Movares Nederland B.V.

Autor: Victoria Brodus

Com a população em torno de 17 milhões de pessoas - dois milhões a menos do que a região metropolitana de São Paulo – a Holanda é um país que se pode atravessar, de ponta a ponta, sem sair da ciclovia. É também um modelo mundial de integração dos modos de transporte.

Mas, que lições as cidades holandesas, tão diferentes das grandes e complexas metrópoles brasileiras, podem trazer para a mobilidade em nosso país? Quem responde é o especialista de mobilidade urbana da Movares Nederland B.V., Ivo Bastiaansen, em entrevista à Victoria Brodus, colaboradora do Mobilize. Nesta entrevista, Bastiaansen fala, entre outros temas, do desenvolvimento e funcionamento do sistema de transportes holandês.

Todas as cidades holandesas são exemplos de mobilidade urbana e integração entre modos de transporte?

Algumas cidades holandesas são sim exemplos de integração modal, especialmente as maiores, como Amsterdã, Utrecht e Roterdã. Por outro lado, há cidades em outros paises que neste aspecto são melhores ainda – é o caso de Basel, na Suiça, onde o bonde (tram) liga as zonas rurais ao centro da cidade; Karlsruhe, na Alemanha, onde o bonde utiliza o trilho do trem para facilitar o acesso ao mercado principal; e Paris, onde as linhas do bonde não são apenas orientadas para o centro, mas também são tangenciais.
Uma das características mais evidentes do sistema de transporte holandês é o uso da bicicleta. Sem a bicicleta, nossos estreitos e densos centros urbanos já não seriam acessíveis. As ruas das cidades do século 17 não eram feitas para carros. E a bicicleta é uma alternativa de transporte individual que dá liberdade e rapidez em percursos curtos. Além disso, o crescente uso da bicicleta faz diminuir a demanda pelo transporte público.

Qual é a divisão modal na Holanda? E o papel do carro?

A divisão modal (excluindo aqui os pedestres) é a seguinte: carro, 53%; bicicleta, 30%; e transporte público,17%. Como se vê, o carro ainda é um transporte importante, mas, se ninguém usasse os outros modos, o país inteiro viraria um grande engarrafamento. Então, a nossa estratégia é: promover o sistema mais adequado, em todos os lugares, e seduzir as pessoas para que utilizem os diferentes modos durante uma viagem. Em particular, tentamos facilitar a transferência entre carro e transporte público. Por exemplo, a maior parte das estações de trem oferecem estacionamento barato para incentivar as pessoas a deixarem os carros e pegarem o trem.

Como funciona o transporte público? O bilhete único vale para todo território nacional ou apenas nas maiores cidades?

O sistema é válido para todo o território. O bilhete único está passando por um processo de transição, mudando do antigo strippenkaart, que valia para ônibus e bondes do país, para o novo cartão OV-chip, que incluirá ônibus, bondes e trens, em todo o território nacional. Grupos especiais - idosos ou estudantes, por exemplo - têm tarifa preferencial, subsidiada pelo governo. No futuro - ou pelo menos no sonho dos engenheiros de transporte - todos terão um cartão OV-chip para usar em qualquer transporte público, e que funcionará como um cartão de débito.

As cidades holandesas adotam alguma restrição à circulação de veículos, como pedágio urbano ou rodízio de carros?

Não exatamente, mas o preço do estacionamento nos centros das cidades e em outros pontos densos é muito elevado. Os centros urbanos são otimizados para o transporte público e para pedestres. Isso quer dizer que os carros só podem andar muito devagar, e não podem transitar em alguns caminhos mais diretos por causa das regras de circulação. Há também um imposto geral para quem tem carro, baseado no peso do carro e qual tipo de combustível usa.

Fale da história do sistema de transportes na Holanda. Como se estruturou o atual sistema integrado?

A maior parte do sistema ferroviário foi construída entre 1840 e 1920. Entre 1900 e 1940 havia muitos sistemas de bondes em funcionamento - ligando áreas rurais às cidades - mas a maioria desapareceu após a Segunda Guerra, sendo substituídos por ônibus, que eram mais flexíveis. Nos anos 80, cidades como Amsterdam e Rotterdam tomaram a iniciativa de construir sistemas de transporte coletivo de alta capacidade. Essas são as únicas cidades que operam metrô na Holanda, e os bondes ainda estão em funcionamento em Utrecht, Rotterdam, Den Haag e Amsterdam.

Como é a tomada de decisão sobre quando adicionar uma estação ou abrir uma nova linha?

Para adicionar paradas no sistema ferroviário intermunicipal, o mínimo de passageiros necessário é de 10 mil por dia; também deve haver tempo de sobra nos horários e, claro, a necessidade de uma parada. Para financiamento, o "stakeholder" (partes interessadas) que pede a parada toma conta do orçamento - geralmente isso significa que a comunidade que pede uma estação nova também a financia.
Já para avaliar os custos e benefícios de mudanças no sistema, a ferramenta que mais utilizamos hoje em dia é a análise "custo-beneficio social", que considera não só o tempo de viagem e quantidade de passageiros, mas também os benefícios sociais que as mudanças poderiam trazer para a sociedade.

Que conflitos de interesses surgem no processo de planejamento na Holanda? E como são resolvidos?
O sistema de transporte público é de responsabilidade do governo, e os conflitos que existem são entre diferentes níveis de governo. Esses problemas se resolvem estipulando metas em comum. O setor privado ainda não é um stakeholder no planejamento. No futuro, deverá assumir maior importância, pois representa uma maneira de o governo compartilhar o risco.

Qual o custo anual estimado do sistema de transporte integrado? O sistema gera lucro, ou precisa de subsídios?

Essa pergunta é bem complexa, porque os custos são divididos entre vários departamentos e níveis de governo. A ferrovia pertence ao governo federal, a gestora é a companhia nacional ferroviária, a NS, e a operadora é o ProRail. O custo anual para manter a ferrovia gira em torno de 1.100 milhões de Euros. Esse custo não inclui novas construções e custos gerenciais.
A NS contrata – por meio de concessão - a capacidade ferroviária do ProRail. Hoje em dia, a NS já não é monopólio; outras gestoras são a Veolia e a Synthus. A NS procura cobrir seus próprios custos, e o governo paga em caso de perdas. As outras duas gestoras são empresas comerciais que geram lucro.
No sistema de ônibus, as companhias também compram concessões pelo uso de certas linhas. As concessões são feitas pelo governo provincial e a infraestrutura é financiada pela província.
Há também, em todos os grandes municípios, sistemas de ônibus públicos que são financiados pelo governo municipal. Às vezes, o uso desses sistemas é tão baixo que não mudaria muito o custo operacional para o governo oferecer o serviço de graça. Nesse caso, um bom exemplo é a cidade Bélga Hasselt, que oferece serviço de ônibus de graça dentro dos limites da cidade, e portanto acaba atraindo muitos usuários.

Quais os futuros projetos de obras de infraestrutura da Holanda?

Por ora, não podemos fazer obras novas, por razões políticas e econômicas (custos altos, duração longa de obras). Portanto, a meta agora é aproveitar melhor a infraestrutura existente.
O sistema ferroviário está sendo modificado para acomodar mais trens rápidos (300 km/h), que fazem conexões inter-europeias e servem assim como alternativa para viagens que seriam feitas de avião ou carro. Quatro estações estão em obras para receberem esses trens rápidos, e o ProRail vai adicionar mais trens por hora em algumas linhas para comportar o aumento de passageiros. O projeto é chamado de "Programa ferrovia de alta freqüência"; por ele, alguns pontos de travessia terão de ser modificados para serem de múltiplos níveis, e alguns ônibus que servem às estações de trem terão de ser substituídos por bondes de mais alta capacidade.

A Grande São Paulo tem tanta gente quanto toda a Holanda. Então, que práticas poderiam ser trazidas com sucesso para São Paulo?

Penso por exemplo na bicicleta. O uso da bike depende muito do "status" deste veículo, ou, a visão que a população local tem dele. É preciso lembrar que, mesmo na Holanda, há pessoas que jamais usarão uma bicicleta para se locomoverem, mesmo com todos os argumentos a favor dessa modalidade. Então, se for possível fazer com que os paulistanos vejam a bicicleta como uma alternativa mais "cool", aí sim poderia dar certo. Outra coisa é que São Paulo precisa de planejamento espacial e apoio político de todos os níveis de governo para promover o sistema integrado. Da mesma maneira, é preciso que uma boa parte de todas as classes sociais use o sistema de transporte público.

Fonte: Mobilize Brasil