No Natal,
o rei cruel cria trânsito - Leão Serva
Folha de São Paulo
Era uma
vez um rei muito mau, tão perverso que, na véspera de Natal,
irritado com a alegria dos súditos, decidiu impor ao reino grandes
congestionamentos. Como depois de muito pensar, nada lhe ocorria que
pudesse atender sua expectativa de maldade, mandou chamar o ministro
mais sádico.
O
condestável propôs o plano malévolo: para paralisar a cidade,
causar os maiores engarrafamentos de todos os tempos, temos que
financiar a produção e a venda de automóveis, vender combustível
barato e, principalmente, tirar das garagens os carros que ficam
parados a semana toda.
E para
isso, a maior de todas as maldades, vamos realizar um grande plano
viário. Criar novas avenidas, alargar as existentes, construir
pontes sobre os rios e túneis sob as montanhas, um grande rodoanel
em volta da capital e um pequeno anel viário em volta de seu centro.
Ao
anunciar as medidas, o rei pensava ouvir gritos desesperados e choro.
Mas logo notou que suas propostas rendiam elogios. Os jornais do
reino saudaram o déspota como visionário. Um grande jornal opinou:
"Grande parte da responsabilidade dos congestionamentos no reino
são decorrência da falta de obras de ampliação da infraestrutura
viária na cidade", celebrando que agora a realidade seria
alterada.
O rei
reclamou ao auxiliar: "Eu lhe pedi uma maldade e você faz o que
o povo quer? Tudo que ouço são elogios!"
O
ministro respondeu rapidamente: "Nada mais equivocado. Eles não
perdem por esperar. Em pouco tempo, o trânsito será insuportável".
Vieram as
eleições e as obras viárias foram apresentadas como criações
redentoras, o governo do rei foi aprovado. Antes do que previra o
grande bruxo, porém, imensas paralisações começaram a acontecer
nas cidades. Em um fim de semana, os caminhos todos que atravessavam
o reino ficaram ocupados por carros parados, milhares de quilômetros
a perder de vista: todos os veículos se colocaram em fila, uns atrás
dos outros, estacionados por 24 horas, 48 horas, continuamente.
Feliz com
a plena realização de seus desejos perversos, o rei mandou chamar o
ministro e ao vê-lo, foi logo perguntando: "Como pudestes ter
ideias tão perfeitas?"
Foi
quando o consultor explicou: "Estudei engenharia de tráfego, li
os melhores tratados publicados em outras nações e totalmente
desconhecidos nesta vossa terra de reinóis ignorantes. Bastou-me
fazer o contrário do que ensinavam.
Naquelas
obras sagazes, grandes estudiosos ensinam que quanto maior a oferta
de vias, mais carros são atraídos. Aquelas nações distantes, como
Estados Unidos, Inglaterra e França, diante de tais constatações,
interromperam a construção de grandes obras viárias nas cidades.
Ao contrário, a cada ano, fecham aos carros centenas de quilômetros
de vias em cada grande cidade. O que lhe propus foi fazer o que eles
evitam".
Antes de
ir, o ministro vaticinou: "Quando se constrói uma via, 90% de
seu espaço é ocupado no primeiro ano; em dois anos, o
congestionamento supera em 20% tudo
que foi
adicionado".
O rei
anotou a profecia matemática de seu sábio ministro. Aproveitou que
os súditos ignoravam a ciência do trânsito para nos anos seguintes
manter sua plataforma perversa: "Governar é construir estradas
e criar grandes engarrafamentos".
Leão
Serva, ex-secretário de Redação da Folha, é jornalista, escritor
e coautor de "Como Viver em SP sem Carro"