carta de sábado


Olá:

Acordei cedo, muito cedo, e continuei a leitura do livro Norwegian Wood, de Murakami. Depois dos dois volumes de 1Q84, me deu vontade de continuar no universo murakamiano. Tenho dessas manias, uma vez fiquei muito tempo no planeta Roth e uma vez muito tempo no planeta McEwan e uma vez muito tempo no planeta Saramago. E assim por diante.

Posso dizer que o Norwegian Wood é melhor que o 1Q84, embora ainda não saiba como vai terminar a trilogia. Posso dizer que estou fascinado - fascinado não é bem a palavra, apaixonado também não é, gostando muito também não é, muito interessado talvez sirva - pela cultura japonesa. Tanto que assisti novamente o filme A Partida, o filme que já te falei sobre o violoncelista. É apenas a segunda vez que o assisto. Junta duas coisas nas quais estou mergulhado, violoncelo e Japão. Desta vez, assisti o filme sem legendas, com o som original em japonês, naturalmente. Penso que qualquer filme pode ser assistido sem legendas. A essência do objeto filme é a imagem em movimento - não fui eu que criou esse conceito. A essência do desenho é o traço e a essência da pintura é a cor. O mais é acessório. Além disso, perguntas são sempre perguntas, em qualquer língua, surpresa é sempre surpresa, decepção é sempre decepção. E assim por diante. Detesto usar a palavra sempre. Quando estamos velhos, sempre e nunca permeiam cada vez mais as nossas frases. Isso sempre foi assim, isso nunca foi assim, isso vai ser sempre assim, isso nunca vai mudar. É sinal de desespero.

Acordei cedo, fui ler na rede da varanda com a luz inicial do dia, às vezes caindo chuva fina. Ou grossa. Li bastante, fiz duas xícaras de café forte, tomei um café da manhã frugalíssimo - japonês - e voltei à leitura. Tudo no Japão parece ser frugal. Simplificado, modesto, sóbrio. A ação de pegar e entregar objetos com as duas mãos é bela e sofisticada e simples. Terminei de ler o livro. A manhã está silenciosa, as pessoas parecem ainda não ter acordado. Fotografei a copa verde-claro de uma árvore que vejo da varanda. E vim escrever esta carta. Muito provavelmente inspirado pela grande quantidade de cartas que aparecem no livro.

Há dezenas de coisas que se repetem no planeta murakamiano. Músicas, livros, gatos. Uma delas me chama a atenção. Há um monte de suicídios. Como nós, leitores, costumamos confundir os livros com seus autores, pensei logo: esse cara ainda vai se matar. Bobagem. O autor e o texto tem interseções e afastamentos que nem suspeitamos. Não contei a quantidade de suicídios, mas no 1Q84 devem ser uns três e no Norwegian Wood mais de quatro. Pode ser também uma característica da cultura japonesa. O peso das tradições, a importância de ser um vencedor.

A música. Nas primeiras páginas de 1Q84, a belíssima Sinfonietta de Janacek. Nas primeiras páginas de Norwegian Wood, é claro, a música Norwegian Wood, Beatles. Bela música. John começou a compor, falava de uma mulher que não a esposa dele na época, um caso, e ele diz que buscava falar por alto. No meio da letra, parece que Paul ajudou. A norwegian wood era uma madeira barata que alguém estava usando na reforma de um quarto. Paul achou as palavras bonitas, norwegian wood, apesar da madeira não valer muita coisa. Por fim, George entrou com a cítara, pois estava interessado em música indiana naquela época. A letra é curiosa e nos traz diversas imagens, sem que haja um único significado explícito. Não será esta a definição de uma obra de arte, proporcionar vários caminhos? Várias leituras, como se diz por aí.

Não me tornei fã de Murakami, vejo muitos defeitos em seus livros, não vou abordá-los aqui. Por outro lado, ele consegue abrir, ou apenas demonstrar, diversas portas culturais. Por causa dele, por exemplo, terei que reler O Grande Gatsby, que li há dezenas de anos atrás, e não gostei. Por sua causa, tive que reler Crime e Castigo, e só gostei na segunda leitura. Por falar nisso, estou lendo Henry James, Pelos Olhos de Maisie, e estou adorando o fino sarcasmo e veneno de James.

Esta carta ficou muito longa. O dia está límpido e úmido. Abraços.