A
letra escarlate, Nathaniel Hawthorne, 1850, 332 páginas, tradução de Christian
Schwartz, Penguin Companhia. Início: 15/12/2020 – Fim: 24/12/2020. Nota 4
(escala de 1 a 5).
Projeto
de releitura de livros que tenho nas estantes e dos quais lembro quase nada.
Deste só lembrava que a moça surgia grávida, era rejeitada por todos, não falava
quem era o pai.
Aviso de spoiler: em geral, escrevo sobre todo o enredo do livro,
continue por sua conta e risco.
O
volume da Penguin Companhia traz prefácio à segunda edição, de Hawthorne, o
ensaio “A alfândega”, de Hawthorne e posfácio de Nina Baym.
Recomendo
este livro, vale a pena a leitura e a releitura. O enredo é simples, mas o
autor transporta o leitor para o meio da vila de Boston em 1650 e para o
pensamento puritano que era, então, preponderante.
A
jovem senhora Hester Prynne aparece grávida e não declara quem é o pai da
criança. Ela é casada, mas está sem o marido, pois faz dois anos que chegou à
Nova Inglaterra e até aquele momento o marido não foi se juntar a ela. Hester é
julgada por adultério; poderia pegar a pena de morte, mas os juízes foram
condescendentes e a condenaram apenas a ser exposta no cadafalso durante três
horas e a usar, dali por diante, uma letra A vermelha, A de adúltera, no peito.
Em
nenhum momento, o autor declina o significado da letra A, embora na praça,
durante a exposição de Hester no cadafalso, as matronas da cidade a chamem de
meretriz e prostituta. Com o passar do tempo e com o comportamento rígido e
irrepreensível de Hester, a letra A se converte em A de anjo e abnegada, entre
outras conotações. A letra escarlate colocada sobre a roupa de Hester,
costurada com esmero e com tecidos e fios especiais por ela mesma, parece
também emanar algum poder e irradiação. A letra escarlate é um sinal de Caim, pois,
ao mesmo tempo em que traz a marca do crime, traz também um poder e uma
proteção especial ao portador. Chego a pensar que o emblema descrito por
Hawthorne viria a inspirar o emblema dos super-heróis, duzentos anos depois, o
S do Superman, o morcego no peito do Batman.
Além
de luminoso, o emblema ostentado por Hester dá a ela o poder de perceber a
falsidade e os pecados dos outros, sejam eles nobres juízes, pastores, matronas
ou donzelas.
Nina
Baym em seu posfácio declara que Hester Prynne é a maior heroína da ficção
norte-americana. Não conheço tanto da ficção de lá, mas, efetivamente, Hester é
a grande personagem do livro: mulher corajosa, destemida, arrogante,
impositiva, decidida. Ela não se arrepende do que fez e desafia a comunidade
onde vive somente com sua presença e seu emblema.
Não
sei se algum leitor da época de Hawthorne deixava de perceber, a partir do
terceiro capítulo, quem era o pai do bebê com o qual Hester estava sendo
exposta no cadafalso. Fica evidente que o pai é o pastor Dimmesdale, aquele que
tem a tarefa de exortar Hester a confessar o nome do homem que pecou com ela, e
para quem o bebê levanta os bracinhos quando o pastor aparece para falar.
O
pastor Dimmesdale é um personagem totalmente apático e antipático. Homem fraco,
pusilânime, egoísta e hipócrita. “Caiu em tentação” uma única vez com Hester e
não teve a coragem nem a dignidade de assumir o erro. Passou sete anos cuidando
da comunidade, envolvido em sua própria hipocrisia.
Durante
a prisão de Hester, o marido dela aparece incógnito na vila. Não se explica
como o relacionamento deles se deu nem como se separaram; fica implícito que
Hester o abandonou. Todavia, ele se sente no direito de querer vingança contra
o pastor, visto que logo percebe quem foi o autor do pecado. Ele se torna o
médico da vila e exige dela silêncio sobre o antigo relacionamento.
Não
se compreende o amor de Hester pelo hipócrita Dimmesdale, mas ele existe e
perdura. Talvez ela tivesse essa atração por homens sem dignidade, visto que o
marido também não é uma boa pessoa. O amor, ou a obsessão, de Hester pelo
pastor faz com que ela permaneça morando na periferia de Boston, ostentando seu
emblema, quando poderia muito bem ter ido para outra cidade ou para a
Inglaterra, onde não saberiam nada de seu “crime”. Ela pode ter tido, também, o
gosto perverso de passar na cara dos puritanos o crime de adultério. É a parte
mais incompreensível e falha do romance porque fica claro que o pastor é
covarde e egoísta e que abandonou a moça e bebê à própria sorte. Hester voltar
à Boston no último capítulo e, ao morrer, ser enterrada junto ao crápula não
parece crível.
No
decorrer de toda a narrativa, o leitor vai perceber o sarcasmo e a ironia do
autor; Hawthorne se diverte com a falsidade dos puritanos, com o medo e a atração
que sentem pelo pecado e pela feitiçaria. Acerca desse tema, a feiticeira da
vila, que será queimada na fogueira anos mais tarde, também parece ter o poder
de ver além das aparências. Ela convida Hester para ir à floresta encontrar o
Homem das Trevas; Hester declina do convite, mas é na floresta, sob uma
atmosfera fantástica, que ocorrerá o encontro decisivo entre Hester, Pearl e o
pastor.
A
feitiçaria, o demônio, a atração dos puritanos pelo mal, a floresta misteriosa,
abordados neste romance, também são tema do autor no famoso conto “O jovem
Goodman Brown”, no qual um jovem puritano de Salém, deixa sua bela esposa Faith
(Fé) em casa e vai passar a noite na floresta. Lá, ele assiste a um culto dos
adoradores do demônio do qual participam todos os moradores ilustres da vila,
inclusive sua Faith. O jovem teve um pesadelo ou aquilo aconteceu? Não importa.
O mal visto ou sonhado vai tornar amarga toda a vida dele daí por diante.
Cabe,
também, falar sobre o ensaio introdutório “A alfândega”. Este ensaio compunha o
volume original elaborado por Hawthorne, mas não é indispensável ao romance,
tanto assim que, em muitas edições, não foi anexado. Recomendo ler “A
alfândega” depois da leitura do romance. O ensaio descreve o tempo em que
Hawthorne foi inspetor na alfândega de Salém e descreve o horror que é o
serviço público. O autor se viu embotado na literatura por conta do trabalho
burocrático. Neste ensaio, Hawthorne usa aquele recurso batido do manuscrito
encontrado; ele descreve, desse modo, que vasculhando o amontoado de papéis
velhos no segundo andar do prédio, encontrou o próprio emblema da letra
escarlate e um relato sobre o caso.
Enfim,
“A letra escarlate” é um clássico e, como tal, “é um livro que nunca terminou
de dizer aquilo que tinha para dizer”, como escreveu Italo Calvino.
Resumo:
1.
A porta da prisão. Cemitério e prisão definem a nova colônia, Boston, cerca de
1650. Esta é uma história de dor e fragilidade humanas.
2.
A praça pública. As mulheres daquela época são mais fortes e rudes, apresentam
mais ousadia e exuberância no discurso (a raça decaiu). Hester Prynne foi
julgada, chamam-na de meretriz, de prostituta, de sem vergonha. Ela sai da
prisão com uma marca no peitoral da túnica, muito bem costurada. Tem um bebê de
três meses que só viu a cela da prisão até aquele momento. Jovem, bela, alta,
uma aura, o vestido foi feito por ela na prisão, com a letra escarlate A, que
funcionava como um feitiço, afastando-a das relações humanas (como o sinal de
Caim). Subiu ao cadafalso da praça para ser exposta até uma hora da tarde. Era
impulsiva e apaixonada, pareceria uma Madona. Enquanto exposta com o bebê,
recorda sua vida na Inglaterra e no continente, para onde foi com um velho
sábio.
3.
Um rosto conhecido. Um velho e um índio na multidão, Hester reconheceu o homem.
Ela era casada e veio na frente do marido para a Nova Inglaterra. Depois de
dois anos, sem o marido, grávida, e não confessou quem seria o pai. Poderia ter
sido condenada à pena de morte, mas decidiram por, apenas, três horas de
exposição pública e o uso do símbolo no peito. O reverendo John Wilson pede que
o reverendo Dimmesdale exorte a condenada a revelar o nome do pai da criança. O
bebê eleva os bracinhos na direção do pastor. Hester se nega. Volta para a
prisão.
4.
O encontro. Roger Chillingworth é o velho da multidão, médico e marido de
Hester. Não sabemos ainda como se conheceram, casaram, separaram. Ele dá
medicamentos a ela e à criança, pede que ela não revele o antigo relacionamento
entre eles. Quer saber quem é o pai da menina.
5.
Hester a bordar. Hester é libertada e vai morar em uma casa afastada com a
filha, ela é hábil costureira e tem muitos clientes apesar da má fama. O autor
fala em sinal de Caim, algo que já destaquei desde o início. Hester poderia ter
ido embora e livrar-se até da letra mas ficou na vila. A letra parece lhe dar
um superpoder, uma percepção, ela sente a hipocrisia e os pecados dos outros,
juízes, pastores, matrona e donzelas.
6.
Pearl. Hester procura na menina algum defeito correspondente ao pecado que deu
origem à criança. A menina não obedece porque uma lei maior já fora
desobedecida. O temperamento da mãe na época do pecado passara para a menina.
Hester condenou a criança a uma vida difícil e de isolamento ao ficar na vila.
Ela percebe, ou quer perceber, um demônio na menina, às vezes.
7.
O palácio do governador. Querem tirar a menina da pecadora e Hester vai à casa
do governador com a criança. A menina está vestida de vermelho e a própria
representação viva da letra escarlate.
8.
A menina-fada e o pastor. O governador está com John Wilson, Dimmesdale e
Roger. O governador e Wilson ameaçam tirar a menina de Hester para dar uma
educação correta à criança. Hester dirige-se a Dimmesdale e ordena que a
defenda, e ameça, não perderá a filha. Ele a defende e a menina fica com
Hester, por enquanto. A feiticeira convida Hester para um ritual na floresta,
ela declina do convite.
9.
O médico. Um boticário e um barbeiro cuidam da saúde da vila (personagens tão
comuns nos livros e contos do século XIX, Machado, Flaubert). Agora se tem
Roger Chillingworth, o médico. O médico se torna amigo do pastor Dimmesdale,
sempre adoentado, vão morar em quartos da mesma casa, de uma viúva, o quarto do
pastor tem tapeçarias com Davi e Betsabá, sarcasmo e brincadeiras de Hawthorne.
Parte do povo via o médico como Satã impondo sofrimentos ao pastor.
10.
O médico e seu paciente. Certo trecho em que descreve um ladrão a entrar em um quarto
para roubar o olho de alguém, fez lembrar o conto “O coração denunciador” de
Poe (1843). O médico quer descobrir o segredo da doença do pastor, quer
conhecer a alma do pastor. O pastor dorme pesadamente, o médico examina o peito
do pastor e sai exultante, diabólico.
11.
O interior de um coração. O médico quer se vingar do pastor. Este, quanto mais
angustiado, mais eloquente. Quer se punir, quer revelar o segredo, mas é fraco,
hipócrita, pratica autoflagelação. Neste capítulo, enfim, o autor revela aquilo
que o leitor já sabia há muito, o pai de Pearl é o pastor.
12.
A vigília do pastor. No cadafalso durante a noite, remorso e covardia.
Hawthorne é sarcástico, irônico, divertido. Hester e Pearl, vindas da casa de
um moribundo, passam na praça e sobem ao cadafalso para se juntar ao covarde. O
médico passa e leva o pastor para casa.
13.
Outra visão de Hester. Hester pensa que tem responsabilidades para com o
pastor. Ora, o covarde é que tem responsabilidades para com ela e a filha, e
não as cumpre. Após sete anos com o símbolo, Hester se tornou respeitada na
vila, o A é de abençoada, e quer ajudar o pastor.
14.
Hester e o médico. Hester conversa com o médico, seu marido. Não se conta o que
houve, nove anos atrás, que resultou na separação. O médico diz que ela e o
pastor não são pecadores e que ele não é o demônio, tudo é o destino, e diz a
ela que faça o que quiser em relação ao pastor.
15.
Hester e Pearl. Para Hester, o maior crime foi ter sido seduzida pelo velho, o
médico. Diz que foram felizes por um tempo. O que aconteceu? Hester ainda ama o
covarde do pastor. Sente que saiu de dentro de si um “guardião” e que entrou um
“demônio”.
16.
Um passeio na floresta. Hester e Pearl vão a floresta para encontrar o pastor
que vai passar por ali.
17.
O pastor e sua paroquiana. Hester revela ao pastor que o médico foi seu marido.
O pastor diz que ela é a culpada por tudo, pelo sofrimento dele. Ô povinho, a
mulher é a culpada sempre. “O que fizemos foi sagrado” diz Hester em
autoengano. Hester diz ao pastor que vá embora da cidade. Sozinho? “Não precisa
ser sozinho”.
18.
Um dilúvio de luz. O pastor decide fugir de Boston com Hester e a filha. Hester
retira a letra, o sol ilumina tudo.
19.
A criança à beira do riacho. Mais um capítulo de delírio florestal. Hester
relembra que o pastor a defendeu corajosamente. Autoengano: ele a defendeu
porque sentiu a chantagem quando ela disse “defende-me”, ele a defendeu por
medo de que ela revelasse o segredo.
20.
O pastor no labirinto. O pastor é um cara doente, covarde, inseguro, pusilânime.
O estilo de Hawthorne é excessivamente grandiloquente, às vezes. O pastor volta
modificado para a cidade, tem vontade de fazer coisas más, dar “certas
sugestões blasfemas” para o jantar comunal. “Muito tempo pode se passar até que
as palavras habitem as coisas”. O pastor escreve o sermão do dia seguinte.
21.
Feriado na Nova Inglaterra. Dia da confirmação do novo governador, a praça
pública cheia de gente. Os puritanos são um povo sem alegria. Hester é
informada pelo capitão do navio de que o médico também reservou um lugar.
22.
O desfile. Vem o cortejo, o pastor caminha com uma postura arrojada. A
feiticeira parece saber o que aconteceu na floresta. Insinua que Hester e o
pastor pertencem ao Homem das Trevas. A feiticeira pode não compreender o
mundo, louca, mas vê o recôndito. O capitão do navio manda um recado a Hester
pela menina-fada: o médico conduzirá o pastor para o navio no dia seguinte.
23.
A revelação da letra escarlate. O cortejo sai da igreja, o pastor sobe a o
cadafalso com Hester e Pearl e revela o segredo; mostra o peito nu, não se
descreve o que há, revela-se como pecador e morre.
24.
Conclusão. Havia relatos divergentes sobre a marca no peito do pastor,
inclusive que não havia nada. O pastor era uma criatura falsa, baixa, marcada
pelo pecado, covarde, hipócrita, egoísta, egocêntrico. O médico definha e
morre, deixa herança para Pearl. As duas vão embora da Nova Inglaterra, mas Hester
volta anos depois. Usa o emblema sem necessidade e se torna conselheira
informal das mulheres. É enterrada junto ao crápula.
Trecho:
“Os
fundadores de uma nova colônia, seja qual for a utopia sobre a virtude e a
felicidade humanas que tenham projetado de partida, invariavelmente aceitam,
como uma de suas primeiras necessidades práticas, escolher um pedaço de terra
virgem para servir de cemitério e uma segunda porção de terreno para construir
uma prisão.”