Os
120 dias de Sodoma ou a Escola da Libertinagem, Marquês de Sade, 1789, primeira
publicação em 1904, Penguin Companhia, tradução de Rosa Freire d’Aguiar,
posfácio de Eliane Robert Moraes, 500 páginas.
O
manuscrito original tem 12 metros de comprimento e 11 centímetros de largura. A
história desse manuscrito daria um livro tal a quantidade de peripécias pelas
quais passou. Foi deixado por Sade na Bastilha, encontrado após a destruição da
prisão, vendido diversas vezes ao longo dos anos, por fim colocado a leilão em
2017 e “apreendido” pela França que o declarou tesouro nacional.
Livro
curioso e nojento, de início, mas que vai se tornando violento e sanguinário,
quase impossível de ler. Todas as perversões e crimes são apresentados ao longo
do volume: coprofilia, pedofilia, necrofilia, zoofilia, sequestros, torturas, amputações,
flagelações, incestos, abortos, assassinatos. Observe-se que é um livro
incompleto, pois Sade escreveu a longa introdução e a primeira parte. Para as
três partes seguintes, o volume apresenta as anotações feitas por Sade para
desenvolvê-las posteriormente, o que nunca aconteceu.
A
forma do romance é recorrente na literatura: pessoas que se reúnem para ouvir a
contação de histórias, como acontece em diversos outros livros: As mil e uma
noites, o Decameron, os Contos de Canterbury, os Serões de Dona Benta e as
Histórias de Tia Nastácia. No caso de Sade, ouvir histórias e repetir alguns dos
eventos narrados.
O
parco enredo conta a reunião de quatro ricos libertinos que contratam quatro
cafetinas para narrar aventuras sexuais, ou paixões, como eles as denominam.
Cada uma das cafetinas deve narrar cento e cinquenta paixões em cada mês, cinco
por noite, totalizando seiscentas formas de perversão e cento e vinte dias.
Na
introdução, o autor apresenta os quatro criminosos, o pacto entre eles e os
preparativos para a temporada de quatro meses de perversões. Melhor chamar os
quatro de criminosos do que de libertinos, pois para satisfazer seus desejos,
os quatro não hesitam ante qualquer tipo de crime, seja sequestro, roubo,
assassinato.
O
castelo Silling na Floresta Negra, Suíça, será o palco das orgias. Os
criminosos cuidam para que o castelo fique isolado do mundo durante os quatro
meses.
Participam
as quatro “esposas” dos libertinos, as quatro cafetinas narradoras, oito
meninas e oito meninos virgens de 12 a 15 anos que foram sequestrados, quatro velhas
criadas, oito fodedores, assim denominados (jovens escolhidos pela beleza e
tamanho dos membros, 25 a 30 cm de comprimento) e há, ainda seis criadas na
cozinha. O castelo é inexpugnável, ninguém entra, ninguém sai.
Os
quatro libertinos são o duque de Blangis, o bispo, irmão do duque, o banqueiro
Durcet e o ex-magistrado De Curval. Os quatro fazem um acordo de casamento,
onde as filhas de uns casam com os outros, mas as quatro moças ficam
disponíveis para todos. O duque casa com Constance, filha de Durcet. O bispo
fica “casado” com Aline, sua filha. Durcet casa com Adelaide, filha de Curval.
Curval casa com Julie, filha do duque. Todas as filhas já eram objeto de abusos
pelos pais desde a infância. As mães dessas meninas foram assassinadas pelos
quatro libertinos há muito tempo.
Na
introdução, conta-se que os quatro amigos promovem quatro ou cinco orgias por
semana: uma festa de sodomia, uma com moças e esposas de boa família, uma com
criaturas vis, uma com virgens de sete a quinze anos, uma com quatro mocinhas
de boa família sequestradas.
O
duque, 50 anos, tem um membro de 30 cm de comprimento, possui ereção quase
contínua, dezoito orgasmos por dia na juventude, sete orgasmos por dia na
maturidade, fez uma aposta, certa vez, e foi sodomizado 55 vezes em um dia.
O
bispo, 45 anos, desfalece no orgasmo, membro de 15 cm de comprimento.
Curval,
60 anos, permanentemente sujo e fedorento, tem dificuldades de ereção, goza
três vezes por semana, o ânus é um buraco enorme, sempre sujo, membro de 20 cm
de comprimento.
Durcet,
53 anos, tem um membro de 10 centímetros de comprimento.
As
quatro cafetinas narradoras: Madame Duclos, 48 anos. Madame Champville, 50
anos, tríbade, clítoris de 7 cm quando inchado, desmaia quando goza, virgem
atrás. Martaine, 52 anos, sodomita. Desgranges, 56 anos, podia ser penetrada a
seco por trás, não tem uma mama e um olho, tríbade.
Observe-se
que Sade tem a obsessão das quantidades, dos números, das medidas, além das
perversões e crimes. Os meses previstos para as orgias, de novembro a
fevereiro, somam 120 dias. Todavia, os criminosos permanecem no castelo mais 20
dias, portanto a obra poderia se chamar 120 mais 20 dias de Sodoma, ou 140 dias
de Sodoma. Nos 120 primeiros dias, cada cafetina conta 600 perversões, 150 por
mês. Ao final do livro, o autor faz a contabilidade. Foram para o castelo 46
pessoas, 16 voltarão para a França, 30 foram supliciadas e assassinadas.
Retornarão os 4 amigos, 4 fodedores, as 4 cafetinas, 3 cozinheiras e apenas uma
das esposas, Julie.
No
final da introdução, o marquês revisa os nomes dos personagens e seus atributos
e idades. São tantos personagens que esse ponto do livro se torna útil para
consulta.
Como
dito, o livro se divide em quatro partes, uma para cada cafetina e narradora. A
primeira parte, narrada por Madame Duclos, trata das “paixões simples”. A
segunda parte, Madame Champville, trata das “paixões duplas”. A terceira parte,
Madame Martaine, as “paixões criminosas”. A quarta parte, Madame Desgranges, as
“paixões assassinas”.
A
cada dia, além do serão em que ouvem as histórias, os amigos se divertem em orgias
e banquetes e punições aos meninos, meninas e esposas. Há um calendário de
festas e deflorações e “casamentos” entre os meninos e as meninas. Os sábados
eram os dias de castigos por faltas cometidas e anotadas durante a semana.
Observe-se
que, apesar da pretensão do autor, não existem 600 paixões distintas, ou
perversões. O que há são 600 histórias em que perversões, por exemplo
coprofilia, são apresentadas com variações na forma de aplicação. As perversões
foram organizadas de forma a aumentar gradativamente o nível de violência. Segue-se
um desfile de sexo, sujeira e violência: pedofilia, estupros, coprofilia,
inclusive comer e se lambuzar com cocô, xixi, sêmen, vômito, fetos e
menstruação, zoofilia, incestos, deflorações anais e vaginais, necrofilia,
abortos, blasfêmias com igrejas e crucifixos, flagelações, espancamentos,
chicoteamentos, amputações e extirpações de órgãos, língua, olhos, orelhas,
narizes, dedos, seios, pênis, testículos, fraturas diversas, torturas,
queimaduras com metais, brasas, óleo e água fervente. Inúmeros modos de
produzir dor, de matar e torturar com o máximo de dor e horror.
Não
é fácil de ler.
Relevante
destacar que os quatro criminosos são profundamente misóginos, preferem o sexo
anal passivo e ativo, e adoram a sujeira e todas as variações de sexo com excrementos.
Também gostam de dor e se deixam espancar e chicotear.
Não
era o objetivo do autor, mas o leitor se pode perguntar qual o motivo que faz
com que as vítimas se submetam, sendo em maior número e percebendo que a
violência somente aumenta. Unidas, as esposas, os meninos e as meninas, alguns
fodedores e criadas, conseguiriam facilmente assassinar seus opressores.
Há
muita fantasia, membros e características impossíveis de existir, ações
impraticáveis como manter uma pessoa viva em torturas extremas, atos sexuais
fisicamente impossíveis de acontecer.
O
final da leitura proporciona ódio extremo aos quatro criminosos e tristeza pelo
massacre das vítimas, meninas, meninos e as esposas. Algumas delas, que são
melhor elaboradas como personagens, nos afetam mais quando torturadas,
seviciadas e assassinadas cruelmente.
Trechos:
“Sem dúvida, se a coisa suja é o que
agrada no ato da lubricidade, quanto mais suja, mais agradará, e com toda a
certeza é mais suja no objeto viciado do que no objeto intacto ou perfeito.
Quanto a isso não há o que discutir. Aliás, a beleza é a coisa simples, a
feiura é a coisa extraordinária, e todas as imaginações inflamadas sempre
preferem na lubricidade, sem dúvida, a coisa extraordinária à coisa simples.”
“[...]
se as regras impostas foram infringidas foi porque nada segura a
libertinagem e porque o verdadeiro modo de ampliar e multiplicar os desejos é
querer lhes impor limites.”
Na
página 158, dois amigos se atiram sobre uma das mais feias e velhas criadas do
castelo, Fanchon, sessenta e nove anos, o autor a chama de cadáver
antecipado, o que faz pensar em Fernando Pessoa, cadáver adiado que
procria.
“Afirmo
que é preciso que haja infelizes no mundo, que a natureza os quer, exige, e que
é ir contra suas leis pretender reconstruir o equilíbrio se ela desejou a
desordem.”
“O
universo não subsistiria por sequer um instante se a semelhança entre todos os
seres fosse perfeita; é dessa dessemelhança que nasce a ordem que tudo conserva
e conduz. Portanto, é preciso evitar perturbá-la.”
“A
devoção é uma verdadeira doença da alma; por mais que se faça, a gente não se
corrige. Fácil de se entranhar na alma dos infelizes, porque os consola,
oferece-lhes quimeras para consolá-los de seus males, é bem mais difícil
extirpá-la dessas almas do que de outras.”