Sem mais

Sade: “Afirmo que é preciso que haja infelizes no mundo, que a natureza os quer, exige, e que é ir contra suas leis pretender reconstruir o equilíbrio se ela desejou a desordem.”

Ela chegou um dia em meu estúdio, sem avisar, de forma inconveniente, como uma tempestade, eu me preparava para sair, final da tarde, ela tocou a campainha, fui até o balcão, não entendi a presença dela ali, apertei o botão que abre a porta lá de baixo. Enquanto ela subia a escada helicoidal de pedra, antiga, medieval talvez, tudo é medievo na Rua dos Poços, abri a porta e continuei a cuidar dos preparativos, short, camiseta, cabelo, tênis, e ouvia o salto alto dela nos degraus de pedra, escada estreita e incômoda, perigosa até. Ela entrou no estúdio, eu saí do banheiro, o que houve, querida, eu não suporto mais, eu quero ficar aqui, mas o que aconteceu, nada de especial, mas, espera, senta um pouco, quero sentar, nada de especial, esgotei, esgotada, querida, eu estou de saída, vou jogar vôlei com o pessoal, não posso demorar aqui, espera, um minuto, eu não aguento mais a minha vida, marido, filha, obrigação, eu quero viver aqui com você, eu quero fugir, eu quero uma vida, minha vida de volta, respirei fundo, querida, olha, vou ser bem claro, você não pode ficar aqui, morar comigo ou algo assim, eu não quero viver com você, estou feliz sozinho, adoro viver só, minha vida está perfeita, você é uma excelente companhia eventual; descanse um pouco aqui na minha casa, eu vou para o vôlei, não permito que você interrompa meus planos; a chave está na porta, tranque o estúdio quando você for embora, coloque a chave na caixa de correio. 

Beijei a cabecinha dela, estava sentada, atônita ou apenas cansada, na minha poltrona de leitura, e desci a escada. Soltei a bicicleta do cadeado e pedalei para o vôlei.