quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Tchekhov e o mar

Encontrei em Murakami, “1Q84”, volume 1, tradução de Lica Hashimoto:

“A finalidade da narrativa, em linhas gerais, é desenvolver um problema colocando-o sob outro parâmetro. Conforme a maneira de se expressar e o sentido dessa colocação, a própria história é que vai sugerir algumas respostas possíveis.”

E depois, Murakami citando Tchekhov:

“O escritor não é uma pessoa que soluciona problemas. É uma pessoa que os propõe.”

Em “1Q84”, o personagem Tengo lê um livro de Tchekhov sobre a ilha de Sacalina. Há o seguinte trecho sobre o mar:

“O mar é turvo, gelado, e suas brancas ondas de três metros, ao quebrar, parecem bramir: Deus! Por que tu nos criaste? Eis que estou em pleno Oceano Pacífico. [...] Ao redor não existem pessoas, aves, sequer uma mosca e, num local assim, há de se indagar: Para quem, afinal, essas ondas estão a bradar? Quem ouve este bramido todas as noites? O que essas ondas desejam? Para quem elas vão bradar quando eu partir?”

É curioso imaginar que este trecho de Tchekhov deve ter sido traduzido para o japonês – para que Tengo pudesse lê-lo – e traduzido para o português, por Hashimoto. Tradução da tradução.

Daí que em Tchekhov, “A dama do cachorrinho”, tradução de Boris Schnaiderman, encontra-se sensação semelhante frente ao mar:

“[...] o som monótono, abafado, do mar, que chegava de baixo, falava de descanso, do sono eterno que nos aguarda. Assim tumultuara lá embaixo, quando ainda não existiam Ialta, nem Oreanda; o mesmo ruído faz agora e fará, do mesmo modo indiferente e abafado, quando não existirmos mais. E nessa permanência, nessa completa indiferença em relação à vida e à morte de cada um de nós, oculta-se talvez o fundamento de nossa eterna salvação, do incessante movimento da vida sobre a terra, da perfeição imorredoura.”

Ao final, o mesmo sentimento de Tchekhov frente à imensidão e ao mistério.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Nos dias que correm

Isabel escreveu: “Nos dias que correm (e correm!), estou lendo Mrs. Dalloway, Woolf, Virginia, e o volume 2 da trilogia 1Q84, Murakami, Haruki. Destaco esse trecho de Mrs. Dalloway, quando Peter Walsh volta da Índia, se julgando um fracassado:”

‘E então eles viviam ali, com seus armários de roupa branca e seus mestres antigos da pintura e suas fronhas com renda de verdade, desfrutando de uma renda de cinco mil ou dez mil por ano possivelmente, ao passo que ele, dois anos mais velho que Hugh, tinha de implorar por um emprego.’

É sempre intrigante como, nos séculos antes do vinte, havia gente que vivia sem trabalhar, de “rendas” que provinham de onde? Encontra-se isso em todo canto, em Machado, em Jane Austen. Possivelmente, é a concretização daquele ditado: pai rico, filho nobre, neto pobre. O país está cheio desses netos lascados de antigas famílias dos engenhos, das fazendas – ainda fazendo de conta que são ricos. Em “Anna Kariênina” também temos muito disso; o próprio Vronski, amante de Anna, é um nobre cheio de dívidas. A única pessoa que trabalha em Kariênina é Liev, alter ego de Tolstói. Este é do campo e realmente trabalha em sua fazenda.

Na literatura, era comum o personagem que não trabalhava, e o trabalho era uma vergonha. Mesmo os remediados não trabalhavam, como em Jane Austen, “Orgulho e preconceito”. O pai de Elizabeth não é nobre nem muito rico, mas não se sabe do que ele vivia. De posses? de terras? Assim, em geral. Carlos Eduardo da Maia se forma médico só de brincadeira; uma pessoa da classe dele não trabalharia de médico. Então, parece que era comum esse viver de algum dinheiro de família (embora isso seja literatura).

Hoje, na literatura, os personagens trabalham. E paralelamente, no mundo real, eu não conheço gente que vive dessas rendas misteriosas. É claro que deve existir gente que vive de renda, de heranças, mas não é tão comum como “nos antigamentes”.

Eu, aqui, no meu trabalhinho medíocre de advogada, tenho que dar o sangue, e o suor, para que as moedinhas pinguem na minha conta todos os meses.

domingo, 27 de dezembro de 2020

Museu

 Isabel Castellar escreveu:

Museu, sou contra museus, museu em último caso, museu é para dia de chuva ou de neve, inverno no hemisfério norte, temporada de chuvas no hemisfério sul, museu em dia de sol, belo dia de sol, de primavera, outono ou verão, é perda de tempo, é perda de vida, perda da beleza dos dias nas ruas, nas praias. Museu de noite também vale, museu é para de noite. Também, se só tenho aquela oportunidade de ver uma obra famosa, “Moça com brinco de pérola”, sacrifico um pouquinho do ar livre para entrar no museu. Museu é para, no máximo, uma hora, uma hora e meia. Depois disso, a gente não entende mais nada do que está vendo. Museu é para entrar e ver somente uma, duas, três obras importantes, no máximo cinco, degustar de verdade essas tais obras. Entrar e ver um Canaletto, que nem é “artista maior’, ver um Cabanel, que nem é artista maior, museu para ver um quadro só, uma escultura só, de nada adianta ver cem peças de arte, cérebro nenhum, sensibilidade nenhuma suporta isso.

Porque falei em museu, me ocorreu, será que alguém no mundo, alguém de bom senso, alguém que tem um pouquinho de sensibilidade, acha bonita alguma pintura de Tarsila? Tudo ruim, tudo primário, qualquer feira de interior se encontra algo semelhante, infantil. Mas vale milhões. Vá entender.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Lispector & Woolf

Isabel Castellar:

No conto “A imitação da rosa”, do livro “Laços de família”, Lispector, Clarice, percebe-se que a personagem principal, uma mulher, teve algum tipo de crise, da qual se recuperara e, naquele momento, “as pessoas felizmente ajudavam a fazê-la sentir que agora estava “bem”.” Ela achava contraditórios os conselhos do médico porque, por um lado, dizia que não deixasse o estômago vazio, isso causa ansiedade, tomasse um copo de leite entre as refeições, o que ela fazia religiosamente, mesmo sem ansiedade; por outro, o médico dizia que não forçasse nada, que tudo viria com naturalidade; então, ela tentava tomar o copo de leite obrigatório com naturalidade. No entanto, a contemplação de um buquê de rosas fez a “crise” voltar, aquele “algo” voltou, e ela disse ao marido “não pude impedir”, e ela se tornou “luminosa e inalcançável”, “alerta e tranquila como num trem. Que já partira.”

E eu pensei: “a vida de esposa e dona de casa é mesmo enlouquecedora”.

Curiosamente, em Mrs. Dalloway, Woolf, Virginia, a gente encontra o personagem Septimus, que “havia dito: ‘Vou me matar’, e isso era algo horrível de se dizer.” A mulher de Septimus não quer que o vejam, eles estão na rua, e o leva para um parque, porque “é melhor esconder o fracasso.” Passa um avião e a mulher: “Veja, Septimus, veja!, exclamou. Pois o dr. Holmes havia recomendado que procurasse desviar a atenção do marido (que no fundo não tinha nada de grave e estava só um pouco descompensado) para coisas que o afastassem de suas preocupações.” Acontece que todas as árvores, folhas e galhos estavam iluminados e acenavam para Septimus. Todavia, ele não queria enlouquecer, ele tentava fechar os olhos para não ver mais nada e não conseguia. E a esposa não aguentava mais: “Para ela , melhor seria que ele estivesse morto! Não conseguia ficar sentada a seu lado quando ele ficava com esse olhar tão fixo, sem vê-la, que tornava tudo terrível”.

E eu pensei: “a vida de maridos e esposas é mesmo enlouquecedora”.

Melhores leituras e releituras de 2020

Melhores leituras de 2020:

- A casa das belas adormecidas - Yasunari Kawabata

- Frankenstein ou o Prometeu moderno - Mary Shelley

- O médico e o monstro - Robert Louis Stevenson

- Romeu e Julieta - William Shakespeare

- Flores para Algernon - Daniel Keyes

- Otelo - William Shakespeare

- De repente a vida acaba - Clotilde Tavares

- Laranja mecânica - Anthony Burgess


Melhores releituras de 2020:

- A letra escarlate – Nathaniel Hawthorne (releitura)

- Amor Insensato - Junichiro Tanizaki (releitura)

- Dom Casmurro - Machado de Assis (releitura)

- Macbeth - William Shakespeare (releitura)

- A revoada - Gabriel García Márquez (releitura)

- O alienista - Machado de Assis (releitura)

- Felicidade demais - Alice Munro (releitura)

- A metamorfose - Franz Kafka (releitura)

- São Bernardo - Graciliano Ramos (releitura)

- Histórias de cronópios e de famas - Júlio Cortázar (releitura)

- Grandes esperanças - Charles Dickens (releitura)

- A prisioneira - Marcel Proust (releitura)

- Admirável mundo novo - Aldous Huxley (releitura)

A letra escarlate, Nathaniel Hawthorne, 1850

A letra escarlate, Nathaniel Hawthorne, 1850, 332 páginas, tradução de Christian Schwartz, Penguin Companhia. Início: 15/12/2020 – Fim: 24/12/2020. Nota 4 (escala de 1 a 5). 

Projeto de releitura de livros que tenho nas estantes e dos quais lembro quase nada. Deste só lembrava que a moça surgia grávida, era rejeitada por todos, não falava quem era o pai. 

Aviso de spoiler: em geral, escrevo sobre todo o enredo do livro, continue por sua conta e risco. 

O volume da Penguin Companhia traz prefácio à segunda edição, de Hawthorne, o ensaio “A alfândega”, de Hawthorne e posfácio de Nina Baym. 

Recomendo este livro, vale a pena a leitura e a releitura. O enredo é simples, mas o autor transporta o leitor para o meio da vila de Boston em 1650 e para o pensamento puritano que era, então, preponderante. 

A jovem senhora Hester Prynne aparece grávida e não declara quem é o pai da criança. Ela é casada, mas está sem o marido, pois faz dois anos que chegou à Nova Inglaterra e até aquele momento o marido não foi se juntar a ela. Hester é julgada por adultério; poderia pegar a pena de morte, mas os juízes foram condescendentes e a condenaram apenas a ser exposta no cadafalso durante três horas e a usar, dali por diante, uma letra A vermelha, A de adúltera, no peito. 

Em nenhum momento, o autor declina o significado da letra A, embora na praça, durante a exposição de Hester no cadafalso, as matronas da cidade a chamem de meretriz e prostituta. Com o passar do tempo e com o comportamento rígido e irrepreensível de Hester, a letra A se converte em A de anjo e abnegada, entre outras conotações. A letra escarlate colocada sobre a roupa de Hester, costurada com esmero e com tecidos e fios especiais por ela mesma, parece também emanar algum poder e irradiação. A letra escarlate é um sinal de Caim, pois, ao mesmo tempo em que traz a marca do crime, traz também um poder e uma proteção especial ao portador. Chego a pensar que o emblema descrito por Hawthorne viria a inspirar o emblema dos super-heróis, duzentos anos depois, o S do Superman, o morcego no peito do Batman. 

Além de luminoso, o emblema ostentado por Hester dá a ela o poder de perceber a falsidade e os pecados dos outros, sejam eles nobres juízes, pastores, matronas ou donzelas. 

Nina Baym em seu posfácio declara que Hester Prynne é a maior heroína da ficção norte-americana. Não conheço tanto da ficção de lá, mas, efetivamente, Hester é a grande personagem do livro: mulher corajosa, destemida, arrogante, impositiva, decidida. Ela não se arrepende do que fez e desafia a comunidade onde vive somente com sua presença e seu emblema. 

Não sei se algum leitor da época de Hawthorne deixava de perceber, a partir do terceiro capítulo, quem era o pai do bebê com o qual Hester estava sendo exposta no cadafalso. Fica evidente que o pai é o pastor Dimmesdale, aquele que tem a tarefa de exortar Hester a confessar o nome do homem que pecou com ela, e para quem o bebê levanta os bracinhos quando o pastor aparece para falar. 

O pastor Dimmesdale é um personagem totalmente apático e antipático. Homem fraco, pusilânime, egoísta e hipócrita. “Caiu em tentação” uma única vez com Hester e não teve a coragem nem a dignidade de assumir o erro. Passou sete anos cuidando da comunidade, envolvido em sua própria hipocrisia. 

Durante a prisão de Hester, o marido dela aparece incógnito na vila. Não se explica como o relacionamento deles se deu nem como se separaram; fica implícito que Hester o abandonou. Todavia, ele se sente no direito de querer vingança contra o pastor, visto que logo percebe quem foi o autor do pecado. Ele se torna o médico da vila e exige dela silêncio sobre o antigo relacionamento. 

Não se compreende o amor de Hester pelo hipócrita Dimmesdale, mas ele existe e perdura. Talvez ela tivesse essa atração por homens sem dignidade, visto que o marido também não é uma boa pessoa. O amor, ou a obsessão, de Hester pelo pastor faz com que ela permaneça morando na periferia de Boston, ostentando seu emblema, quando poderia muito bem ter ido para outra cidade ou para a Inglaterra, onde não saberiam nada de seu “crime”. Ela pode ter tido, também, o gosto perverso de passar na cara dos puritanos o crime de adultério. É a parte mais incompreensível e falha do romance porque fica claro que o pastor é covarde e egoísta e que abandonou a moça e bebê à própria sorte. Hester voltar à Boston no último capítulo e, ao morrer, ser enterrada junto ao crápula não parece crível.

No decorrer de toda a narrativa, o leitor vai perceber o sarcasmo e a ironia do autor; Hawthorne se diverte com a falsidade dos puritanos, com o medo e a atração que sentem pelo pecado e pela feitiçaria. Acerca desse tema, a feiticeira da vila, que será queimada na fogueira anos mais tarde, também parece ter o poder de ver além das aparências. Ela convida Hester para ir à floresta encontrar o Homem das Trevas; Hester declina do convite, mas é na floresta, sob uma atmosfera fantástica, que ocorrerá o encontro decisivo entre Hester, Pearl e o pastor. 

A feitiçaria, o demônio, a atração dos puritanos pelo mal, a floresta misteriosa, abordados neste romance, também são tema do autor no famoso conto “O jovem Goodman Brown”, no qual um jovem puritano de Salém, deixa sua bela esposa Faith (Fé) em casa e vai passar a noite na floresta. Lá, ele assiste a um culto dos adoradores do demônio do qual participam todos os moradores ilustres da vila, inclusive sua Faith. O jovem teve um pesadelo ou aquilo aconteceu? Não importa. O mal visto ou sonhado vai tornar amarga toda a vida dele daí por diante. 

Cabe, também, falar sobre o ensaio introdutório “A alfândega”. Este ensaio compunha o volume original elaborado por Hawthorne, mas não é indispensável ao romance, tanto assim que, em muitas edições, não foi anexado. Recomendo ler “A alfândega” depois da leitura do romance. O ensaio descreve o tempo em que Hawthorne foi inspetor na alfândega de Salém e descreve o horror que é o serviço público. O autor se viu embotado na literatura por conta do trabalho burocrático. Neste ensaio, Hawthorne usa aquele recurso batido do manuscrito encontrado; ele descreve, desse modo, que vasculhando o amontoado de papéis velhos no segundo andar do prédio, encontrou o próprio emblema da letra escarlate e um relato sobre o caso. 

Enfim, “A letra escarlate” é um clássico e, como tal, “é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, como escreveu Italo Calvino. 

Resumo: 

1. A porta da prisão. Cemitério e prisão definem a nova colônia, Boston, cerca de 1650. Esta é uma história de dor e fragilidade humanas. 

2. A praça pública. As mulheres daquela época são mais fortes e rudes, apresentam mais ousadia e exuberância no discurso (a raça decaiu). Hester Prynne foi julgada, chamam-na de meretriz, de prostituta, de sem vergonha. Ela sai da prisão com uma marca no peitoral da túnica, muito bem costurada. Tem um bebê de três meses que só viu a cela da prisão até aquele momento. Jovem, bela, alta, uma aura, o vestido foi feito por ela na prisão, com a letra escarlate A, que funcionava como um feitiço, afastando-a das relações humanas (como o sinal de Caim). Subiu ao cadafalso da praça para ser exposta até uma hora da tarde. Era impulsiva e apaixonada, pareceria uma Madona. Enquanto exposta com o bebê, recorda sua vida na Inglaterra e no continente, para onde foi com um velho sábio. 

3. Um rosto conhecido. Um velho e um índio na multidão, Hester reconheceu o homem. Ela era casada e veio na frente do marido para a Nova Inglaterra. Depois de dois anos, sem o marido, grávida, e não confessou quem seria o pai. Poderia ter sido condenada à pena de morte, mas decidiram por, apenas, três horas de exposição pública e o uso do símbolo no peito. O reverendo John Wilson pede que o reverendo Dimmesdale exorte a condenada a revelar o nome do pai da criança. O bebê eleva os bracinhos na direção do pastor. Hester se nega. Volta para a prisão. 

4. O encontro. Roger Chillingworth é o velho da multidão, médico e marido de Hester. Não sabemos ainda como se conheceram, casaram, separaram. Ele dá medicamentos a ela e à criança, pede que ela não revele o antigo relacionamento entre eles. Quer saber quem é o pai da menina. 

5. Hester a bordar. Hester é libertada e vai morar em uma casa afastada com a filha, ela é hábil costureira e tem muitos clientes apesar da má fama. O autor fala em sinal de Caim, algo que já destaquei desde o início. Hester poderia ter ido embora e livrar-se até da letra mas ficou na vila. A letra parece lhe dar um superpoder, uma percepção, ela sente a hipocrisia e os pecados dos outros, juízes, pastores, matrona e donzelas. 

6. Pearl. Hester procura na menina algum defeito correspondente ao pecado que deu origem à criança. A menina não obedece porque uma lei maior já fora desobedecida. O temperamento da mãe na época do pecado passara para a menina. Hester condenou a criança a uma vida difícil e de isolamento ao ficar na vila. Ela percebe, ou quer perceber, um demônio na menina, às vezes. 

7. O palácio do governador. Querem tirar a menina da pecadora e Hester vai à casa do governador com a criança. A menina está vestida de vermelho e a própria representação viva da letra escarlate. 

8. A menina-fada e o pastor. O governador está com John Wilson, Dimmesdale e Roger. O governador e Wilson ameaçam tirar a menina de Hester para dar uma educação correta à criança. Hester dirige-se a Dimmesdale e ordena que a defenda, e ameça, não perderá a filha. Ele a defende e a menina fica com Hester, por enquanto. A feiticeira convida Hester para um ritual na floresta, ela declina do convite. 

9. O médico. Um boticário e um barbeiro cuidam da saúde da vila (personagens tão comuns nos livros e contos do século XIX, Machado, Flaubert). Agora se tem Roger Chillingworth, o médico. O médico se torna amigo do pastor Dimmesdale, sempre adoentado, vão morar em quartos da mesma casa, de uma viúva, o quarto do pastor tem tapeçarias com Davi e Betsabá, sarcasmo e brincadeiras de Hawthorne. Parte do povo via o médico como Satã impondo sofrimentos ao pastor. 

10. O médico e seu paciente. Certo trecho em que descreve um ladrão a entrar em um quarto para roubar o olho de alguém, fez lembrar o conto “O coração denunciador” de Poe (1843). O médico quer descobrir o segredo da doença do pastor, quer conhecer a alma do pastor. O pastor dorme pesadamente, o médico examina o peito do pastor e sai exultante, diabólico. 

11. O interior de um coração. O médico quer se vingar do pastor. Este, quanto mais angustiado, mais eloquente. Quer se punir, quer revelar o segredo, mas é fraco, hipócrita, pratica autoflagelação. Neste capítulo, enfim, o autor revela aquilo que o leitor já sabia há muito, o pai de Pearl é o pastor. 

12. A vigília do pastor. No cadafalso durante a noite, remorso e covardia. Hawthorne é sarcástico, irônico, divertido. Hester e Pearl, vindas da casa de um moribundo, passam na praça e sobem ao cadafalso para se juntar ao covarde. O médico passa e leva o pastor para casa. 

13. Outra visão de Hester. Hester pensa que tem responsabilidades para com o pastor. Ora, o covarde é que tem responsabilidades para com ela e a filha, e não as cumpre. Após sete anos com o símbolo, Hester se tornou respeitada na vila, o A é de abençoada, e quer ajudar o pastor. 

14. Hester e o médico. Hester conversa com o médico, seu marido. Não se conta o que houve, nove anos atrás, que resultou na separação. O médico diz que ela e o pastor não são pecadores e que ele não é o demônio, tudo é o destino, e diz a ela que faça o que quiser em relação ao pastor. 

15. Hester e Pearl. Para Hester, o maior crime foi ter sido seduzida pelo velho, o médico. Diz que foram felizes por um tempo. O que aconteceu? Hester ainda ama o covarde do pastor. Sente que saiu de dentro de si um “guardião” e que entrou um “demônio”. 

16. Um passeio na floresta. Hester e Pearl vão a floresta para encontrar o pastor que vai passar por ali. 

17. O pastor e sua paroquiana. Hester revela ao pastor que o médico foi seu marido. O pastor diz que ela é a culpada por tudo, pelo sofrimento dele. Ô povinho, a mulher é a culpada sempre. “O que fizemos foi sagrado” diz Hester em autoengano. Hester diz ao pastor que vá embora da cidade. Sozinho? “Não precisa ser sozinho”. 

18. Um dilúvio de luz. O pastor decide fugir de Boston com Hester e a filha. Hester retira a letra, o sol ilumina tudo. 

19. A criança à beira do riacho. Mais um capítulo de delírio florestal. Hester relembra que o pastor a defendeu corajosamente. Autoengano: ele a defendeu porque sentiu a chantagem quando ela disse “defende-me”, ele a defendeu por medo de que ela revelasse o segredo. 

20. O pastor no labirinto. O pastor é um cara doente, covarde, inseguro, pusilânime. O estilo de Hawthorne é excessivamente grandiloquente, às vezes. O pastor volta modificado para a cidade, tem vontade de fazer coisas más, dar “certas sugestões blasfemas” para o jantar comunal. “Muito tempo pode se passar até que as palavras habitem as coisas”. O pastor escreve o sermão do dia seguinte. 

21. Feriado na Nova Inglaterra. Dia da confirmação do novo governador, a praça pública cheia de gente. Os puritanos são um povo sem alegria. Hester é informada pelo capitão do navio de que o médico também reservou um lugar. 

22. O desfile. Vem o cortejo, o pastor caminha com uma postura arrojada. A feiticeira parece saber o que aconteceu na floresta. Insinua que Hester e o pastor pertencem ao Homem das Trevas. A feiticeira pode não compreender o mundo, louca, mas vê o recôndito. O capitão do navio manda um recado a Hester pela menina-fada: o médico conduzirá o pastor para o navio no dia seguinte. 

23. A revelação da letra escarlate. O cortejo sai da igreja, o pastor sobe a o cadafalso com Hester e Pearl e revela o segredo; mostra o peito nu, não se descreve o que há, revela-se como pecador e morre. 

24. Conclusão. Havia relatos divergentes sobre a marca no peito do pastor, inclusive que não havia nada. O pastor era uma criatura falsa, baixa, marcada pelo pecado, covarde, hipócrita, egoísta, egocêntrico. O médico definha e morre, deixa herança para Pearl. As duas vão embora da Nova Inglaterra, mas Hester volta anos depois. Usa o emblema sem necessidade e se torna conselheira informal das mulheres. É enterrada junto ao crápula. 

Trecho: 

“Os fundadores de uma nova colônia, seja qual for a utopia sobre a virtude e a felicidade humanas que tenham projetado de partida, invariavelmente aceitam, como uma de suas primeiras necessidades práticas, escolher um pedaço de terra virgem para servir de cemitério e uma segunda porção de terreno para construir uma prisão.”

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Listas

Isabel::

"Aquela moça que tanto admiro e acompanho, Tatiana Feltrin, declinou os doze livros que pretende ler no próximo ano. De fato, ela lê bem mais por ano, acho que uns sessenta livros, mas estes são “os fixos”, um para cada mês:

- Janeiro: O homem que era Quinta-Feira (G. K. Chesterton)

- Fevereiro: Memórias de Adriano (Marguerite Yourcenar)

- Março: Portões de fogo (Steven Pressfield)

- Abril: Shakespeare - Biografia (Anthony Burgess)

- Maio: A República (Platão)

- Junho: Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (Goethe)

- Julho: Middlemarch (George Eliot)

- Agosto: Lavoura arcaica (Raduan Nassar)

- Setembro: O livro do travesseiro (Sei Shônagon)

- Outubro: A história secreta de Twin Peaks (Mark Frost)

- Novembro: Biografia das irmãs Brontë (Juliet Barker)

- Dezembro: Memórias do subsolo (Fiódor Dostoiévski)

Não tenho uma lista assim para o próximo ano. Quero misturar uma leitura, uma releitura, uma leitura, uma releitura, no ano que vem. As releituras serão daqueles livros que tenho na parca estante e dos quais não lembro quase nada. As leituras de inéditos seguirão ao sabor do momento. De todo modo, eu inventei uma regra – ou li em algum lugar e agora penso que fui eu que inventou – uma regra: os clássicos devem ser relidos a cada cinco anos. Ao menos seis livros importantes quero reler no próximo ano:

- Moby Dick, Herman Melville

- Ulysses, James Joyce

- Anna Kariênina, Liev Tolstói

- O jogo da amarelinha, Julio Cortázar

- O velho e o mar, Ernest Hemingway

- Paris é uma festa, Ernest Hemingway


Ao menos seis inéditos para mim que pretendo ler no próximo ano:

- Mrs. Dalloway, Virginia Woolf

- Ao farol, Virginia Woolf

- A outra volta do parafuso, Henry James

- A morte de Ivan Ilitch, Liev Tolstói

- O deserto dos tártaros, Dino Buzzati

- Absalão, Absalão, William Faulkner


Vai ver que é bom fazer listas assim porque vão me ajudar a seguir um objetivo, um caminho de leitura. Neste ano, não foram poucos os livros lidos, mais de sessenta. Então, é esperar um bom próximo ano de leituras."


Sem laços

Isabel: "Amanhã tem clube de leitura, era para ler alguns contos de Lispector, Clarice, do livro “Laços de família”, eu li quase todos, nunca havia me interessado pela obra dela, e depois de ler esses poucos contos, considero supervalorizada. Os contos são medianos, alguns desinteressantes, alguns bons. Na seara dos contos, muito aquém de, apenas como exemplo, Munro, Alice. Um monte de mulher oprimida pela vida de dona de casa. Não dava para imaginar outras histórias, interrogação. Sim, eu me sinto próxima daquelas mulheres, além de dona de casa, mãe, funcionária, esposa, angustiada, agoniada, insatisfeita, sem saída, sim, sou tudo isso, mas não amei os contos, não se acertaram comigo. No clube, não sei se vou dizer o que achei, às vezes fico calada quase todo o tempo da reunião, tenho vergonha dos meus pensamentos. Quem sabe. Eu sei, que queria ser outra pessoa, mas se eu fosse a outra pessoa, eu teria outro conglomerado abrangente de queixas. Quem sabe. Às vezes, acho que não, que sim. Eu vejo aquela moça que trabalha com livros, eu gostaria sim, eu trabalho com a aridez das leis, o que eu escrevo é “conforme”, “de acordo”, “ademais”, “concomitantemente”, “portanto”, “artigo”, “haja vista”, “inciso”, “parágrafo”. Na juventude, a gente faz muita merda, eu achava bonito as leis, pensava que ia ser juíza e corrigir o mundo. Quase todo mundo é assim, o jovem estudante de engenheiro, como meu marido, pensa que vai construir pontes magníficas, até ligar continentes, depois cai na real, cai no mundo do dinheiro, faz qualquer funçãozinha subalterna na engenharia e levando esporro dos superiores. É assim. Vai demorar muito tempo para que eu dê outra chance a Lispector. Decepcionante."

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Homem em queda, Don Delillo, 2007

Homem em queda, Don Delillo, 2007, 256 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras. Início: 11/12/2020 – Fim: 15/12/2020. 

Projeto de releitura de livros que tenho nas estantes e dos quais lembro quase nada. O que eu lembrava desse livro de Delillo era pouco. Sabia que falava no 11 de setembro, que havia uma personagem feminina e que não havia gostado do livro no geral, somente isso, absurdo como esse livro não marcou, não ficou na memória, e não havia anotações sobre. Fiz a releitura. 

Não gostei do livro, não leria novamente nem recomendo. Não é um livro essencial, é dispensável. 

Aviso de spoiler: em geral, escrevo sobre todo o enredo do livro, continue por sua conta e risco. 

O livro é uma tentativa mal sucedida de contar o choque causado a uma família pelo ataque ao World Trade Center, extrapolando o choque particular para o choque nacional. É uma tentativa mal sucedida porque o enredo, ralo, saiu tedioso, monótono, repetitivo. Sim, pode-se pensar que a forma da narração corresponde à forma de agir e pensar de quem está em estado de choque. Todavia, este choque se reveste de monotonia, de cenas sem função na história, e de apatia, e este choque poderia durar menos, não ocupar todas as 256 páginas do livro. 

Keith estava no WTC quando os aviões atacam. Ele desce as escadas atordoado, chega à rua e vai para a casa da ex-mulher, Lianne. Compreende-se o atordoamento de Keith, todavia esse atordoamento não mais o deixa, é para sempre. Lianne recebe o ex-marido, ela também em choque com o atentado, leva-o ao hospital, cuida dele. Nos dias seguintes, Keith não sabe mais o quer da vida, ou não quer nada da vida. Lianne e o filho deles esperam. Esperam até demais, três anos. Keith torna-se um viciado em jogo, vive em cassinos, volta para casa vez em quando. O último capítulo em que Lianne aparece, dá a entender que ela se sente bem e não vai mais querer a presença do amalucado Keith. Ela vai continuar sua vida, somente ela e o filho, de onde parou três anos antes. 

Ao redor desse enredo simples, aparecem a velha e arrogante mãe de Lianne, que está se aproximando da senilidade e da morte, o namorado esporádico da mãe, um comerciante de arte europeu, a turminha que jogava pôquer com Keith em descrições chatíssimas sobre esse jogo chatíssimo, Florence Givens, também uma sobrevivente do ataque com a qual Keith mantém um caso volátil de quinze dias, o pai de Lianne que se suicidou e o Homem em Queda, um artista que faz a performance de se pendurar de cabeça para baixo em pontes e viadutos. 

O melhor personagem é Lianne, a gente torce por ela, a gente gosta de ver que ela caminha para a frente, que ela vai superando a situação, apesar do tom lento e tedioso da narração. Os outros personagens não produzem um milímetro de empatia no leitor. O filho do casal, por exemplo, é um menino distante, antipático, arrogante. Como se pode ver no resumo abaixo, são inúmeras cenas sem consequência, cenas que podem ser retiradas e não mudam em nada a história. 

Abaixo segue resumo de cada capítulo com um ou outro comentário. 

Parte 1. Bill Lawton (saberemos depois que Bill Lawton é como o filho do casal chama a Bin Laden). 

Capítulo 1. Começa no onze de setembro: um homem que conseguiu sair de um dos prédios atacados caminha em meio ao caos, atordoado, como em um sonho ou pesadelo. Saberemos seu nome mais tarde, Keith. 

Capítulo 2. Lianne recebe um cartão postal com um poema de Shelley sobre o Islã, três dias depois do ataque, por coincidência. Lianne e o filho Justin na casa da mãe dela, Nina Bartos. Keith é o ex-marido de Lianne, mas no atordoamento, ele foi para a casa dela. Martin, namorado da mãe, chega da Europa, conversam sobre as torres, casamento, separação. 

Capítulo 3. Lianne leva Keith ao hospital, fragmentos de vidro no rosto, estilhaços orgânicos existem quando há um homem-bomba, conta o médico. Isabel é a mãe dos crianças amigas de Justin. Lianne é revisora, trabalha em casa. Keith trabalhou dez anos no WTC, quando se separou foi morar perto do trabalho. O prédio dele está interditado. 

Capítulo 4. Lianne é voluntária em um grupo de pacientes de Alzheimer, para escrever e conversar. Homem em Queda é um artista, sua performance é se pendurar de cabeça para baixo, terno e pasta, como as pessoas que pularam do WTC. Lianne foi pegar a mãe na estação de trem e viu o Homem em Queda. Ela dorme com o ex-marido, tensão sexual leve. Keith pegou uma pasta qualquer durante a descida da escada do WTC e levou para casa, não era dele. As crianças usam um binóculo para procurar aviões. O pai de Lianne se matou antes da senilidade. Martin Ridnour no apartamento da mãe, nada mais parece exagerado, eles dizem; ora, hoje temos a pandemia, a história sobrepuja acontecimentos. Nada é grandioso demais, espetacular demais. A mãe de Lianne, rigorosa, agora está envelhecendo, fraquejando. 

Capítulo 5. Keith vai à casa da dona da pasta, Florence Givens, ela conta como foi a fuga no WTC. Keith no parque com Justin, Lianne no grupo de Alzheimer, escrevem sobre onde estavam quando aconteceu. Lianne tem insônia, a música árabe da vizinha Elena a incomoda. Lianne e Keith fazem sexo, o mais carinhoso que já fizeram. As crianças procuram aviões, Bill Lawton é Bin Laden. 

Na Marienstrasse. É um capítulo sem número sobre muçulmanos. Hammad conversa com um antigo soldado iraquiano de Saddam, a guerra Irã x Iraque, apartamento na Marienstrasse onde planejam os ataques, capítulo inútil, mostra a conversão de Hammad à jihad, o que pode Delillo saber sobre a mente de um muçulmano jihadista, me pergunto. 

Parte 2. Ernst Hechinger (saberemos depois que este é o verdadeiro nome de Martin, namorado da mãe de Lianne, mas isso não tem nenhuma importância para o livro). 

Capítulo 6. Keith com Florence, revivem o trauma, fazem sexo, Florence descrita como negra de pele clara, desajeitada, feiosa. Lianne no grupo de Alzheimer. Keith chuta a porta de Elena, a da música árabe. Longas descrições sobre a bobagem do pôquer, essas homices de amigos do pôquer. Jantar em família, falam em férias, filho chato, arrogante, o passado antes da separação quando qualquer pergunta era hostilidade, Lianne presta atenção em Keith, estão cuidadosos, se dedicam ao outro, ele usa a palavra “realmente”, ela nota que era a palavra que ele usava antes quando mentia, ela tem o impulso de querer saber tudo sobre a pasta e mais. Keith com Florence e um vago desconforto. 

Capítulo 7. Na casa da mãe de Lianne, a discussão repetitiva sobre Islã x Ocidente. Lianne agride Elena, a vizinha da música, sem consequências. Recordações de Keith e Rumsey, colega do pôquer e do trabalho. Lianne no grupo de Alzheimer, ela conta ao grupo onde estava no dia do ataque. Keith recorda do pai, Keith se acha nascido para ser velho, o pai tem satisfação com a velhice, memórias do pôquer, o colega Terry Cheng. Lianne recorda o suicídio do pai. Keith com Florence na loja de colchões, briga com cara que falou de Florence, sem nenhuma consequência. Keith e Lianne assistindo os aviões batendo nas torres, de novo. 

Capítulo 8. Keith com Florence, os dias seguintes do dia do ataque, distanciar-se e analisar os acontecimentos. Carol, a editora, e um livro sobre os sequestros. Lianne no grupo d Alzheimer, Keith na academia, Lianne na casa da mãe, conversam sobre Martin, uma tem raiva da outra. Novamente o pôquer. Lianne com Elena na lavanderia. Dia de chuva, Lianne na rua, prédio dos irmãos buscar o menino, Lianne desequilibrada quase ataca a menina amiguinha do filho. 

Capítulo 9. Lianne no grupo de Alzheimer, Keith no parque com o garoto, Florence é um duplo de Keith, diz o autor, Keith disse a Florence que acabou. Lianne na rua, Keith enumera as possíveis consequências de contar sobre Florence a Lianne, não vai contar. Lianne vê o Homem em Queda. Keith e Justin indo em direção a Lianne, encontram-se na rua, possivelmente a única cena quase feliz da história. 

Em Nokomis. Capítulo sem número sobre os terroristas. Hammad e os terroristas na Flórida. No momento em que se está executando aquilo que foi longamente planejado, não há mais nada para pensar. 

Parte 3. David Janiak (saberemos que é o nome do Homem em Queda). 

Capítulo 10. Três anos depois do ataque, a mãe de Lianne morreu faz quatro meses, Lianne e Justin em uma passeata, muito se faz pelos filhos sem ter a mínima vontade. Ela tem uma rotina discreta e protegida, gosta da rotina, o garoto é muito chato, não dá para o leitor gostar desse garoto antipático, egoísta, arrogante. Lianne recorda quando esteve no Egito, Lianne se preocupa com a sua genética e o Alzheimer. Keith, o fraco, se tornou um viciado em jogo, passa os dias em cassinos, Las Vegas e outras cidades, e apenas alguns dias com Lianne e Justin. Avisado da morte da mãe de Lianne, veio Martin, conversa babaca sobre a relevância da “América”, dá nojo essa norte-americanice, não é só ser o centro do mundo (talvez), é se achar o centro do mundo. Martin gostava de Nina porque a conversa entre eles nunca terminou. 

Capítulo 11. Keith nos cassinos, encontra Terry Cheng, outro personagem que termina viciado, outro duplo de Keith, falta de criatividade. Neste enredo, ninguém consegue se libertar do choque do ataque, Keith conversa com Lianne ao telefone. 

Capítulo 12. Lianne em uma exposição de Morandi, Keith nos cassinos, os dois juntos mais uma vez: ela tem necessidade da presença dele e, diz, quer formar a família de novo. os dois se desestruturaram, mas ele não se recompôs; há coisas que não são ditas. 

Capítulo 13. Lianne encontra o obituário de David Janiak, o Homem em Queda, o artista performático, morreu aos trinta e nove anos de causas naturais, ela busca e lê informações sobre ele. 

Capítulo 14. Keith nos cassinos, é como se fosse um funcionário do cassino, o vício, não consegue deixar o vício, recorda de Florence, foram somente quatro ou cinco encontros, mas pensa nela quase todos os dias, nunca mais falou com ela, o vício está mais arraigado. Lianne recorda do pai, sabe de gente que está lendo o Corão, tentativa de entender, ela corre de manhã cedinho, pensa em se preparar para a maratona do ano que vem, vai à missa algumas vezes, sem acreditar, tentando encontrar ou compreender, compreende que se sente bem consigo mesma: o final do capítulo dá a entender que ela não vai querer mais Keith de volta, na casa, que vai continuar a vida, ela e o garoto, de onde parou três anos antes; bom, melhor assim, Keith é um fraco. 

No corredor do rio Hudson. Capítulo final. Hammad no avião, o impacto contra o prédio, Keith em sua sala, o caos, Rumsey morto, a descida pelas escadas, a rua, o estado de choque no qual ele quis permanecer para sempre, ele sempre foi um fraco, um personagem vazio. Fim. 

Trecho: 

Antes Keith queria mais do mundo do que havia tempo e meios para adquirir. Agora não queria mais isso, fosse o que fosse o que ele queria antes, em termos reais, coisas reais, porque ele jamais soubera de verdade.

Agora se perguntava se havia nascido para ser velho, para ser velho e só, satisfeito com uma velhice solitária, e se todo o resto, todos os olhares ferozes e explosões de raiva que haviam ricocheteado naquelas paredes, eram apenas meios de fazê-lo chegar lá.

Era seu pai se manifestando pelas frestas, sentado em sua casa no oeste da Pensilvânia, lendo o jornal matutino, dando uma caminhada à tarde, um homem amoldado pela rotina suave, viúvo, jantando, sem nenhuma confusão, vivo, cercado por sua pele verdadeira.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde, 1890

O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde, 1890, 224 páginas, tradução de Alexandre Barbosa de Souza, Via Leitura. Início: 08/12/2020 - Fim: 16/12/2020.

Aviso de spoiler: em geral, escrevo sobre todo o enredo do livro, continue por sua conta e risco. 

Havia lido este livro muito cedo na vida, adolescência, e não recordava detalhes, mas sabia o geral da história. Ou sabia pela cultura popular, pois a história do retrato que envelhece no lugar do retratado é de amplo conhecimento. 

É um livro relevante, deve ser lido e vale a pena ser lido. É um livro irregular. 

O pintor Basil Hallward está terminando o retrato do jovem Dorian Gray, que posa para ele, na presença de Lorde Henry Wotton. Henry é um cético e um cínico e faz ver a fatuidade da juventude ao ingênuo Dorian. Ao ver o quadro terminado, a beleza de seus traços jovens perfeitamente representados e preservados, Dorian diz que daria a alma para permanecer jovem enquanto o retrato envelheceria. De algum modo misterioso, a permuta é aceita. O jovem percebe a primeira modificação no quadro e se assusta terrivelmente, pensa em ser bom e virtuoso, mas daí por diante suas maldades, infâmias, pecados e crimes se multiplicam. Passam-se os anos. Dorian, com trinta e oito anos continua a parecer um jovem de vinte. O retrato, por outro lado, está cada vez mais hediondo: a imagem não apenas envelhece, mas também exibe a maldade acumulada do rapaz. Cruel e covarde, Dorian mata Basil, o pintor que fez o quadro, atribuindo ao artista a culpa por seu destino. Pouco tempo depois, desiludido com sua própria capacidade de se tornar virtuoso, Dorian ataca o quadro com uma faca. Os criados ouvem o grito e sobem, o quadro mostra um Dorian Gray jovem e belo, enquanto jaz no chão um homem envelhecido e terrível com uma faca no coração. 

O livro tem cenas muito divertidas com Lorde Henry e seus epigramas amorais, espirituosos e sua visão cínica dos seres humanos e da sociedade. Dorian Gray oscila entre a ingenuidade e a perversidade. As infâmias, as perversões, as maldades, praticadas por Dorian não são descritas. De acordo com Wilde, cada um de nós deve ver seus próprios pecados em Dorian Gray. O final do livro me parece excessivamente moralista; não parece combinar com a ausência de escrúpulos do personagem – na maior parte do tempo – e na contínua pregação de Lorde Henry, um alter ego de Wilde. Dorian Gray, criminoso, hedonista e sempre impune não teria motivos tão fortes para destruir a magia de sua permanente juventude. Talvez o cansaço, talvez já ter experimentado todas as perversões, talvez ele não esperasse que a tentativa de destruição do retrato resultaria em sua própria morte. 

Lorde Henry pode ser visto como um demônio, visto que é por meio de sua “filosofia” de vida que Dorian Gray sugere trocar a alma pela juventude. É estranho não haver um pacto formal que conceda a Dorian o que ele desejou. Também incomoda ao leitor o fato de que ninguém faz observações acerca da disparidade entre a idade de Dorian, 38 anos, e a sua aparência eterna. Somente no penúltimo capítulo, Lorde Henry pergunta qual o segredo da juventude do rapaz. 

Resumo: 

Capítulo I. Lorde Henry Wotton e o pintor Basil Hallward conversam sobre pintura, sociedade, e sobre Dorian Gray, um rapaz que o pintor conhecera e que estava servindo de modelo a um quadro. Basil sente necessidade da amizade de Dorian e o vê todos os dias. 

Capítulo II. Dorian Gray chega ao estúdio de Basil para posar. Lorde Henry fala para Dorian sobre a juventude e a tragédia do envelhecimento. Basil termina o quadro e Dorian diz que daria a alma para permanecer jovem e somente o quadro envelhecer. Henry e Dorian combinam de ir ao teatro à noite e saem do estúdio. 

Capítulo III. Lorde Henry visita o tio, Lorde Fermor, para saber mais sobre a família de Dorian Gray. A mãe do rapaz, Margaret Devereux fugiu para casar com um rapaz pobre, o pai dela, Lorde Kelso, mandou matar o genro, ela teve o bebê e morreu pouco depois, Dorian foi criado pelo avô. Henry vai almoçar com tia Agatha, Dorian Gray já está lá, outros da sociedade, aforismos e ditos espirituosos, pilhérias sobre os norte-americanos. 

Capítulo IV. Dorian Gray conhece a esposa de Lorde Henry. Declara estar apaixonado por Sibyl Vane, atriz, pobre, faz papéis de Julieta e de Desdêmona, entre outros. No final do capítulo, anuncia que vai se casar com Sibyl. 

Capítulo V. Na casa de Sibyl Vane, ela feliz, feliz; a mãe, atriz fracassada, resmungona, interesseira; o irmão James vai embarcar para a Austrália, ele e Sibyl passeiam no parque, passa Dorian em uma carruagem. 

Capítulo VI. Lorde Henry, Basil Hallward e Dorian Gray jantam juntos e conversam sobre o casamento. Chegam ao teatro para ver Sibyl. 

Capítulo VII. Sibyl interpreta pessimamente o papel de Julieta. Lorde Henry e Basil retiram-se. Dorian vai ao camarim e humilha a moça, diz que não a ama mais. A moça explica que não conseguira interpretar o papel porque agora ama na realidade e o palco perdeu a força da ilusão para ela. Dorian passa a noite pela rua, vai para casa e o retrato se modificou, adquirindo as marcas da maldade de Dorian. 

Capítulo VIII. Dorian acorda tarde, confirma que o retrato se alterou, escreve uma carta apaixonada para Sibyl. Lorde Henry chega e conta que Sibyl morreu, suicídio com ácido. Dorian considera o fato uma tragédia maravilhosa, ópera à noite. 

Capítulo IX. Visita de Basil, que pensa que Dorian estava abalado, mas que nada. O biombo esconde o quadro, Basil quer ver, Dorian diz que ele nunca vai ver o quadro de novo, e decide esconder o quadro. 

Capítulo X. Dois homens levam o quadro para o sótão, a chave fica com Dorian. A investigação conclui que a morte de Sibyl foi acidental. Ele recebe um livro que o interessa sobre um parisiense que experimenta todos os pecados e paixões, seja lá o que isso for. Jantar com Henry. 

Capítulo XI. Longo e tedioso, as ocupações de Dorian ao longo dos anos, desnecessário, o quadro continua piorando. 

Capítulo XII. Dorian faz 38 anos no dia 10 de novembro. Basil visita-o preocupado com todos os boatos que correm, está de partida para Paris. Dorian vai mostrar a Basil sua verdadeira “alma”. 

Capítulo XIII. Sobem ao sótão e Dorian mata Basil em frente ao retrato. 

Capítulo XIV. Dorian manda chamar Alan Campbell, químico, que tem um laboratório particular, conta o assassinato, faz uma chantagem misteriosa e obriga Campbell a fazer o corpo desaparecer, lá no sótão, com química e fogo. 

Capítulo XV. Jantar com Henry na casa de Lady Narborough. Dorian destrói objetos de Basil na lareira, sente necessidade de ópio, sai de casa. 

Capítulo XVI. Casa de ópio nos cafundós perto do rio. Dorian encontra Adrian Singleton ao qual destruiu, assunto de um desfalque ou falsificação; uma mulher o chama de Príncipe Encantado. O marinheiro James Vane ouve, vai atrás dele e vai matá-lo, mas Dorian diz que é muito jovem para ter sequer conhecido Sibyl Vane, e James o liberta. Depois, a mulher diz a James que Dorian não envelhece e que a destruiu faz dezoito anos. 

Capítulo XVII. Dorian na propriedade Selby Royal com muitos convidados. Dorian vê o rosto de James Vane no vidro do orquidário e desmaia. 

Capítulo XVIII. Durante uma manhã de caçada em Selby Royal, Lorde Geoffrey atira em uma lebre e mata um homem. Esse homem era James Vane e Dorian se sente salvo. 

Capítulo XIX. Dorian quer se tornar bom, poupou a jovem camponesa Hetty de ser desonrada. Conversa com Lorde Henry sobre o desaparecimento de Basil, o suicídio de Alan Campbell em seu laboratório. 

Capítulo XX. O retrato está mais e mais horrendo e há mais sangue. A decisão de Dorian de se tornar bom não afetava o retrato, a decisão era hipocrisia, vaidade, curiosidade. Dorian ataca o retrato com a faca. Um grito pavoroso. Os empregados sobem e veem o retrato esplêndido de um rapaz jovem e belo e, no chão, um homem morto com uma faca no coração, “seco, enrugado, com um rosto odioso. Só quando examinaram seus anéis reconheceram quem era.”

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O mal-estar na cultura, Sigmund Freud, 1930

O mal-estar na cultura, Sigmund Freud, 1930, 191 páginas, tradução de Renato Zwick, L&PM. 

Não sou especialista na área do famoso doutor. A leitura que fiz dos livros dele foi uma leitura de conhecimento, uma leitura para conhecer um pouco o pensamento dele, e é como a um pensador da modernidade que me refiro ao famoso doutor. Modernidade de 1930 mas que também é a nossa, noventa anos depois, em certa medida. 

Acerca da psicanálise, não tenho conhecimento para opinar, então minha opinião é achismo. Que seja. Os livros do pensador estão aí para ser lidos e cada um pode ter sua opinião. Os livros dele não são livros de matemática ou de química, para os quais a discussão deveria ser técnica. Acerca da psicanálise, ainda, acho até que funciona, mas que não é ciência, nem mesmo ciência médica. Por sorte funciona, por acaso funciona. Talvez funcione porque as pessoas precisam de alguém com quem debater e expurgar seus problemas, culpas, “pecados”, crimes, desejos, safadezas. Antes, quem fazia esse papel eram os sacerdotes, os pajés, os tambores, os cânticos, as oferendas. Ainda fazem, é certo. 

Robert Louis Stevenson dividiu a psique do doutor Jekyll em duas partes, a boa e a má, e a parte boa controlava a má. Com a poção, o doutor conseguiu que a parte má adquirisse vida própria e não fosse mais controlada pela parte boa. Hyde era o mal puro. Por seu lado, o doutor Jekyll continuava com a psique dividida em duas partes. 

Sigmund, a quem sua mamãe chamava “meu Sig de ouro”, dividiu a psique humana em três partes, o “eu”, o “isso” e o “supereu”. Talvez tal divisão seja útil para o entendimento que ele queria ter do ser humano. Eu, do alto da minha arrogância misturada com ignorância, também posso dividir a psique humana em partes teóricas – qualquer um de nós pode fazer isso, visto que a psique não é concreta, é uma abstração. Eu quero agora dividir a psique humana em quatro partes: o “eu”, o “isso”, o “aquilo” e o “infraeu”. Ou dividir em sete partes, denominadas de A até G. Nada impede. A psique abstrata, fantasmática, pode ser fatiada como quisermos, a possível “divisão” não decorre de um fato médico ou científico. O fato do pensamento de Freud funcionar em certa medida não significa que aquela divisão aleatória proposta é real. 

Bem, sobre o livro a que me refiro, essa é a segunda leitura que fiz dele. Como livro de um pensador, de alguém que pensa a cultura, os seres humanos, suas ações e sensações, é um bom livro, instigante, faz o leitor pensar também, não é tedioso e apresenta aspectos que não percebíamos antes. Como ciência, é impreciso e vago. Mesmo como livro de ensaios de um pensador, alguns aspectos causam espanto: 

- A grande quantidade de imprecisões, representadas por expressões como “talvez” e “parece”.

- A ausência de definições acerca de termos ou expressões.

- A enorme carga de preconceito e eurocentrismo (próprios da época do autor, é evidente). 

Já no primeiro parágrafo do livro, encontra-se exemplo do que foi citado acima. O autor diz: “É impossível escapar à impressão de que os seres humanos geralmente empregam critérios equivocados, de que ambicionam poder, sucesso e riqueza para si mesmos e os admiram nos outros, enquanto menosprezam os verdadeiros valores da vida.” Ora, o que significa a expressão “os verdadeiros valores da vida”? 

É evidente que, para cada ser humano, esta pergunta vai resultar em respostas diversas. Se alguém responder “deus” como um dos verdadeiros valores, já sabemos que esse não é um valor para Sigmund de ouro, tampouco para este que aqui escreve. Para alguém, um dos verdadeiros valores da vida será a amizade, mas para outro, como Oscar Wilde, será o desprezo, ou a indiferença. Em suma, não existem, de forma generalizada, os tais “verdadeiros valores da vida”. Para Freud, seriam o conhecimento, o estudo, mas para alguém poderia ser, com igual validade, o dinheiro. Não há absoluto neste ponto. A própria vida humana é um valor? Não para mim, de modo geral. Em particular, a vida é um valor para mim: a minha vida, a dos meus filhos. De modo universal, a vida humana não é um valor: o ser humano pode, deveria até, desaparecer do planeta, ou do universo, que não faria falta, não haveria qualquer abalo na força. Não há “deus”, para Freud e para mim, não há um plano para o ser humano, o que faz da vida humana um acaso, não um valor. 

Machismo: Freud diz que “as mulheres representam os interesses da família e da vida sexual; o trabalho da cultura se tornou sempre mais um assunto de homens, coloca-lhes tarefas sempre mais pesadas, força-os a sublimações dos impulsos de que as mulheres são pouco capazes.” E mais: “a mulher se vê relegada a um segundo plano pelas exigências da cultura e entra em uma relação hostil com esta.” É evidente que Freud era homem do seu tempo, a desvalorização das mulheres era comum. Isso não significa que se possa desculpar a curta visão do doutor, deveria ter enxergado além de seu tempo. 

Outro defeito grave inerente ao pensamento de Sigmund é que ele se mete na antropologia – e em outros campos de ciências – sem ter a devida capacidade e formação. A parte em que ele sugere a forma como os humanos dominaram o fogo é bizarra e ingênua. Qualquer um de nós pode escrever um ensaio, e é isso que Freud fez nesse livro. Todavia, o problema que decorreu dos ensaios de Sigmund é que seus seguidores, e ele mesmo, passaram a achar que tudo ali estava bem correto e fundamentado, e isso está muito longe de corresponder à verdade. 

“Ensaio é uma obra de reflexão que versa sobre determinado tema, sem que o autor pretenda esgotá-lo, exposta de maneira pessoal ou mesmo subjetiva. Ao contrário do estudo, o ensaio não é investigativo, podendo ser impressionista ou opinativo.” 

O grande problema com Freud é que, detestando a religião e deus, ele originou, por sua vez, uma religião. Esse pessoal que segue as ideias de Freud parece um bando de fanáticos religiosos, e ninguém pode sequer discordar dos dogmas do Moisés-Sigmund. É o que me parece. 

O lado bom deste livro instigante é a análise que o autor faz acerca da felicidade, da impossibilidade de sermos felizes (não está no plano da “criação” a felicidade dos humanos), acerca do sofrimento e acerca do delírio religioso. A parte em que Freud se coloca contra o ingênuo preceito de “amarás a teu próximo como a ti mesmo”, e demonstra o absurdo de uma tal proposta, e ainda aponta que o próximo é digno de hostilidade e mesmo de ódio, é sensacional e divertida. Iconoclasta, aquele que se tornou um ícone. 

Vale a pena ler Freud, todavia com muito bom senso e senso crítico, não se pode engolir tudo o que ele inventava na cabecinha de menino mimado de mamãe que ele tinha. 

Primeiro parágrafo e trecho. 

“É impossível escapar à impressão de que os seres humanos geralmente empregam critérios equivocados, de que ambicionam poder, sucesso e riqueza para si mesmos e os admiram nos outros, enquanto menosprezam os verdadeiros valores da vida. No entanto, ao efetuar qualquer juízo geral desse tipo, corre-se o risco de esquecer a variedade do mundo humano e de sua vida psíquica. Há alguns poucos homens aos quais não é negado o respeito de seus contemporâneos, ainda que a sua grandeza resida em qualidades e realizações inteiramente alheias às metas e aos ideais da multidão. Não será difícil supor, porém, que apenas uma minoria reconheça esses grandes homens, enquanto a grande maioria nada queira saber deles. Mas as coisas podem não ser tão simples assim, graças às discrepâncias entre o pensar e o agir dos seres humanos e à multiplicidade de seus desejos.” 

“É particularmente digno de nota o caso em que um grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de obter garantias de felicidade e proteção contra o sofrimento mediante uma transformação delirante da realidade. Precisamos caracterizar também as religiões da humanidade como delírios coletivos desse tipo. E quem toma parte no delírio, obviamente nunca o reconhece como tal.”

O Aleph, Jorge Luis Borges, 1949

O Aleph, Jorge Luis Borges, 1949, 146 páginas, tradução de Flávio José Cardozo, Editora Globo. Início: 05/12/2020 – Fim: 10/12/2020. 

No Clube de Leitura, conversamos sobre o conto “O imortal”, de Borges e o conto “O imortal”, de Machado. A conversa, como sempre, demonstrou visões particulares, convergentes, divergentes, concomitantes e enriquece a compreensão da obra. A conversa seguiu por tópicos como mortalidade e imortalidade, transitoriedade, o possível enfado que a imortalidade causaria, as diferenças entre as abordagens machadiana e borgeana, a coincidência de métodos para adquirir e perder a imortalidade, a arquitetura sem fim dos imortais, os setenta anos no poço, as mentiras de Borges (mas todo escritor de ficção é um mentiroso), a constatação de que os três primeiros contos do livro “O Aleph” discorrem sobre a morte (O imortal, O morto, Os teólogos), o recurso utilizado por Borges do “manuscrito encontrado”, que também é usado em inúmeras obras, a opção de Machado em mostrar a tentativa de decapitação do imortal. Durante a conversa, outros autores forma chamados a participar, como H. P. Lovecraft, Sigmund Freud, Milan Kundera, Mary Shelley, Vladimir Nabokov. 

Depois da releitura daquele conto, deu vontade de reler todo o livro e foi o que fiz. Havia muito que não voltava a Borges e continuo gostando. Este livro e muitos outros dele merecem ser lidos, os contos são intrigantes, Borges tem uma enorme erudição, os contos discutem a vida e a morte, deus, a literatura, recomendo fortemente. 

Aviso de spoiler: vou descrever resumidamente todos os contos do livro, continue por sua conta e risco. 

O imortal. O prólogo que se passa em Londres, em 1929, e usa o recurso do manuscrito encontrado. Joseph Cartaphilus vende uma edição da Ilíada que contém um manuscrito. Pouco meses depois, Cartaphilus morre no naufrágio do navio Zeus. 

I. Um soldado romano inicia uma expedição com duzentos soldados em busca de um rio que dá a imortalidade, no tempo de Diocleciano (284 – 305), em Tebas Hekatompylos, a cidade das cem portas, Egito. A expedição passa por desertos, perdem-se soldados, motins, pirâmides, torres e labirintos. 

II. A cidade dos imortais seria na África? O romano chega a uma cidade, tribo de trogloditas, é manietado e pula de uma altura de nove metros. Descobrimos que é Marco Flamínio Rufo, tribuno militar romano. Bebe água do arroio sujo. Vai até a cidade de muros impenetráveis. Encontra uma caverna e um poço, escadas, vasta câmara circular subterrânea com nove portas – faz pensar em H. P. Lovecraft – outra câmara e outra e outra, no vertiginoso, no mais alto, vê o céu azul quase púrpura, vertigem para cima, construções anteriores aos homens, anterior à terra, novamente Lovecraft, obra dos deuses, deuses morreram, os deuses estavam loucos, escadas sem sentido de M. C. Escher, essa cidade “contamina o passado e o futuro e compromete os astros”, o personagem volta aos hipogeus. 

III. O troglodita que ficou esperando o romano recebe o nome de Argos, tentativa de ensinar a linguagem a Argos, macaco não fala deliberadamente para não ser obrigado a trabalhar, chove e os trogloditas dançam como coribantes, Argos é Homero. 

IV. Os imortais, a cidade desatinada, deuses irracionais que governam o mundo, os mortais veneram o primeiro século (incompleto até), o prazer do pensamento, a morte torna os homens preciosos, no século dez partem em busca do rio da mortalidade. 

V. As viagens em busca do rio, em 1921 encontrou, tornou-se mortal, dormiu até o amanhecer. Certa confusão nos trechos finais, a separação entre narradores não é clara, era Homero ou o centurião. Há uma revisão do narrador. Depois, um pós-escrito de 1950 discutindo se o manuscrito é apócrifo. 

O morto. Sobre um integrante de bando que tenta sobrepujar o chefe, deixam ele se arvorar em chefe, depois é morto porque sempre esteve morto desde o momento que decidiu tentar ser chefe. 

Os teólogos. Conto confuso sobre dois teólogos que estudam e lutam contra as heresias, um deles condenado pela Inquisição, morre na fogueira, o outro morre em um incêndio, para deus, que não está interessado em diferenças religiosas, eles são a mesma pessoa. 

História do guerreiro e da cativa. Um guerreiro bárbaro muda de lado e defende a cidade de Ravena no século seis. No dezenove, uma inglesa vive como índia no interior da Argentina, histórias antagônicas ou ímpeto secreto. 

Biografia de Tadeo Isidoro Cruz. Um rapaz do interior argentino, vida dura, com elipses, casa, vira soldado, em uma expedição para prender alguém, muda de lado e junta-se a Martín Fierro. 

Emma Zunz. Uma moça descendente de alemães, cujo pai se suicidou por culpa do dono da fábrica onde ela trabalha, arma uma situação em mata o homem e diz que foi atacada e violentada por ele. 

A casa de Astérion. O Minotauro em seu labirinto descreve sua vida solitária. 

A outra morte. Neste conto, as memórias dos personagens em relação à morte de Pedro Damián mudam de forma inexplicável. Borges, também personagem, pensa inicialmente que o passado foi modificado e resultou na criação de dois universos. No final, ele prefere outra explicação para as duas mortes de Damián. Para mim, ficou a pergunta: quem será que explorou pela primeira vez, na literatura, a ideia de que a modificação do passado resultaria em universos paralelos? 

Trecho: “Modificar o passado não é modificar um só fato; é anular suas consequências, que tendem a ser infinitas. Por outras palavras: é criar duas histórias universais.” 

Deutches Requiem. Um nazista, ex-chefe de campo de concentração, agora condenado à morte, tece considerações sobre guerra, destino, judaísmo, a Alemanha, sobre a nova ordem que necessitava destruir para nascer, inclusive destruir a própria Alemanha. Na época do livro, 1949, até fazia sentido como sarcasmo, ironia, não aceitação da derrota, mas hoje com a Alemanha poderosa, não faz tanto sentido. 

A busca de Averróis. Borges tenta imaginar como teria sido uma parte da vida de Averróis, o qual tenta descobrir o que significam os termos comédia e tragédia na obra de Aristóteles, e tudo se dissolve no ar. 

O Zahir. O narrador diz que Zahir significa evidente, visível, e que é, também, um dos noventa e nove nomes de deus. O Zahir é um objeto qualquer, aleatório, que depois de visto fica na mente do observador, enlouquecendo-o. 

Trecho: “Terão que alimentar-me e vestir-me, não saberei se é tarde ou manhã, não saberei quem foi Borges. Qualificar de terrível esse futuro é uma falácia, já que nenhuma de suas circunstâncias terá significado para mim. Tanto valeria sustentar que é terrível a dor de um anestesiado a quem abrem o crânio. Já não perceberei o universo, perceberei o Zahir.” 

A escrita do deus. Um sacerdote e um jaguar presos em uma câmara que semelha aquela do conto de Poe, “O poço e o pêndulo”, mas separados por uma parede, durante anos. O sacerdote descobre a escrita de deus, são quatorze palavras de quarenta sílabas, e este conhecimento faz com que não tenha mais conhecimento de sua situação ou forma humana. 

Abenjacan, o bokari, morto em seu labirinto. Um conto sobre troca de identidades, identidades voláteis são tema caro a Borges. Zaid, o vizir de Abenjacan, o trai e foge com seu tesouro, e constrói um labirinto no qual espera que venha encontrá-lo para se vingar. 

Os dois reis e os dois labirintos. Continho curto sobre humilhação, vingança e o deserto como labirinto. 

A espera. Homem espera pela chegada de assassino que vem, aparentemente, para uma vingança, o homem adota o nome do assassino. 

O homem no umbral. Bom conto sobre a vingança da população contra um juiz violento e corrupto. 

O Aleph. O primeiro parágrafo é perfeito. O Aleph é um ponto que proporciona visão de tudo, o universo inteiro e cada detalhe, tudo ao mesmo tempo. O personagem ama incondicionalmente uma mulher que o despreza, em vida e após a morte dela. 

Trecho: “Na ardente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da Plaza Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros vermelhos; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudara o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que, alguma vez, minha vã devoção a exasperara; morta, eu podia consagrar-me a sua memória, sem esperança, mas também sem humilhação.” 

A intrusa. Triste conto em que a amizade entre irmãos leva ao assassinato da mulher amada por ambos.