A tempestade, William Shakespeare, 1611

A tempestade, William Shakespeare, 1611, 116 páginas, tradução de Beatriz Viégas-Faria, L&PM. Início: 02/02/2021 – Fim: 04/02/2021. Nota 3 (Escala: 1 – Ruim, 2 – Regular, 3 – Bom, 4 – Ótimo, 5 – Obra-prima). 



Aviso de spoiler: vou escrever sobre todo o enredo do livro, continue por sua conta e risco. 

Logo dizer que “A tempestade” emociona porque parece a despedida de Shakespeare. Não podemos saber se foi essa a intenção, mas parece: dois solilóquios de Próspero permitem essa interpretação. 

A peça conta a história de Próspero, duque de Milão e feiticeiro, expulso pelo irmão, Antônio, que tomou o seu lugar; Antônio foi ajudado na conspiração por Alonso, rei de Nápoles. Próspero exila-se em uma ilha, com a filha Miranda, e toma posse do lugar, por meio de seu poder mágico. A ilha pertence de fato ao semi-humano Caliban, filho da bruxa Sicorax com o demônio Sétebos. 

A peça começa quando Próspero produz uma tempestade contra uma frota que passava ao largo. Um dos navios transportava os nobres: o rei Alonso, de Nápoles, e o usurpador duque de Milão, Antônio, entre outros. Após algumas peripécias, piadas, zombarias, e demonstrações do enorme poder de Próspero, este recupera o ducado e sua filha Miranda prepara-se para casar com Ferdinando, filho do rei de Nápoles. 

Bom o leitor deve considerar, de início, que a peça é uma comédia. Muitas cenas são repletas de piadas, trocadilhos e brincadeiras. Apesar da maldade de Caliban, e da maldade de Antônio, Sebastião, Estéfano e Trínculo, não ocorre a vingança, tampouco a punição, no tempo da peça. 

Próspero aventa, no futuro, uma possível punição a Antônio e Sebastião, que conspiraram contra o rei Alonso, na ilha. Não é dito, mas é possível que Caliban enfim torne-se o dono de sua ilha, novamente, embora solitário, visto que Próspero voltará para Milão. 

A peça é leve, plena de magia, de canções e seres fantásticos, uma fantasia. 

Todavia, cabe considerar outros aspectos. 

- Caliban tem toda a razão em odiar Próspero. A ilha pertence a Caliban visto que pertencia à mãe do monstro, a bruxa Sicorax. Próspero diz, em sua defesa, que tentou de tudo para civilizar o semidemônio, mas será que podemos confiar no feiticeiro? Caliban, não apenas como vingança contra Próspero, que o escravizou, tenta violar Miranda e, se conseguisse, diz que iria povoar a ilha de Calibans. 

- Próspero libertou Ariel de uma árvore, na qual o ser etéreo fora aprisionado pela bruxa Sicorax. A bruxa morreu esquecida de Ariel e ele passou doze anos preso. Em compensação por ter libertado Ariel, Próspero também o escraviza; porém, de forma mais suave: Ariel é o executor de feitiços. Já Caliban faz todo o trabalho pesado. Ariel quer a liberdade, que Próspero demora a conceder. 

- Antônio, irmão de Próspero e usurpador do ducado de Milão, é uma natureza malévola. Ao ver o rei de Nápoles dormindo, logo instila a ambição em Sebastião e sugere ao irmão do rei que mate Alonso para assumir o trono. 

- Miranda tem apenas quinze anos. Como Julieta (treze anos), o que essa tolinha sabe sobre amor? Somente viu na vida o próprio pai e Caliban. Ao ver Ferdinando, se apaixona. Experiência zero. Não sei se pelo tom de comédia ou pela época, a virgindade de Miranda é debatida várias vezes. Ferdinando só promete a ela o casamento se ela for realmente virgem. 

Cabe considerar, ainda, o preconceito de que o belo é bom; o feio e deformado é mau. 

Por outro lado, a peça pode, sim, ser vista como uma divertida festa de duas horas de duração, espetáculo de brincadeiras e magia, na qual Shakespeare, na figura de Próspero, anuncia sua despedida do teatro e pede que o libertem. Mesmo sem esse suposto elemento da “despedida”, a peça é uma festa de magia e fantasia, com toques de maldade extrema e de violência, e com um final leve e melancólico. 

 

Resumo. 

Ato 1, cena 1. 

Tempestade. Naufrágio do navio que transporta o rei de Nápoles e o duque de Milão. 

Ato 1, cena 2. 

O feiticeiro Próspero conta a sua filha Miranda que ele é o verdadeiro duque de Milão. Antônio, irmão de Próspero usurpou o ducado e o expulsou em um barco, com a ajuda do rei de Nápoles. Próspero provocou a tempestade para trazer todos a ilha e executar seus planos. 

Ariel é um ser etéreo e poderoso que obedece a Próspero porque este o salvou de um aprisionamento quando chegou na ilha. Caliban é um ser deformado e monstruoso, filho da bruxa Sicorax, antiga dona da ilha. Próspero tomou a ilha de Caliban. Caliban tentou estuprar Miranda. 

Ferdinando, filho do rei de Nápoles, é trazido por Ariel à presença de Próspero. Interesse mútuo entre Miranda e Ferdinando, como Próspero esperava. 

Ato 2, cena 1. 

Na ilha, o rei Alonso deprimido pela possível morte do filho. Gonçalo, nobre que ajudou Próspero em Milão, tenta animar o rei. Antônio, duque de Milão, e Sebastião, irmão do rei de Nápoles, fazem gracejos e zombarias. Gonçalo descreve a sua Utopia, se governasse uma nação. 

Ariel faz todos adormecerem menos Antônio e Sebastião. 

“This is a strange repose, to be asleep

With eyes wide open – standing, speaking, moving –

And yet so fast asleep.” 

Antônio diz que, com forte imaginação, vê uma coroa sobre a cabeça de Sebastião; com isso instila a ambição em Sebastião, como fez Lady Macbeth: e eles combinam de matar o rei Alonso e Gonçalo. Ariel intervém e acorda os dois. 

Ato 2, cena 2. 

Encontro de Caliban, Trínculo (um bufão), e Estéfano (um bêbado). Os três se embebedam; Caliban imagina que eles podem libertá-lo de Próspero. 

Ato 3, cena 1. 

Ferdinando e Miranda trocam juras de amor e promessas de casamento. 

Ato 3, cena 2. 

Caliban incentiva Estéfano e Trínculo a matarem Próspero e tomarem posse da filha dele e da ilha. 

Ato 3, cena 3. 

O grupo de nobres vaga pela ilha em busca de Ferdinando. Seres mágicos preparam um jantar. Ariel, como harpia, desfaz o jantar e fala da traição a Próspero. 

Ato 4, cena 1. 

Próspero concorda com o casamento de Miranda e Ferdinando. Vários avisos sobre a manutenção da virgindade de Miranda. Uma exibição de deusas e ninfas. A visão se esvanece, como a vida humana. Somos feitos da mesma matéria dos sonhos. 

“The cloud-capp’d tow’rs, the gorgeous palaces,

The solemn temples, the great globe itself,

Yea, all which it inherit, shall dissolve,

And like this insubstantial pageant faded

Leave not a rack behind. We are such stuff

As dreams are made on; and our little life

Is rounded with a sleep.” 

“As torres que alcançam as nuvens, os esplêndidos palácios, os templos solenes, o próprio globo imenso, sim, com tudo o que ele contém, tudo se dissolverá, e como este intangível desfile nebuloso, não deixará sequer um vestígio. Nós somos coisas tais como os sonhos são feitos; e nossa pequena vida é cercada pelo sono.” 

Caliban, Estéfano e Trínculo chegam à gruta para matar Próspero, roubam roupas, mas são perseguidos por cães e gnomos. 

Ato 5, cena 1. 

Solilóquio no qual Próspero se despede da Arte (da magia). Soa como a despedida de Shakespeare do teatro. 

“Eclipsei o sol do meio-dia, convoquei os ventos amotinados. [...] Ao meu comando, sepulturas iam despertando os que nelas dormiam. [...] Aqui e agora, renuncio a essa mágica escabrosa [...] quebro minha varinha mágica [...] e afogarei o meu livro.” 

Ariel traz o grupo de nobres para a gruta de Próspero. Este mostra ao rei Alonso que Ferdinando está vivo. Miranda se extasia com o “admirável mundo novo”. 

“O wonder!

How many goodly creatures are there here!

How beauteous mankind is! O brave new world

That has such people in’t!” 

Próspero recupera o ducado. Não há vingança contra Antônio e Sebastião. Caliban também não é castigado. Ariel é libertado. 

Epílogo. 

Solilóquio de Próspero: nova despedida de Shakespeare. Os feitiços estão terminados, ele pede que o público não o deixe confinado na ilha, pede para ser libertado. 

“Libertem-me de minha atroz prisão ainda agora,

Com palmas, com aplauso, com as mãos tão generosas [...].”