água com gás


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ontem, ele não teve aula pela manhã. na quase hora do almoço, ele foi almoçar no pequeno restaurante de sempre, perto do trabalho, mesmo não tendo ido trabalhar de manhã. a galega e a morena, ambas do banco do brasil estavam lá, o que não tem nem esperança nem significado.
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depois do almoço, ele retirou notas de papel moeda no banco e caminhou, atravessando pontes, até a casa de câmbio e comprar euros.
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a moça que atende na casa de câmbio é um espetáculo.
ele já se decepcionou várias vezes quando outros referiam uma moça como espetáculo (ou tal), e chegando lá, vendo lá, a moça em questão não era essas coisas todas.
é sempre um julgamento particular e depende do momento, de tudo e todos.
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a moça da casa de câmbio sempre está bem vestida.
usa anéis (dourados) (de ouro) nas duas mãos e na mão esquerda algo assim como uma aliança.
- você é casada? ele pergunta, apontando para a mão dela, através do vidro.
- sim. ela responde sem expressão aparente e sem complementos.
aqui, no brasil, somente a aliança não diz nada, as moças que atendem ao público, em bancos, em lojas, costumam usar aliança mesmo não sendo casadas para afastar os importunos.
visto que os brasileiros não têm limites sexuais, não têm limites no assédio.
então, as moças tentam se proteger assim.
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a moça da casa de câmbio, fernanda, é morena da pele de cor linda, como acobreada mesmo sem sol. tem uma bunda linda, maior que a da maioria, redonda, uma bunda como satélites que a puxam em direção ao centro da terra.
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o momento mais esperado da compra de euros, é esse, quando a moça diz que vai buscar o valor “lá em cima”, e se vira e descortina a bunda para ele.
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tem um rosto bonito e redondo.
tem dias em que está mais simpática, tem dias em que está mais calada.
tem dias em que sorri, tem dias em que não.
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ele compra euros e circula, sem querer, pelo centro da cidade, calor, músicas da pior qualidade misturadas com músicas de natal, uma guirlanda insuportável de ruídos para lembrar a todos que é natal e que não há tempo para pensar.
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uma mulher com quatro filhos caminha arrastando o batalhão, entrando em lojas, compras de natal.
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ele volta para a livraria que fica na margem do rio.
pega saramago para o amigo. pega alguns roth. sobe para o café. pede um expresso e uma água mineral com gás.
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ele lembra que não gostava de água mineral com gás e que passou a gostar e ele se interroga a si como isso aconteceu, porque? e se lembra que, um dia, uma bela mulher, depois da foda, andou nua até a geladeira e abriu uma garrafa de água com gás, colocou em dois copos e trouxe para ele que ainda estava na cama.
a água mineral com gás ficou gravada assim, uma memória permanente de uma bela e delicada mulher.
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então, um expresso e uma água com gás.
ele lê trechos dos livros que pegou. uma mulher se aproxima e é uma das mais (interessantes) que trabalham com ele no mesmo local.
não é jovem. uma mulher madura, indefinível entre os quarenta e os cinquenta anos. loira. a pele branquíssima. a pele do rosto muito muito lisa. ele tem vontade de perguntar o que ela faz para manter assim o rosto. tem peitos e bunda em boa quantidade. nunca conversaram muito, ele sempre a observa de longe.
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ele a convida para sentar. pedem dois expressos. a conversa gira em torno de livros. mas a moça tem compromissos. mas, ele pensa, que acaso bom, esse, desses que acontecem em livros. na vida real, os acasos são tão sem graça. nenhuma mulher agradável surge e se senta conosco nas mesas dos cafés.
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a moça, cristiana, diz que começou e não conseguiu continuar a leitura do (ensaio sobre a cegueira). a moça coloca papel e moedas para pagar o seu café e vai.
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ele pede mais uma água com gás.
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dois adultos-adolescentes conversam na mesa ao lado, um deles diz que o (ensaio sobre a cegueira), o livro, novamente, está muito caro, e diz: um livro nacional!, o outro adverte que não é um livro (nacional), é português, (tá ligado)?
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um livro de rubem fonseca também o interessa. esse livro tem um certa marca, também. talvez você pense que ele não tem a mínima profundidade, e é verdade, somente mulheres e sexo lhe interessam. o livro de rubem fonseca, ele e uma amiga que veio se despedir – ia embora do país por alguns anos – ele e ela pegaram o livro, folhearam, ela pensou em levar esse livro mas acabou por deixá-lo.
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ele deixa reservados todos esses livros, não quer carregar um pacote tão grande agora.
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vai para a aula, no trabalho, o curso fora de órbita que algum chefe inventou que os empregados precisavam. a perda de tempo. o tempo sem escrever. o tempo sem desenhar. a vida escorrendo.
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depois de uma hora de aula, foge quase desesperado. motocicleta. vai para o atelier.
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outros já estão por lá. o aparelho de som toca alguma música brasileira. ele limpa as duas telas que foram terminadas ontem com um pincel largo, quase uma mão, e macio, de cerdas louras – o cabelo de muitas louras.
ele estende na parede as telas, acabadas, uma em que predominam os vermelhos e pretos, uma em que predominam os brancos e amarelos. as duas juntas se combinam, fica tudo (muito bem)...
fotografa as telas, essas e outras. leva essas e outras para o estoque, onde ficam deitadas e cobertas por plásticos, uma a uma.
um passarinho doido e bem pequeno faz, está fazendo, um ninho em torno de uma das lâmpadas do estoque.
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lá embaixo, no chão da área externa do atelier, onde ele trabalha, estende o tecido para mais duas telas e começa o (jogo) de lançar camadas e camadas de tinta.
marcar as telas, deixar o tempo atuar. deixar marcas de objetos, madeiras.
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nos intervalos entre uma e outra camada, para secar, ele encontra um livro solto pelo atelier e deitado no chão sob o céu azul sem nuvens, lê (o anticristo), nietzsche. não é para ser pernóstico...
pernóstico = presumido, afetado, pretensioso, pedante...
não é para ser pernóstico, amostrado, mas era esse mesmo o livro que estava perdido por lá, esse que ele pegou, havia chão e havia céu, o chão estava na sombra, ele deitou, sem travesseiro ou pedra, e leu trechos do livro contra o céu azul.
o chão doeu, ele continuou a ler na cadeira.
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saiu do atelier e foi para casa. bolachas e suco de caju. deitar, descansar. vestiu a roupa própria de pedalar e foi para o ponto de encontro de saída da pedalada, na frente do restaurante na margem do rio.
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pedalada, conversas. parada breve no meio da pedalada no bairro antigo da cidade. as ruas e muitas praças e muitos prédios públicos iluminados para natal e ano novo. até bonita a cidade feia.
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no final da pedalada, ele e outros comem algo no restaurante da margem do rio, na cabeceira da ponte.
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casa, banho, dormir.
antes de deitar, helena pede que ele coloque para tocar as músicas da trilha sonora daquele filme, (the lake house).
deitar, dormir. dorme.
muito mais tarde, helena se deita a seu lado, pega no pau dele, murcho, e faz com que o pau fique duro, mesmo com sono. sexo. lavam-se. antes de voltar para a cama, pegam taças e tomam água com gás.