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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Vida querida, Alice Munro, 2012

Vida querida, Alice Munro, 2012, 316 páginas, tradução de Caetano Galindo, Companhia das Letras. Nota 3 (escala de 1 a 5).



Releitura. Boa parte dos contos traz um final aberto. Isso incomoda. Munro poderia ter dado um acabamento melhor. Muita vez parece que a autora não soube concluir. Ou quer que o leitor fique com material para pensar, elaborar, tecer futuros possíveis. Sou preguiçoso, quero que me contem tudo. 

São histórias melancólicas, por vezes tristes, culpas antigas, vidas que seguem, que tentam seguir. Muitos personagens querem apenas ser deixados em paz com seus defeitos, suas culpas. A vida vai continuando apesar dos erros e desejos, tudo passa. 

Breve resumo de cada conto. 

Que chegue ao Japão. Um bom conto, mas o final fica em suspenso. Greta é poeta, o marido é engenheiro. Greta vai de Vancouver a Toronto de trem, conhece um jovem no trem. Em Toronto, mora um homem pelo qual ela tem interesse. 

Amundsen. A jovem professora vai trabalhar em um sanatório para doentes de tuberculose. Ela é pedida em casamento pelo médico que administra o lugar. Final melancólico com certa dose de dúvida. 

Deixando Maverley. Bom. A vida do casal Ray e Isabel segue em paralelo com a vida da jovem Leah. Esta toma decisões inusitadas, que são acompanhadas de longe pelo casal. Há um pouco de ciúme de Isabel, lá longe. O final parece indicar o início de uma nova história. 

Cascalho. A mãe se envolve com teatro, abandona o pai e a vida confortável, e leva os dois filhos. Uma tragédia com a filha mais velha. Feridas permanentes em todos, especialmente no irmão mais novo. Culpa perpétua? 

Recanto. Irmãos: um médico e uma violinista. O médico é um cara rigoroso, autoritário, e parece odiar a irmã que optou pela leveza da arte. 

Orgulho. Um rapaz que teve lábio leporino. Uma moça que foi de família rica. Vidas paralelas que se tocam, mas a moça insiste em um contato mais profundo. O rapaz não quer mudanças em sua vida metódica. 

Corrie. Um bom conto, muita melancolia e certa raiva ao final. Howard, um crápula, engana Corrie, sua amante, durante anos, por meio de uma falsa chantagem. 

Trem. Muito bom. Jackson volta da guerra, mas evita sua cidade natal e a namorada. Instala-se em uma fazenda que pertence à Belle. Anos depois foge de Belle. Depois disso, mais uma fuga. O leitor descobre, com sutileza da autora, os motivos de Jackson. 

Com vista para o lago. É meio uma fantasia, uma rememoração fantasiosa de um episódio, ou com lacunas, por parte de uma mulher que deve estar com demência. Dá agonia e impaciência. Triste. 

Dolly. Bom. Um casal de velhos ativos, ele poeta. Uma antiga namorada que surge, um equívoco, suspense e angústia e o esclarecimento. 

Finale. A autora diz que nesta parte não há “exatamente contos”. São recordações mais ou menos autobigráficas, episódios de infância e começo da adolescência. 

O olho. A criança vai com a mãe ao velório da jovem que cuidava dela. A narradora vê o movimento quase imperceptível do olho da moça morta; um aceno só para ela, a criança. 

Noite. Noites de insônia da menina, pensamentos maus, a casa e os arredores na escuridão. 

Vozes. A menina e a mãe comparecem a um baile na casa de um vizinho e retiram-se às pressas porque uma prostituta também foi ao baile. 

Vida querida. Recordações da casa da família, afastada do centro da cidade, no limite entre campo e cidade. O rigor da mãe, os castigos, a mãe acometida do mal de Parkinson.

domingo, 1 de novembro de 2020

Felicidade demais, Alice Munro

 

Releitura. A maior parte dos contos é muito boa, vale a pena conhecer o universo, sempre melancólico, de Munro. Personagens sem nome que narram suas histórias retrospectivamente, eventos marcantes da infância ou da juventude com o olhar da maturidade. 

Dimensões. Doree casa aos dezesseis com Lloyd, bem mais velho, e tem três filhos em sequência. Lloyd é controlador, ciumento, possessivo, paranoico. Mata as três crianças após uma discussão com Doree. Inimputável, louco. Diz ver as crianças vivas em outra dimensão. Doree continua ligada ao louco. O final do conto ensaia uma libertação para ela.

Ficção. Joyce e Jon tem uma vida mediana e agradável. Ele a deixa por sua ajudante, Edie. Anos depois, Joyce está casada novamente, Jon está na terceira esposa, e Joyce conhece uma jovem escritora que está lançando seu primeiro livro de contos. Joyce se reconhece em um dos contos e percebe que a escritora é filha de Edie.

Wenlock Edge. O título do conto é um poema que a personagem lê nua. Uma moça que vai para a universidade e conhece uma moça despanaviada, Nina, que entra em sua vida e na de seu primo Ernie e some no mundo.

Buracos-profundos. Um menino cai em um buraco durante um piquenique com os pais e quebra as pernas. Na juventude, o rapaz desaparece da casa da família, abandona planos e faculdade, some no mundo. Décadas mais tarde é encontrado pela irmã e pela mãe: é um tolo que se acha iluminado desde a queda, quer ajudar os outros e vive na miséria, e tem um discurso ingênuo e irritante, jogou a vida fora.

Radicais livres. A mulher acabou de perder o marido, infarto fulminante, oitenta anos. Um homicida e assaltante invade a casa dela, ela está nervosa, mas consegue conversar com o rapaz.

Rosto. Já aposentado, homem que nasceu com uma mancha em um lado do rosto revê sua vida e a amizade de infância com Nancy, menina que morava em uma casinha no mesmo terreno da casa dele.

Algumas mulheres. Bruce voltou da Segunda Guerra, tem leucemia e está nas últimas. Uma adolescente trabalha na casa da mãe dele, onde ele está com a esposa, durante o verão e acompanha uma disputa surda entre a quiropata Roxanne e a esposa de Bruce.

Brincadeira de criança. Mulher recorda acontecimento fatídico em acampamento de verão durante a infância: Marlene e Charlene reencontram Verna, uma criança especial da qual Marlene não gostava.

Madeira. Conto fraquinho onde Roy adora cortar árvores para fazer lenha e sua esposa Lea está vivendo uma fase de depressão. Lea surge, no final, ativa e diferente sem explicação e sem motivo.

Felicidade demais. Conto confuso no início, mistura épocas e cidades, o leitor fica desnorteado. Depois fica mais cronológico e se dá a entender. História real de uma matemática do século XIX. Tudo muito corrido, seria mais adequado um livro do que um conto.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Pedacinho

Sala de espera do exame. Mulher, setenta anos, senta-se na borda da cadeira, virada para a recepção, pronta a entrar em atividade, prontidão, inútil, irão chamá-la pelo nome no momento certo. Duas mulheres de cinquenta anos conduzem a mãe velha, bastava uma, não era necessário aquela procissão para conduzir a velha, a velha fica largada em uma cadeira, torta, as duas, devem ser irmãs, colocam as fofocas em dia, uma delas, mais gorda e com uma blusa vermelha apertada nas gorduras, está com um livro grosso de Ruy Castro. Uma alma que se salvou, ninguém lê mais papel. Homem alto, largo, mas não gordo, acompanhado de mulher miúda, submissa, se vê, ele será o examinado, fala mais alto do que o necessário, usa bermudas e fala ao telefone resolvendo assuntos tão importantes e tediosos de empresário, deve ser um saco ser casada com esse aí. Levei um livro, Alice Munro, contos, e releio e remarco as frases importantes. Minha irmã é minha acompanhante, tive que recorrer a ela, marido jamais teria tempo para ir comigo a um exame, ademais, ele tem horror a doenças, hospitais e médicos, doençafóbico, e o trabalho dele é mais importante do que eu. Marido diz que não, mas nem gosta de tocar em mim quando estou doente, pavor de doença, não fala de doença, acha que atrai. Minha irmã sabe que não gosto de conversar em sala de espera, aí fica bem caladinha, apesar de sermos inimigas desde criancinhas, mas na hora agá e jota só tenho ela para me acudir. Me chamam, entro sozinha, claro, a enfermeira me bota na maca, fui de vestido, então ela diz que não preciso tirar o vestido, apenas a calcinha, devia ter ido sem calcinha, tiro a calcinha e ela empacota minha calcinha em um papel toalha. Fique deitada na maca, diz, fico um tempão, não sei por que fazem entrar se não vão fazer logo o exame, sentei na maca, botam a gente deitada logo para que a gente se sinta indefesa. Me arrastam para a sala do procedimento, cheia de tubos e máquinas e telas. Gente de branco. Um cara de branco fura um vaso na minha mão e diz vai arder, enquanto injeta um líquido que pode me matar, começa a arder e a doer, eu digo tá doendo, ele diz vai passar, eu digo tá doendo mui, e fica tudo escuro. Que delícia, o pretume total, queria ficar ali para sempre, nunca mais sair dali. Não tem sonho, não tem marido, não tem a menina, não tem frio, não tem calor, nada, morrer é assim e é sensacional. Tempão depois, começo a ressuscitar, são flashes de realidade, aquela luz seca de hospital, dói, mas ainda estou confortável, me embrulharam em um cobertor de alumínio, como filme de tragédia, vou mais consciente, minha irmã ali do lado, lê um livro, não sei para quê acompanhante, incomodar alguém. Não quero despertar, não quero ser revivida, mas não tem jeito. Grogue, meio cá meio lá. A médica vem e diz que foi tudo bem, mas tinha uma coisinha e tiraram um pedacinho e vai fazer uma biópsia, odeio essa palavra biópsia. Então não foi tudo bem, ora. Me cortaram um pedaço sem eu saber nem sentir. Detesto os diminutivos da médica e não, não foi tudo bem. Posso ir para casa, uma fome do bonde, não ando direito, minha irmã me leva, chego em casa não tem comida, sem mim aquilo vira uma zona, não quero saber de nada, dor de cabeça, vou para cama, só quero cama e dormir e nunca mais acordar. Esqueço a fome e a menina e marido e a zona da casa, durmo, apago horas, quero voltar para aquele lugar do nada absoluto.