Pedacinho

Sala de espera do exame. Mulher, setenta anos, senta-se na borda da cadeira, virada para a recepção, pronta a entrar em atividade, prontidão, inútil, irão chamá-la pelo nome no momento certo. Duas mulheres de cinquenta anos conduzem a mãe velha, bastava uma, não era necessário aquela procissão para conduzir a velha, a velha fica largada em uma cadeira, torta, as duas, devem ser irmãs, colocam as fofocas em dia, uma delas, mais gorda e com uma blusa vermelha apertada nas gorduras, está com um livro grosso de Ruy Castro. Uma alma que se salvou, ninguém lê mais papel. Homem alto, largo, mas não gordo, acompanhado de mulher miúda, submissa, se vê, ele será o examinado, fala mais alto do que o necessário, usa bermudas e fala ao telefone resolvendo assuntos tão importantes e tediosos de empresário, deve ser um saco ser casada com esse aí. Levei um livro, Alice Munro, contos, e releio e remarco as frases importantes. Minha irmã é minha acompanhante, tive que recorrer a ela, marido jamais teria tempo para ir comigo a um exame, ademais, ele tem horror a doenças, hospitais e médicos, doençafóbico, e o trabalho dele é mais importante do que eu. Marido diz que não, mas nem gosta de tocar em mim quando estou doente, pavor de doença, não fala de doença, acha que atrai. Minha irmã sabe que não gosto de conversar em sala de espera, aí fica bem caladinha, apesar de sermos inimigas desde criancinhas, mas na hora agá e jota só tenho ela para me acudir. Me chamam, entro sozinha, claro, a enfermeira me bota na maca, fui de vestido, então ela diz que não preciso tirar o vestido, apenas a calcinha, devia ter ido sem calcinha, tiro a calcinha e ela empacota minha calcinha em um papel toalha. Fique deitada na maca, diz, fico um tempão, não sei por que fazem entrar se não vão fazer logo o exame, sentei na maca, botam a gente deitada logo para que a gente se sinta indefesa. Me arrastam para a sala do procedimento, cheia de tubos e máquinas e telas. Gente de branco. Um cara de branco fura um vaso na minha mão e diz vai arder, enquanto injeta um líquido que pode me matar, começa a arder e a doer, eu digo tá doendo, ele diz vai passar, eu digo tá doendo mui, e fica tudo escuro. Que delícia, o pretume total, queria ficar ali para sempre, nunca mais sair dali. Não tem sonho, não tem marido, não tem a menina, não tem frio, não tem calor, nada, morrer é assim e é sensacional. Tempão depois, começo a ressuscitar, são flashes de realidade, aquela luz seca de hospital, dói, mas ainda estou confortável, me embrulharam em um cobertor de alumínio, como filme de tragédia, vou mais consciente, minha irmã ali do lado, lê um livro, não sei para quê acompanhante, incomodar alguém. Não quero despertar, não quero ser revivida, mas não tem jeito. Grogue, meio cá meio lá. A médica vem e diz que foi tudo bem, mas tinha uma coisinha e tiraram um pedacinho e vai fazer uma biópsia, odeio essa palavra biópsia. Então não foi tudo bem, ora. Me cortaram um pedaço sem eu saber nem sentir. Detesto os diminutivos da médica e não, não foi tudo bem. Posso ir para casa, uma fome do bonde, não ando direito, minha irmã me leva, chego em casa não tem comida, sem mim aquilo vira uma zona, não quero saber de nada, dor de cabeça, vou para cama, só quero cama e dormir e nunca mais acordar. Esqueço a fome e a menina e marido e a zona da casa, durmo, apago horas, quero voltar para aquele lugar do nada absoluto.