Capítulo 17.2 - Camus Pessoa
Tabacaria é um poema de Fernando Pessoa, escrito em 15 de janeiro de 1928, e publicado em julho de 1933. Pessoa atribuiu o poema a Álvaro de Campos, um de seus heterônimos. O estrangeiro é o livro mais famoso de Albert Camus, publicado em 1942. Considerando-se as datas, Camus poderia já ter conhecimento do poema quando escrevia seu romance. Há um trecho em O estrangeiro que guarda semelhanças com o poema de Pessoa.
Em Camus, a janela do quarto dá para uma rua movimentada, há uma menina que passa, a tabacaria do outro lado da rua, há o chocolate, o dono da tabacaria, uma cadeira e o cigarro. A impressão que se tem é de uma reconstrução do poema de Pessoa, talvez involuntária, talvez proposital. Em Pessoa, os elementos citados, presentes na origem e, fantástico, a sensação de que “tudo isto é estrangeiro”. Eis o trecho de Camus:
Meu quarto dá para a rua principal do bairro. A tarde estava bonita. No entanto, a rua parecia oleosa, as pessoas esparsas e, mais, tinham pressa. Primeiro, eram as famílias que passeavam, [...] uma menina com um grande laço cor-de-rosa e sapatos de verniz preto. [...]
Depois deles, pouco a pouco, a rua ficou deserta. Acho que os espetáculos tinham começado em todos os lugares. Só se viam nas ruas os comerciantes e os gatos. O céu estava puro, mas sem brilho, por cima dos fícus ao longo da rua. Na calçada em frente, o dono da tabacaria pegou uma cadeira, instalou-a diante da porta e sentou-se a cavalo, apoiando-se com os dois braços no encosto. Os bondes, há pouco cheios, estavam quase vazios. No pequeno Café Pierrot, ao lado da tabacaria, o empregado varria a serragem na sala deserta. Era realmente domingo.
Virei minha cadeira e coloquei-a como a do dono da tabacaria, porque achei que assim era mais cômodo. Fumei dois cigarros, entrei para buscar um pedaço de chocolate e voltei para comê-lo à janela. Pouco depois, o céu escureceu e achei que íamos ter uma tempestade de verão. Pouco a pouco, no entanto, o céu se foi desanuviando. Mas a passagem das nuvens deixara sobre a rua uma promessa de chuva que a tornou mais sombria. Fiquei muito tempo olhando o para o céu.
O poema de Pessoa é longo, não vou repeti-lo aqui; apenas destacar versos que contêm as semelhanças que vislumbro.
Janelas do meu quarto,
[...]
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
[...]
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
[...]
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
[...]
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
[...]
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
[...]
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
[...]
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
[...]
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
[...]
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
[...]
Quod erat demonstrandum.