O estrangeiro, Albert Camus, 1942, 122 páginas na minha edição da Editora Record que eu comprei em 1990 por 8 dólares (está anotado na folha de rosto), com tradução de Valerie Rumjanek.
O livro é simétrico e rigoroso: começa com uma morte, a da mãe; no exato meio do livro acontece uma morte, a do árabe, que é marcada pela música de Beethoven: as quatro batidas secas de destino na porta da desgraça; e na última página se anuncia a morte do protagonista e narrador.
Para um livro tão calculado, restou um mistério: a história é narrada em primeira pessoa, porém o narrador foi condenado à guilhotina e será executado poucas horas após encerrar a narrativa. Como temos, então, acesso à narração? Nabokov resolveu tal situação descrevendo, no prefácio de um falso doutor, a forma como o manuscrito de Humbert Humbert veio à luz. Não há uma explicação assim em O estrangeiro, o que nos remete a algumas possibilidades: a) o autor não soube ou não quis explicar; b) o narrador não morreu, obteve uma comutação da pena capital.
O protagonista e narrador é uma pessoa desagradável. É um maré-me-leva-maré-me-traz. Na primeira parte do livro, demonstra que tudo tanto faz: tanto faz casar ou não, tanto faz ser amigo de Raymond ou não, tanto faz escrever uma carta ou não, tanto faz conversar com Salamano ou não. Tanto faz andar na praia com sol a pino ou não, tanto faz matar um árabe ou não. Nada tem importância e tudo aconteceu por acaso. Todavia, na segunda parte, o narrador já demonstra que não é assim tanto faz: ele preferia estar livre, ir à praia com Marie, preferia que a pena capital fosse comutada.
O protagonista é uma pessoa fraca, inclusive fisicamente. Ele sofria de enxaqueca. A luz o ataca como espadas: a luz que cegava, o brilho da luz das lâmpadas, o brilho do céu era insuportável, o dia cheio de sol o atinge como uma bofetada, o brilho do mar era insustentável, o sol na cabeça descoberta, o sol esmagador, a cabeça latejando de sol, o brilho vermelho. Sintomas claros de enxaqueca. Um bom médico teria evitado o crime.
É um indivíduo fraco para o calor e o sol, é um homem do norte, de clima frio, deslocado na África. Se o narrador fosse um homem dos trópicos, o crime, se houvesse, teria outra motivação. No caso de Meursault, a fraqueza diante do calor e a enxaqueca o fizeram matar o “árabe”. O protagonista tem a cabeça fraca para os trópicos: o suor e a gordura dos trópicos o afetam de forma exacerbada. Uma pessoa hipersensível: sol, calor, gordura, a pele dos outros, tudo o afeta.
Ademais, o livro é claramente racista e, a partir de uma visão “superior” ou “ocidental”, não percebe sequer as diferenças culturais: o narrador/autor não faz diferença entre árabes e mouros, usa as duas palavras indistintamente. Ele mostra os “árabes” sempre em grupo, não há indivíduos entre os “árabes”, e eles olham em silêncio, como se “nós” fôssemos pedras ou árvores. E qual a maneira que Meursault e seus comparsas olham para os “árabes”? Este assunto de mouros, árabes, bárbaros, remete a Otelo, que séculos antes também navegava em tais contradições.
O julgamento de Meursault é bastante real, mesmo para os dias atuais – veja-se a série Os doze jurados, por exemplo. No julgamento do narrador, ele é julgado não apenas pelo assassinato do “árabe”, mas por todo o seu comportamento cotidiano. Algo que o autor pode ter usado para destacar o absurdo, mas que é comum em julgamentos. Não julgamos de modo objetivo e sim considerando nossas cargas de formação e cultura e aquelas do réu e da vítima. Não existe um julgamento objetivo, é ilusão.
De todo modo, não resta dúvida de que um assassinato a sangue frio como aquele mereceria uma pena pesada, prisão perpétua ou a pena capital – visto que tal existia no país e na época. A justificativa para o assassinato tornava o crime ainda mais pusilânime: Meursault matou por causa do sol.
Um livro que envelheceu mal,
para mim, desde a primeira leitura que fiz dele. O protagonista é irreal
demais, frente a realidade de Marie, de Raymond, de Céleste. Livro muito desagradável
e preconceituoso.