Capítulo 16 – A onda
A pessoa mais sem graça do mundo. Sem sabor, insosso, chocho, inodoro, sem sal, aguado, tedioso, insípido, apático, sem cor, enfadonho, monótono. É assim que ele se vê. É possível que o apego aos livros resulte dessa autoimagem: considera-se sem atrativos, tem dificuldades de relacionamento com os outros humanos, isola-se nas páginas de histórias sobre outros mais curiosos. Gosta de repetições. Uma colega de trabalho sugeriu que isso tem tratamento, ou seja, é uma doença. Um dia perfeito, para Ordep, é um dia completamente igual ao dia anterior. E assim sucessivamente, e assim sucessivamente, e assim. Nem de sábados e domingos ele precisaria, caso não existissem. Gosta de não ter trabalho no final de semana, de ter mais tempo para sua vida interior, como ele denomina. Mas sábado e domingo quebram a sequência de dias perfeitos, interferem na produção de pensamento, na aquisição de conhecimento. Porém, se o conhecimento adquirido não serve para comunicar aos outros, para se comunicar, para compartilhar, para aprimorar os relacionamentos, se esse conhecimento fica represado, só serve para o prazer de acumular conhecimento, então é um conhecimento vão. Ordep é um acumulador. Felizmente, não é um acumulador de objetos como se mostra na tevê. Um acumulador de conhecimento. Nem mesmo um acumulador de livros, pois se autoimpôs o limite na coleção. O limite físico da parede longa.
Faz exercícios físicos periodicamente. Odeia exercícios físicos porque retiram tempo das atividades mais elevadas, aquelas que ele considera mais elevadas. Faz os exercícios físicos para não morrer. Não tem medo de morrer. Até anseia morrer. Mas não quer definhar. Com a saúde mantida no estágio mais ou menos, pode se dedicar melhor ao intelecto. Faz caminhadas, também. É bom para pensar, o sangue circula no corpo e no cérebro, o cérebro ativa conexões. Gostaria de levar uma máquina fotográfica ou o telefone para tirar fotografias, mas não cabem nos poucos compartimentos da roupa de caminhar e, caso coubessem, fazem peso, e gosta de caminhar leve. Um pouco mais leve do que o peso da carne que carrega, já um pouco excessiva. Em uma caminhada de final de dia, foi se aproximando de uma imagem, era uma parede azul de um imóvel de esquina. Caminhava absorto, mas o olho e o cérebro enviavam sinais, faíscas, ordenavam que acordasse. Aproximava-se e não compreendia o desenho na parede azul, tampouco o motivo das faíscas cerebrais. Quase já passava da esquina quando a luz se fez. Era uma parede azul com um desenho em linhas brancas, e o desenho era de uma grande onda a ponto de quebrar. A seguir, entendeu que a onda, canhestramente retratada, era um simulacro de A grande onda de Kanagawa, a gravura famosa de Katsushika Hokusai. Desde pequeno gostava daquela onda. O imóvel era um tipo de restaurante japonês em um bairro periférico da cidade. O dono devia gostar de Hokusai. Ou alguém de marketing havia de ter sugerido o desenho. Não é de tão fácil assimilação pelo público daquele bairro. Onda gigante, onda de Hokusai, Japão, comida japonesa. Não sabia se funcionava tal associação. Queria ter tirado uma foto da onda periférica e colocá-la no computador ao lado da gravura. Comparar. No restante da caminhada, o pensamento se desviou para o dia em que viu a gravura ao vivo em um museu. Um dia nublado, de chuvisco constante. O museu havia acabado de adquirir um exemplar da gravura, e o estava expondo bem na entrada. Ele não sabia desse acontecimento. Entrara no museu por causa do chuvisco. Fora premiado. Um dia feliz.