Capítulo 19 – Sobre capítulos
Sim, pode-se criar aqui um capítulo como aqueles de Machado, um capítulo para declarar que hoje não há capítulo.
Porque o personagem não fez nada, porque o autor estava cansado após atividades burocráticas na rua – a mãe do autor chamava a cidade de rua, vou na rua, dizia – pagar impostos, reclamar em agências governamentais; porque o vazio se instalou na vida do personagem.
Solução: explodir uma bomba na vida dele: um câncer, um atropelamento e fuga, um terremoto, um desmoronamento, uma inundação, um ataque terrorista, um assalto à mão armada, uma invasão de domicílio, uma paixão, ao menos.
O personagem comprou pão e a moça bonita comprou ovos. A cidade se divide entre os pânicos e os ovíparos. A moça bonita usava vestidinho branco, peitos pequenos bons de mamar. Certo, impossível existir um mundo de verdade total, mas imagine-se que os pensamentos pudessem ser vistos, como balões dos quadrinhos.
Ordep pensava gostosinha, razoável, peitinhos pequenos bons para mamar. A moça pensava na casa, no namorado, na preparação dos ovos para o café da noite e, na margem do balão, esse filho da puta está me olhando demais, tarado safado. Mas se todos lessem os pensamentos de todos, seria o mundo da verdade total.
Mas era bom um capítulo de respiração, branco.
Era bom um capítulo, também, em que o personagem não apenas comprasse pão, comprar pão não faz evoluir a narrativa, era bom um capítulo ativo, dinâmico, veloz. Coitado de Ordep: ele se denomina o coelho de Alice porque está sempre correndo, o relógio de algibeira na mão, sempre atrasado, sempre menos do que o mais que exigem dele.
Era bom um capítulo curto.
Era bom um capítulo de foda, também, muito sexo louco, com dedos e paus e mucos e línguas e bocetas e palavrões e tapas e algemas e o bom e velho entra e sai como escreveu o bom e velho Burgess.
Era bom.