Capítulo 21.3 – Não era um besouro

Capítulo 21.3 – Não era um besouro 

Para Vladimir Nabokov, o inseto no qual Gregor Samsa se transformou era um besouro, porque a criada chama assim ao animal. Por duas vezes, ela usa a palavra alemã Mistkäfer quando se dirige ao inseto. Mistkäfer significa besouro do esterco, também conhecido como besouro rola-bosta. Nabokov considera que a criada estava sendo simpática e que o inseto é um besouro, mas não um rola-bosta. 

É irrelevante o tipo de inseto. Ora, a criada simpática chamou o bichinho por um nome qualquer; ocorreu-lhe o besouro rola-bosta, mas poderia ter dito barata ou percevejo. Reitere-se que não era relevante para Kafka o tipo de inseto que resultava da transformação: a palavra usada pelo autor para descrever o animal foi Ungeziefer, que pode ser traduzida como inseto, verme, animal daninho e repulsivo. Tal palavra é usada uma única vez no livro. A seguir, o autor descreve brevemente o animal; nem mesmo a quantidade de pernas foi definida na descrição. 

Para Nabokov, a história representa o gênio do artista rodeado pela mediocridade: “o isolamento e o afastamento da chamada realidade são aquilo que, em última análise, caracteriza constantemente o artista, o gênio, o descobridor. A família Samsa em torno do fantástico inseto nada mais é do que a mediocridade circundando o gênio.” 

Certo que A metamorfose inspira diversas possíveis leituras, mas a interpretação de Nabokov é enviesada e exagerada. Gregor Samsa é, ele próprio, medíocre. Nada há nele de genialidade: um caixeiro-viajante insatisfeito com o emprego, subjugado, pelas necessidades da família e por sua responsabilidade, a suportar o trabalho comezinho e desgastante. O sonho de Gregor é mudar de emprego daí a cinco anos, mas nem ele sabe para onde iria. As mulheres que o atraíam em sua versão humana eram “uma criada de quarto de um dos hotéis da província” e “uma balconista de uma loja de chapéus”. 

Outro aspecto irrelevante que interessava a Nabokov era a altura do inseto. Novamente, Kafka não demonstrou interesse nessa definição. Às vezes, o texto sugere que o inseto teria o tamanho humano normal, que ocupava toda a cama, que mal cabia em baixo do sofá e, às vezes, sugere que o inseto é muito menor que um ser humano, quando diz que ele abriu a fechadura com as mandíbulas.

       Kafka não queria um bicho definido estrita e precisamente, ele preferia a ideia do inseto repugnante, rasteiro, assustador, próprio de um pesadelo.