No
Em busca do tempo perdido, o narrador (e personagem) se confunde com a
personalidade do autor. Sabemos que há inúmeras características comuns aos
dois. Em diversos momentos, o autor faz brincadeiras com esse campo de
interseção entre ambos. Ademais, percebe-se que o narrador é não confiável,
especialmente em relação a Albertine. Dela só saberemos por meio dele. Não
veremos Albertine com outras mulheres, tampouco outros homens, embora o
narrador suspeitoso afirme que ela tem o vício, como ele denomina, ou
seja, que ela já manteve relações carnais com mulheres.
No volume 5, A prisioneira, o autor fala da possibilidade de dar “ao narrador o mesmo nome do autor deste livro”, no momento em que Albertine diz, ao acordar, “Meu Marcel”, “Meu querido Marcel”. Isto incrementa, ainda mais, a zona cinzenta entre autor e narrador.
O narrador gosta de registrar palavras, frases, modos de falar, das várias pessoas com as quais convive. Ao mesmo tempo, parece ter chiliques com palavras que considera vulgares. Em certo momento, encontramos o seguinte:
Albertine, usando
da linguagem própria do meio vulgar de onde veio, ou do meio mais vulgar ainda
que frequentava: “Que gaiato você é! Eu sei bem que você não é ciumento.
Ademais, você já me disse antes, e então isso se vê, ora!”
Albertine, usant
du langage propre, soit au milieu vulgaire d’où elle était sortie, soit au plus
vulgaire encore qu’elle fréquentait : “ Quel chineur vous faites ! Je sais
bien que vous n’êtes pas jaloux. D’abord vous me l’avez dit, et puis ça se
voit, allez ! ”
A palavra vulgar que incomodou o narrador foi chineur. De acordo com os dicionários, chineur é de uso familiar e significa aquele que se diverte em zombar, em fazer mofa, em pregar peças. Não parece tão vulgar, mas, de qualquer forma, afetou a sensibilidade do narrador. Em português, podemos pensar em zombeteiro, palhaço, brincalhão, gaiato.
Ocasião
pior para o narrador ocorre quando, pela primeira e única vez, Albertine
explode com seu carcereiro. Isso acontece a partir de uma discussão sobre os
Verdurin, pois Albertine se sentia desdenhada pela família e sua camarilha. O
narrador diz a ela que lhe daria de boa vontade algumas centenas de francos
para que ela posasse de chique e convidasse os Verdurin para um belo jantar.
Considero tal proposta, de antemão, ofensiva, por conter a ideia de que a moça
não é chique, ela se faria de chique.
“ Mais, ma chérie,
je vous donnerais bien volontiers quelques centaines de francs pour que vous
alliez faire où vous voudriez la dame chic et que vous invitiez à un beau dîner
M. et Mme Verdurin. ”
Albertine fica extremamente zangada:
“Muitíssimo
obrigada! Gastar um tostão com aqueles velhos, eu preferia muito mais que você
me deixasse uma vez livre para que eu fosse dar...” Assim que disse
isso, seu rosto ficou vermelho, ela mostrava um ar de arrependimento, colocou a
mão diante da boca como se pudesse fazer voltar as palavras que acabava de
dizer e que eu não tinha compreendido totalmente. “O que você disse, Albertine?
– Não, nada, eu estava meio dormindo. [...]”
“ Grand merci !
dépenser un sou pour ces vieux-là, j’aime bien mieux que vous me laissiez une fois
libre pour que j’aille me faire casser… ” Aussitôt dit sa figure
s’empourpra, elle eut l’air navré, elle mit sa main devant sa bouche comme si
elle avait pu faire rentrer les mots qu’elle venait de dire et que je n’avais
pas du tout compris. “ Qu’est-ce que vous dites, Albertine ? – Non rien, je
m’endormais à moitié. [...]”
O narrador não entendeu a frase incompleta de Albertine e permanece tentando decifrar o enigma – casser, faire casser – e, ao mesmo tempo, insistindo para que Albertine complete e explique o que ia falar.
“Ora, ao menos
tenha a coragem de terminar a frase, você terminou com dar... – Oh! Não,
me deixe! – Mas por quê? – Porque isso é extremamente vulgar, eu teria muita
vergonha de dizer isso na sua frente. Eu não sei em que eu pensei; essas
palavras, eu nem sei mesmo o sentido e que eu tinha ouvido, um dia na rua,
ditas por gente muito grosseira, me vieram à boca, sem rima nem razão. Isso não
se refere nem a mim nem a ninguém, eu estava sonhando alto.”
“ Enfin, au moins
ayez le courage de finir votre phrase, vous en êtes restée à casser… –
Oh ! non, laissez-moi ! – Mais pourquoi ? – Parce que c’est affreusement
vulgaire, j’aurais trop de honte de dire ça devant vous. Je ne sais pas à quoi
je pensais ; ces mots, dont je ne sais même pas le sens et que j’avais entendus,
un jour dans la rue, dits par des gens très orduriers, me sont venus à la
bouche, sans rime ni raison. Ça ne se rapporte ni à moi ni à personne, je
rêvais tout haut. ”
Mas o narrador é persistente e continua a processar as palavras mentalmente enquanto conversa com a moça.
E de um golpe duas
palavras atrozes, as quais eu não teria jamais pensado, desabaram sobre mim: “o
caneco”. Eu não posso dizer que elas vieram de um só golpe, como quando,
por meio de uma longa submissão passiva a uma recordação incompleta, tentando
suavemente, prudentemente, ampliar a recordação, fica-se dobrado, colado a ela.
Et tout d’un coup deux
mots atroces, auxquels je n’avais nullement songé, tombèrent sur moi: “le
pot”. Je ne peux pas dire qu’ils vinrent d’un seul coup, comme quand, dans
une longue soumission passive à un souvenir incomplet, tout en tâchant
doucement, prudemment, de l’étendre, on reste plié, collé à lui.
Portanto, a mente do narrador se ilumina e ele descobre a expressão não pronunciada inteiramente por Albertine: me faire casser le pot. Literalmente, (me fazer) quebrar a panela, (me fazer) quebrar o pote. Tal expressão significa sodomizar, se fazer sodomizar, obter ou praticar a penetração anal, dito assim de forma mais escorreita, e de forma popular, em brasileiro, acredito que se pode usar dar o caneco, dar a bunda. É relevante notar que logo após apreender as palavras usadas pela moça, o narrador fala em longa submissão passiva.
Albertine, zangada e quase no final de sua paciência com todas as limitações que lhe impunha Marcel, disse, em resumo, que preferia dar a bunda do que gastar um tostão com os Verdurin. Em brasileiro e com raiva: Eu preferia dar a porra dessa bunda do que gastar um puto com os Verdurin.
O narrador se horroriza quando compreende o sentido da frase.
Horror! era isso
que ela teria preferido. Duplo horror! Pois mesmo a última das putas, e que
consente nisso, ou até o deseja, não emprega esta terrível expressão com o
homem que a isso se presta. Ela se sentiria muito aviltada. Com uma mulher, apenas,
se ela ama as mulheres, ela diz isso para se desculpar por se entregar daí a
pouco a um homem.
Horreur ! c’était
cela qu’elle aurait préféré. Double horreur ! car même la dernière des grues,
et qui consent à cela, ou le désire, n’emploie pas avec l’homme qui s’y prête
cette affreuse expression. Elle se sentirait par trop avilie. Avec une femme
seulement, si elle les aime, elle dit cela pour s’excuser de se donner tout à
l’heure à un homme.
Ora, no narrador, esse escândalo por conta da expressão vulgar, soa hipocrisia, visto que, nas relações carnais com Albertine, ambos usavam as palavras mais depravadas. Ademais, o narrador convive frequentemente com homens e mulheres depravados, ditos de Sodoma e Gomorra. No autor, pressuponho ironia: homossexual, não parece crível que Proust ficasse consternado com o uso da expressão.
Observo, ainda, que o narrador distorce uso da expressão usada por Albertine: na visão do narrador, tal expressão só seria utilizada entre mulheres homossexuais – o que intenta confirmar as acusações do narrador sobre a moça – pois até mesmo uma puta não usaria a expressão com um homem. É evidente que esse argumento não tem o mínimo fundamento. A distorção só favorece a narrativa obcecada de Marcel.
É curioso que Roland Barthes tenha caído na armadilha do narrador. Em Fragments d'un discours amoureux, Barthes faz relevantes considerações sobre como uma única palavra pode modificar um relacionamento, e usa como exemplo a passagem acima citada de A prisioneira. Todavia, Barthes erra ao relacionar a expressão exclusivamente com a homossexualidade feminina.
Alteração.
Produção rápida, no campo amoroso, de uma contra-imagem do objeto amado. Ao
sabor de incidentes ínfimos ou de indícios frágeis, o sujeito vê a boa Imagem
se alterar e se inverter repentinamente.
[...]
Frequentemente, é pela linguagem que o outro se altera; ele diz uma palavra
diferente, e eu ouço sussurrar, de um modo ameaçador, todo um outro mundo, que
é o mundo do outro. Albertine tendo soltado a expressão trivial “se faire
casser le pot”, o narrador proustiano fica horrorizado, pois é o gueto temido
da homossexualidade feminina, da cantada grosseira, que se revela
de um golpe: toda uma cena pelo buraco da fechadura da linguagem. A palavra é
uma substância química tênue que opera as mais violentas alterações: o outro,
mantido longamente no casulo de meu próprio discurso, faz ouvir, por uma
palavra que lhe escapa, as linguagens que ele recebeu por empréstimo, e que,
por consequência, outros lhe emprestaram.
Altération.
Production brève, dans le champ amoureux, d’une contre-image de l’objet aimé.
Au gré d’incidents infimes ou de traits ténus, le sujet voit la bonne Image
soudainement s’altérer et se renverser.
[...] Bien
souvent, c’est par le langage que l’autre s’altère ; il dit un mot différent,
et j’entends bruire d’une façon menaçante tout un autre monde, qui est le monde
de l’autre. Albertine ayant lâché l’expression triviale « se faire casser le
pot », le narrateur proustien en est horrifié, car c’est le ghetto redouté de l’homosexualité
féminine, de la drague grossière, qui se trouve révélé d’un coup : toute
une scène par le trou de serrure du langage. Le mot est d’une substance
chimique ténue qui opère les plus violentes altérations : l’autre, maintenu
longtemps dans le cocon de mon propre discours, fait entendre, par un mot qui
lui échappe, les langages qu’il peut emprunter, et que par conséquent d’autres
lui prêtent.
A
análise barthesiana da alteração súbita na imagem que se tem do outro pelo uso
inesperado de uma palavra ou expressão me parece verdadeira e densa, mas
reitero que a conexão entre “faire casser le pot” e homossexualidade
feminina não está na expressão, e sim na mente doentia do narrador.
(Todas as traduções são de Paulo Mendes).