Xavier de Maistre, Julio Cortázar e Roland Barthes foram os inspiradores deste livrinho irrelevante. O autor não tem a ironia, a verve e o humor dos dois primeiros, tampouco o imenso cabedal de conhecimento do último. No entanto, atreveu-se a perpetrar tal crime contra a humanidade, contra as letras, contra a literatura. Um ser desprezível.
Xavier de Maistre, com a Viagem ao redor do meu quarto, Cortázar com as Histórias de cronópios e de famas, e Barthes com os Fragmentos de um discurso amoroso, são os verdadeiros culpados do crime.
De Cortázar, o autor chupou principalmente o formato, o capítulo curto, a diversidade de temas. De Maistre, a viagem em torno de si mesmo. De Barthes, a ausência de método disfarçada em método. Barthes escrevia sobre qualquer assunto que lhe interessava, partindo de seus gostos pessoais, e cercava essas escolhas de uma ilusão de método quando não havia método algum. Era lindo.
Recordo aqui, porque quero recordar, a introdução de Maistre:
J’ai entrepris et
exécuté un voyage de quarante-deux jours autour de ma chambre. Les observations
intéressantes que j'ai faites, et le plaisir continuel que j'ai éprouvé le long
du chemin, me faisaient désirer de le rendre public; la certitude d'être utile
m'y a décidé. Mon cœur éprouve une satisfaction inexprimable lorsque je pense
au nombre infini de malheureux auxquels j'offre une ressource assurée contre
l'ennui, et un adoucissement aux maux qu'ils endurent. Le plaisir qu'on trouve
à voyager dans sa chambre est à l'abri de la jalousie inquiète des hommes; il
est indépendant de la fortune.
Est-il en effet
d'être assez malheureux, assez abandonné, pour n'avoir pas un réduit où il
puisse se retirer et se cacher à tout le monde? Voilà tous les apprêts du
voyage.
Je suis sûr que
tout homme sensé adoptera mon système, de quelque caractère qu'il puisse être,
et quel que soit son tempérament; qu'il soit avare ou prodigue, riche ou
pauvre, jeune ou vieux, né sous la zone torride ou près du pôle, il peut
voyager comme moi; enfin, dans l'immense famille des hommes qui fourmillent sur
la surface de la terre, il n'en est pas un seul;—non, pas un seul (j'entends de
ceux qui habitent des chambres) qui puisse, après avoir lu ce livre, refuser
son approbation à la nouvelle manière de voyager que j'introduis dans le monde.
Eu empreendi e
executei uma viagem de quarenta e dois dias em volta de meu quarto. As
observações interessantes que fiz, e o prazer continuado que experimentei ao
longo do caminho, me fizeram desejar torná-la pública; a certeza de ser útil me
fez decidir por isto. Meu coração experimenta uma satisfação inexprimível quando
eu penso na infinita quantidade de infelizes aos quais ofereço uma solução
segura contra o tédio, e um abrandamento das doenças que sofrem. O prazer que
se obtém ao viajar em seu próprio quarto está ao abrigo da inveja inquieta dos
homens; e é independente da fortuna.
De fato, há alguém
tão infeliz, tão abandonado, que não tenha um reduto onde seja possível se
retirar e se esconder do mundo? Aqui estão todos os preparativos para a viagem.
Estou seguro de
que qualquer homem sensato adotará meu sistema, seja qual for sua personalidade
e seu temperamento; quer seja avaro ou pródigo, rico ou pobre, jovem ou velho,
nascido na zona tórrida ou perto do polo, ele pode viajar como eu fiz; enfim,
na imensa família dos homens que formigam sobre a face da terra, não há um só –
nem um só (entre aqueles que habitam quartos) que possa, depois de ter lido
este livro, recusar sua aprovação à nova maneira de viajar que eu introduzo no
mundo.
(Tradução
canhestra do autor).
Recordo aqui, porque me apraz, um trecho
de Barthes:
3. Références
Pour composer ce
sujet amoureux, on a « monté » des morceaux d'origine diverse. Il y a ce qui
vient d'une lecture régulière, celle du Werther de Goethe. Il y a ce qui vient
de lectures insistantes (le Banquet de Platon, le Zen, la psychanalyse,
certains Mystiques, Nietzsche, les lieder allemands). Il y a ce qui vient de
lectures occasionnelles. Il y a ce qui vient de conversations d'amis. Il y a
enfin ce qui vient de ma propre vie. Ce qui vient des livres et des amis fait
parfois apparition dans la marge du texte, sous forme de noms pour les livres
et d'initiales pour les amis. Les références qui sont ainsi données ne sont pas
d'autorité, mais d'amitié : je n'invoque pas des garanties, je rappelle
seulement, par une sorte de salut donné en passant, ce qui a séduit, convaincu,
ce qui a donné un instant la jouissance de comprendre (d'être compris ?). On a
donc laissé ces rappels de lecture, d'écoute, dans l'état souvent incertain,
inachevé, qui convient à un discours dont l'instance n'est rien d'autre que la
mémoire des lieux (livres, rencontres) où telle chose a été lue, dite, écoutée.
Car, si l'auteur prête ici au sujet amoureux sa « culture », en échange, le
sujet amoureux lui passe l'innocence de son imaginaire, indifférent aux bons
usages du savoir.
3. Referências
Para compor tal
sujeito amoroso, foram “montados” pedaços de origem diversa. Há aqueles que vêm
de uma leitura regular, tal como o Werther de Goethe. Há os que provêm de
leituras insistentes (O banquete de Platão, o Zen, a psicanálise, certos
místicos, Nietzsche, as canções alemãs). Há os que vêm de leituras ocasionais.
Há aqueles que vêm de conversas com amigos. Há, enfim, aqueles que provêm da
minha própria vida. Aqueles que vieram dos livros e dos amigos aparecem, por
vezes, na margem do texto, sob a forma de nome para os livros e de iniciais
para os amigos. As referências assim oferecidas não são de autoridade, mas de
amizade: eu não invoco garantias, eu apenas recordo, como um tipo de saudação en
passant, aquilo que seduziu, que convenceu, que ofertou um instante a alegria
de compreender (de ser compreendido?). Deixaram-se tais recordações de
leituras, de escuta, no estado frequentemente incerto, inacabado, que convém a
um discurso no qual a instância não é mais que a memória de lugares (livros,
encontros) onde tal coisa foi dita, lida, escutada. Portanto, se o autor
empresta, aqui, ao sujeito amoroso sua “cultura”, em troca, o sujeito amoroso
lhe passa a inocência de seu imaginário, indiferente aos bons usos do saber.
(Tradução canhestra do autor).
Vê-se que Xavier de Maistre propõe, com alegria e ironia, que a viagem em torno do umbigo, que ele executou enquanto estava preso, traz interesse inestimável para toda a humanidade. Roland Barthes, por seu lado, enfeita e ilude com fumos de método, com artifícios de academia, aquilo que é unicamente a sua opinião, a sua observação e o prazer que ele encontrava em formatar um discurso sobre este ou aquele tema. Cortázar, em paralelo, fez um livrinho em que cada página é diversa das outras, livres, mas estranhamente coerentes no conjunto.