Capítulo 28.1 – Marie Cardona
É evidente que o meu cérebro sabia da existência do livro Meursault, contre-enquête, de Kamel Daoud (em português, O caso Meursault), que “apresenta o ponto de vista do irmão do árabe assassinado por Meursault” conforme consta na apresentação. Mas o meu cérebro havia esquecido que eu sabia e, quando da releitura de O estrangeiro, em algum momento imaginei como seria a história contada do ponto de vista de Marie Cardona – para mim, o personagem mais simpático da novela.
O melhor de Marie é que ela desiste de Meursault. Não há motivo para continuar dedicando tempo e sentimento a alguém tão frio e incapaz de sentir. Faz muito bem Marie quando o esquece. Que apodreça.
O narrador diz que ela não escrevia mais, também deve ter deixado de visitá-lo, quem sabe “cansada de ser a namorada de um condenado à morte”. Que importaria se Marie dava sua boca a um novo Meursault? pergunta-se o próprio.
A história de Marie Cardona, para mim, seria a narrativa de uma moça morena, bronzeada e bonita, solar e tropical, empregada no comércio, que gostava de mar e de cinema e de passear e de conversar e estar com amigos, ingênua até certo ponto. A moça cometeu o erro de gostar de um cara frio, um cara que não sabia amar, sem preferências, anódino. A moça gostou dele, pretendia que o amor o transformasse, mas ele nem acreditava em amor. A moça fez o possível para apoiar o cara, mas desistiu. O sol e o mar e os rapazes a chamaram, ela esqueceu o taciturno Meursault, sequer estava em Argel no dia da guilhotina. Três anos depois morava em Paris, entrou para a turma de Simone e Jean-Paul, eles souberam do relacionamento dela com o guilhotinado de Argel, o caso tivera alguma repercussão nos jornais. Marie fez sexo com ambos, separadamente, eram ciumentíssimos, embora afirmassem o contrário, Simone e Jean-Paul. Foi ao Brasil com Simone, conheceu Vinícius de Moraes e encetou um caso com ele. Abandonou Simone e viajou com Vinícius para Los Angeles, conheceu Carmem Miranda e chegou a se hospedar na casa dela. Passam-se os anos e Marie se torna uma ainda bela mulher madura, mais calma, trabalha na Unesco de Paris como tradutora. Casou-se, mas não quis ter filhos, separou-se e casou de novo. Marie morreu em 1992 em decorrência de complicações de um câncer de fígado.