Capítulo 30 – Luísa Porto
Louca. As obrigações da casa me deixam quase. Além do trabalho insano e inútil, que só me dá de bom a prata, há tantas pequenas ações domésticas que dependem de mim. A filha, o balé, a escola da filha, a roupa da filha, as roupas da casa, a faxineira, roupas para colocar na máquina, supermercado, cansa até enumerar. Preciso de descanso, preciso de uma pausa. Não tem como fugir dessa vida, não vou deixar minha filha. O marido até deixava, mas a menina, não.
Fui na casa de Ordep, lá é um paraíso de silêncio, de livros, de conversa sem crianças e sem tevê. Quando estou esgotada de tudo e quando me posso dar uma pausa, é um prêmio que concedo àquela derrotada que, por vontade própria, criou uma vidinha macabra para si. E quando e se ele aceita me ver. Ordep é um metódico extremado, insuportável, tirano. Gosto do sexo e gosto da conversa. Meu marido não merece isso, sei, mas eu mereço, eu mereço algo que me permita a sanidade, que não permita a loucura, o suicídio. Adoro a ideia de suicídio, a morte e a liberdade absoluta. Odeio campanhas antissuicídio, o suicídio é um direito, devia estar na carta da ONU ou qualquer bosta dessas.
Fui na casa de Ordep, pedi a ele que me recebesse, por dentro quase implorava, às vezes ele não quer ser interrompido, grande bosta que ele faz, divagar, pensar, escrever, ler. Eu fico puta, eu tenho inveja da vida dele, não quero ter, e fico puta por ter, tendo. Fui lá e levava um livro, um livro que eu estava redescobrindo, uma coleção de poemas de Drummond, lia muito Drummond na adolescência, gostava da poesia seca e magra dele, parecida com aquele corpo dele, seco e magro. Aprendi com Dickens a não ter receio de repetir expressões e palavras, foda-se quem achar ruim.
Li para ele o Desaparecimento de Luísa Porto, um poema longo e estranho, me encanta. Depois da primeira leitura, li de novo. Ele pegou o livro e leu trechos. Saboreamos palavras e pedaços. A Rua Santos Óleos, a mãe enferma, erma de cuidados, a filha volatilizada, sumida, diluída.
Luísa saiu para fazer compras na feira da praça, não voltou, faz três meses. Estrábica, 37 anos, o olhar desviado e terno. O poema afirma e insiste: ela não se suicidou, ela não se matou. Fico maravilhada com aquele verso as ruas mudaram de rumo, e Luísa perdeu o caminho de casa. Imagino, à noite, as ruas se rearranjando, com barulho de engrenagens, como um mecanismo de composição de dominós. E a descrição do corpo e a fotografia da moça são disfarces de realidade mais intensa. A amiga de Luísa era uma moça desimpedida, mas Luísa, não, Luísa era casta e não tinha nem namorado.
Não precisa nem Freud para saber que eu é que queria me volatilizar, desaparecer, ir na esquina e não voltar. Não posso.
Naquele restinho de tarde roubado, a gente nem se uniu, as relações carnais de Marcel, a gente só ficou junto pensando com o livro de Carlos nas mãos.