A metamorfose, Franz Kafka (1915)

        Capítulo 21.2 – A metamorfose

        A metamorfose, Franz Kafka (1915). 

O famoso livro de Kafka pode ser resumido como a história de um homem que acorda transformado em inseto e das consequências que advêm da transformação. O que acontece se acordo transformado em inseto? O impacto na vida do novo inseto e na vida de sua família. Como decorrem os dias na nova situação e como tudo termina. Este tipo de pensamento deve ter guiado o autor na composição do livro. Rios de tinta já foram escritos sobre este livrinho de noventa páginas que pode ser lido em um dia ou dois e que foi escrito, diz-se, em vinte dias. Vou colaborar com o oceano acrescentando um filete de pensamentos que me ocorreram durante a releitura do livrinho. 

Símbolo, significado. O mundo é absurdo, nada tem explicação, somos seres incapazes de conhecer o sentido do mundo. O universo é infinito e, como tal, tudo pode acontecer, inclusive um homem acordar transformado em inseto. A transformação em inseto também pode significar que Gregor Samsa, o provedor da família composta por pai, mãe e Grete, a irmã de dezessete anos, desistiu, repentinamente, de continuar a ser o provedor. Gregor Samsa desistiu de participar da vida cotidiana, de pegar o trem nos mesmos horários, de trabalhar na mesma empresa detestada, para o mesmo patrão detestado. Tornou-se, deste modo, um pária, um inseto, um asqueroso, um insignificante, um nada. Imagine um pater familias que foge a seus deveres de provedor. Imagine um adulto que cai em depressão ou que perde o emprego. Imagine um adulto que adoece de forma incapacitante. A trajetória de tal indivíduo é de decadência, é para baixo sem apelação. Assim, Gregor vai de filho respeitado a inseto temido, até mesmo digno de cuidados, e depois a uma coisa jogada no quarto de despejos, empoeirada, doente, suja, a qual todos são indiferentes. Um peso morto que a família arrasta consigo. A morte do inseto é um alívio. 

O inseto e os sanguessugas. O trabalho não é normal. Em termos gerais, jovens e velhos não trabalham, portanto, um terço da humanidade trabalha. Quantas pessoas dependem de cada pessoa que trabalha? No caso de Gregor Samsa, três pessoas dependiam do esforço dele. Gregor quase não tinha vida própria e seus ganhos eram quase totalmente empenhados na sustentação da família. Os três familiares eram os insetos, naquela época, ou, pode-se dizer, sanguessugas, para continuar com animais invertebrados. No momento em que Gregor se torna incapaz de prover, os três elementos do grupo mostram que a inatividade anterior era opcional. Antes, o pai passava horas a ler os jornais durante a manhã, e ao anoitecer também lia o jornal em voz alta para a mãe – e havia até uma criada na casa. Quando Gregor chegava exausto, o pai estava “deitado, de pijama, numa cadeira de braços” e “não conseguia manter-se de pé e se limitava a erguer os braços para o saudar”. Depois do evento, o pai voltou à ativa, firme, “envergando urna bela farda azul de botões dourados”, e “brilhavam-lhe os olhos pretos, vívidos e penetrantes”. Assim, também a mãe e a irmã começaram a trabalhar. 

O tempo. A marcação do tempo é relevante no desenvolvimento do romance e do protagonista. No início, Gregor se preocupa com minutos, o trem das cinco, a empresa que abre às sete, mais dez minutos e ele vai se levantar. Então, passa-se um dia, dois, e anota-se um mês, dois meses e três meses. Gregor esperava o Natal para anunciar a decisão de assumir mais despesas e colocar Grete no Conservatório. Não se registra o Natal, mas depressa chega a sensação da primavera e o autor nos anuncia que é março. Pode-se deduzir que se passaram seis meses, mas, para o inseto, o tempo deixou de existir, ele sequer sabe se o Natal já passou. O tempo e o trabalho são angústias do indivíduo que o inseto deixa para trás, gradativamente. 

Seres contraditórios. Gregor Samsa sentia-se vigiado pela empresa, não gostava do emprego e colocara um prazo máximo para permanecer ali, cinco anos. Todavia, pensava em assumir mais despesas com a educação da irmã. 

O processo. Os acontecimentos nos atingem e não conseguimos descobrir as causas. O caixeiro-viajante “é muitas vezes vítima de injustiças” quando regressa de suas viagens e sofre então “funestas consequências”, todavia “não consegue descobrir as causas originais”. Não controlamos a máquina do mundo, sequer a compreendemos.

       O alívio. A família vivia assoberbada e exausta enquanto Gregor passeava pelas paredes e teto e passava horas a olhar a rua pela janela. Enfim, como a pessoa doente e incapacitada que morre, como o filho desajustado que some no mundo para nunca mais, como o parente louco que faz o favor de morrer ou de se suicidar, o inseto morre e a família respira. Os três tiram um dia de folga, o mundo parece outro, mais luminoso e, agora, podem recomeçar a fazer planos. 

O inseto. Cabe destacar que Kafka se dizia irmão espiritual de Dostoiévski, e na obra do escritor russo encontramos a figura recorrente do inseto, uma possível gênese da história de Gregor Samsa. Em Os irmãos Karamázov, o tema do inseto surge quando o narrador define Fiódor Karamázov, o pai: “Profundamente corrompido e luxurioso até a crueldade como um inseto pernicioso, Fiódor Karamázov, nos momentos de embriaguez, experimentava uma angústia atroz.” Posteriormente, Dmitri, o primogênito, cita um poema em que um dos versos diz: “aos insetos, a lascívia”. E Dmitri acrescenta: “Eu sou esse mesmo inseto, não sou um inseto perverso? (...) Isso tudo ainda não é nada (...) embora o cruel inseto já tivesse crescido, já tivesse encorpado em minha alma.” Além desses exemplos, no livro Memórias do subsolo, o protagonista afirma: “Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo ou não, por que não consegui tornar-me sequer um inseto. Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui digno. 

É relevante notar que a palavra inseto (Ungeziefer, em alemão) somente aparece uma única vez no livro de Kafka. A gente lê a novela e nem percebe isso, parece que a palavra inseto é frequente, mas é somente a ideia do inseto, a imagem do inseto, instilada pelo autor em nossa mente no primeiro parágrafo, que contamina toda a narração – e nisto Kafka foi genial. Observa-se, também, que a criada chama o bicho de besouro de esterco (Mistkäfer), mas isso não significa que o inseto seja um besouro: é apenas a imagem mais próxima que se formou na mente da criada, que está sendo simpática com o bichinho.

A metamorfose é um livro fácil de ler e, ademais, intrigante, denso, e que proporciona um sem-número de interpretações, de leituras, de delírios, de pensamentos.