Capítulo 15 – Ester
O livro de Ester se lê em uma hora, no máximo em duas. A curta história pretende mostrar a vitória do povo judeu contra seus inimigos. Lá pelo ano 114 antes da Era Comum, o rei persa Assuero (mais conhecido como Xerxes) detinha poder sobre um grande império, que se estendia da Índia a Etiópia. O rei tem um conselheiro, Amã, um tipo de primeiro-ministro, que passa a odiar os judeus porque um deles, Mardoqueu – que trabalha no palácio – recusa-se a se prostrar quando da passagem do conselheiro. Amã pede ao rei para exterminar o povo judeu, e até se propõe a pagar por isso. Assuero dispensa o pagamento e diz que faça como lhe aprouver. Amã emite uma carta para todas as províncias, marcando o extermínio dos judeus para o décimo segundo mês daquele ano. A sobrinha de Mardoqueu, Ester – selecionada em um grande concurso de jovens virgens e belas – era a rainha – ou uma das rainhas do imenso harém, isso não fica claro na narrativa – e o rei não sabia de sua origem judaica, tampouco do parentesco com Mardoqueu. Nos aposentos do rei, ninguém podia entrar sem ser chamado, sob pena de morte. Ester, sob risco de ser condenada, se atreve a entrar e, posteriormente, a pedir ao rei que cancele a ordem dada na carta enviada por Amã, revelando sua origem judaica. O rei concede o cancelamento e Amã é enforcado na mesma forca que preparara para Mardoqueu. Este se torna o principal conselheiro. No dia antes marcado para o assassinato dos judeus, estes, com o apoio do novo edito real, matam setenta e cinco mil homens nas províncias, e oitocentos em Susa, a capital.
A carta de Amã, em nome de Assuero, ordenando a morte do povo judeu, é fabulosa: um espetáculo de ironia e hipocrisia.
O grande rei
Assuero, aos governadores das cento e vinte e sete províncias que vão da Índia
a Etiópia, e aos chefes de distrito, seus subordinados:
Colocado na chefia
de inúmeros povos e como senhor de toda a terra, eu me propus não me deixar
embriagar pelo orgulho do poder e sempre governar com grande espírito de
moderação e benevolência, a fim de outorgar a meus subordinados o perpétuo gozo
de uma existência sem sobressaltos e, já que meu reino oferece os benefícios
da civilização e a livre circulação entre as suas fronteiras, nele
instaurar o objeto do desejo universal, que é a paz. Ora, tendo ouvido
meu conselho sobre os meios de atingir esse fim, um de meus conselheiros, cuja
sabedoria entre nós é eminente, dando provas de indefectível devotamento e
inquebrantável fidelidade, e cujas prerrogativas vêm imediatamente após as
nossas, Amã, denunciou-nos, misturado a todas as tribos do mundo, um povo
mal-intencionado, em oposição, por suas leis, a todas as nações, e
constantemente desprezando as ordens reais, a ponto de ser um obstáculo ao
governo que exercemos para a satisfação geral.
Considerando,
pois, que o referido povo, único em seu gênero, acha-se sob todos os aspectos
em conflito com toda a humanidade; que dela difere por um regime de leis
estranhas; que é hostil aos nossos interesses e que comete os piores
delitos, chegando a ameaçar a estabilidade de nosso reino:
Por esses motivos
ordenamos que todas as pessoas que vos forem assinaladas nas cartas de Amã,
preposto às tarefas de nossos interesses e para nós um segundo pai, sejam
radicalmente exterminadas, inclusive mulheres e crianças, pela espada de
seus inimigos, sem piedade ou consideração alguma, no décimo quarto dia do
décimo segundo mês, isto é, Adar, do presente ano, a fim de que, uma vez
lançados esses opositores de hoje e de ontem no Hades num só dia, sejam
assegurada doravante ao Estado estabilidade e tranquilidade.
A leitura desse conto faz pensar na efemeridade dos impérios e das nações frente ao nosso grande inimigo e senhor: o Tempo. Assuero dominava “o mundo”, ou seja, grande parte do mundo conhecido, vivia entre fausto, poder e harém. A glória do mundo é transitória. Assuero é, hoje, apenas um verbete apagado da história.
Ademais, tem-se a vingança e a crueldade praticada por qualquer dos lados “inimigos”. Quem pode mais, em dado momento, dedica-se ao extermínio dos outros, dos diferentes, dos que pensam de forma diversa.
A carta de Assuero, que mostra um reino comparável à União Europeia – livre circulação, benefícios da civilização, paz universal – alega que, para manter tais pressupostos e a estabilidade e a tranquilidade, se faz necessário o extermínio de um povo mal-intencionado. Para manter a paz, faça-se a guerra.
Relevantes, também, alguns acontecimentos paralelos à narrativa principal.
Assuero vivia de forma luxuosa: renda, musselina, púrpura, linho, prata e alabastro. No terceiro ano de seu reinado, ofereceu um banquete aos nobres e governadores das províncias que se estendeu por cento e oitenta dias. Após esta festa, deu um banquete ao povo de Susa que durou sete dias. É dito que o rei e Amã esbanjavam em festas e bebedeiras. Por fim, após a ascensão de Mardoqueu, o rei Assuero impôs um tributo sobre todo o continente e as ilhas – evidentemente, um reflexo das despesas ilimitadas da corte.
No início da narrativa, conta-se que Mardoqueu, alto funcionário da corte, teve um sonho que ele interpretou como um aviso de que o rei Assuero seria assassinado. A suposta interpretação de Mardoqueu é bem enviesada e, aparentemente, ele queria mesmo era se vingar de dois guardas do palácio. A partir do sonho, Mardoqueu informou ao rei que os eunucos Bagatã e Tares planejavam matá-lo. Assuero aplicou a tortura aos eunucos que, surpresa!, confessaram e foram supliciados.
O
sonho de Mardoqueu é belo e pleno de símbolos apocalípticos, e o transcrevo
aqui:
Gritos e ruídos, ribomba o trovão, treme o chão, tumulto sobre toda a terra. Dois enormes dragões avançam, ambos prontos para o combate. Lançam um rugido; ao ouvi-lo, todas as nações se preparam para a guerra contra o povo dos justos. Dia de trevas e de escuridão! Tribulação, aflição, angústia e espanto caem sobre a terra. Transtornado de terror diante dos males que o esperam, todo o povo justo se prepara para morrer e invoca a Deus. Ora, de seu grito, como de uma pequena fonte, brota um grande rio, de águas caudalosas. A luz se levanta com o sol. Os humildes são exaltados e devoram os poderosos.
Os humildes, exaltados, devoram os poderosos. Nada de piedade quando os antigos humildes passam a deter o poder.
O
nome hebreu de Ester era Hadassa. O nome Ester pode vir da deusa
babilônica Ishtar ou do persa stareh, que significa estrela.
(A tradução utilizada foi a da Bíblia de Jerusalém).