DEMÉTRIO
MAGNOLI
Não
estrague a festa, estúpido!
O país
da Copa é grande e bobo. "Esta será a Copa das Copas",
disse a presidente, de boca cheia, na cerimônia de sorteio dos
grupos. No país dela, que é o nosso, ninguém circula nas cidades
travadas, nas estradas paralisadas, nos aeroportos congestionados
--mas 12 arenas superfaturadas, em recordistas 12 sedes, receberão a
mais cara das Copas. Do enclave do Sauípe, uma bolha segura,
esparramou-se pelo mundo a linguagem do verde-amarelismo balofo. No
país da Copa, um governo "popular" e "de esquerda"
reverbera, tanto tempo depois, as frases e os tiques do
general-presidente que gostava de futebol. Há um cheiro de queimado
no ar.
"O
Brasil está muito feliz em receber todos nesta Copa porque somos um
povo alegre e acolhedor." Violência é a palavra da hora --e
ela surge em curiosas associações com a "Copa das Copas".
A barbárie das torcidas do Atlético Paranaense e do Vasco não foi
deplorada por seus significados intrínsecos, mas pelas mensagens que
supostamente envia ao mundo. Gaiatos da política, do marketing e do
colunismo ensaiaram uma sentença que menciona a violência "dentro
e fora dos estádios". É senha, com endereço certo: no saco
fundo, cabem tanto os torcedores selvagens e os sumidos black blocs
quanto manifestantes pacíficos mas indignados com a "Copa das
Copas". O pau vai comer.
"Não
repara a bagunça" --o dístico popular nacional, candidato
eterno, e perfeito, a substituir o "Ordem e Progresso" no
núcleo de nossa bandeira, trai o medo da vergonha. Joseph Blatter
entendeu e traduziu, chamando-nos a congelar a indignação, sublimar
as insatisfações, colocar entre parêntesis as divisões. A unidade
em torno de um bem maior, que é a imagem do país diante do planeta
que nos vê: eis a gramática do discurso político sugerida pelo
chefão da potência ocupante. No país da Copa, a convocação à
unidade já foi integrada ao discurso da publicidade. Será repetida
à exaustão, como uma ladainha, até o apito final. Não estrague a
festa, estúpido!
"Será
uma Copa para ninguém esquecer", jactou-se a presidente,
formulando uma ameaça involuntária. A partir do Gabinete de
Segurança Institucional, estrutura-se uma operação de guerra que
abrange as três forças em armas e um desdobrado aparato
cibernético. Nas telas dos computadores do sistema de vigilância,
cada arena figura como ponto focal de um envelope tridimensional de
segurança. Nas ruas, o controle físico do perímetro das arenas, a
cargo das PMs, terá a missão de proteger as marcas dos
patrocinadores oficiais da ameaça simbólica representada pela
presença de manifestantes. Jamais, em tempo algum, o Estado serviu
tão direta e exclusivamente a interesses privados. Não: ninguém
esquecerá.
O país
da Copa não se respeita. Ontem, o partido do governo celebrou
políticos condenados por corrupção --e, sob o silêncio cúmplice
do presidente de facto e da presidente de direito, achincalhou um STF
composto por juízes que eles mesmos indicaram. O país da Copa
perdeu o autorrespeito. Os líderes governistas manobram para o
Congresso não ouvir um ex-secretário nacional de Justiça que acusa
o governo ao qual serviu de operar uma fábrica de dossiês contra
adversários políticos. O país da Copa perdeu o respeito. As
lideranças do PSDB preferem empregar táticas diversionistas
vexatórias a colher assinaturas para uma CPI destinada a investigar
todos os contratos estaduais e federais firmados com a Siemens. Yes,
nós gostamos de futebol.
No
vale-tudo da nova ordem do racialismo, perdemos, ademais, um senso
básico de decoro: eu li --aqui mesmo, não nas catacumbas da
internet!-- que Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert formaram "um
casal mais parecido com representantes de afrikâners". Cores,
rancores. No país da Copa, nativos felizes, contentes, de bunda de
fora, tocavam caxirola. Foi bonita a festa, pá --pena que nem
começou.