O filme começaria às 17e20, cheguei em casa às 16e40. Caminhei até ao cinema, que é perto, uma caminhada que não se faz, no Recife, pois perdemos a cultura do espaço público - isso quem diz é Bauman. Zygmunt Bauman me diz - nas minhas palavras isso - que a cultura do medo é agradável aos gestores da coisa pública, pois as ruas ficam vazias, a população cuida da sua própria segurança, o estado se exime. E com o medo das ruas, perdemos a cultura do encontro, a cultura que se desenvolve nos espaços públicos. Cheguei ao cinema e comprei o ingresso, e como não uso medidor de tempo, pensei que já estaria na hora mesma de entrar na sala, mas que nada, ainda eram 17 horas. Meia-noite em Paris, Woody Allen. Entrei e assisti e gostei, gostei com numerosas ressalvas, e observo:
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1 - A sala estava cheia, mas quem realmente conhecia todos aqueles personagens, aqui, naquela sala? Quem ali já leu um poema de Eliot ou viu uma foto de Man Ray? Quem sabe ali quem foi Gertrude Stein e leu algo dela ou sobre ela? Quem ali já leu Hemingway ou Scott Fitzgerald?
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2 - O diretor consegue transformar uma moça que eu gostava (ou gosto) em uma pessoa chatinha, Rachel McAddams, e consegue transformar um cara que me era anódino ou insuportável, em um cara simpático, Owen Wilson.
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3 - Em que medida se vai dizer que esse filme é "um hino de amor à Paris", esse chavão, e em que medida isso só tem a ver com a grana? Não era New York a cidade amada por Woody Allen? E não foi Barcelona e o modo de vida espanhol digno do mesmo "hino" graças aos financiamentos europeus? A mim, parece que esses hinos são falsos, movidos por quem paga mais ou melhor. É um bom filme, uma fraca comediazinha romântica com ares intelectuais, fácil de fazer, fácil de consumir, movido pelos financiamentos. Um amor venal.
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4 - Se o personagem conclui que a "época boa" é a sua própria, evitando o deslocamento no tempo, por que não evita também o deslocamento no espaço e descobre que o "lugar bom" é o seu próprio original, a California ou algo assim?
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5 - Para o pouco que a minha ignorância conhece de Gertrude Stein, o búfalo da Rive Gauche, ela foi retratada boazinha demais, mãezinha demais, não bate nem mesmo com a Gertrude descrita por Hemingway no famoso livro citado no filme e do qual o filme tira muito das visitas de Hemingway a Gertrude. Gertrude era uma grossa. Aliás, as cenas de Scott e Zelda são praticamente copiadas das observações de Hemingway.
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6 - Hemingway, Picasso, são muito caricaturais, deve ser intencional, mas me agrada a caricatura de um Hemingway buscando a sinceridade absoluta, a frase despida, a linguagem direta.
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Enfim, um filme irregular, fraco, mas acima da média, e claro, acima de qualquer xis-mens e transformadores.