14/09/2012 - 06h55
O carrocentrismo na
mira da crítica industrial
RICARDO ABRAMOVAY
A condenação do
automóvel individual como forma predominante de transporte nas
grandes cidades é cada vez mais ampla, incisiva e bem fundamentada.
E o mais interessante é que essas críticas começam a tomar corpo
no interior da própria indústria.Nos países desenvolvidos, o
automóvel é frequentemente comparado ao tabaco, em função de seus
efeitos danosos sobre a vida urbana.
É verdade que, em
muitos casos, a indústria automobilística empenha-se no uso mais
eficiente de energia e de materiais. Mas isso não impede Bill Ford,
bisneto do fundador da companhia que leva seu nome, de fazer a
constatação fundamental: uma vida urbana melhor é incompatível
com o horizonte de que cada família possua dois carros. A Ford tem
um plano de mobilidade em três etapas (para um período que vai além
de 2025) cujas bases estão, simultaneamente, nos ganhos de
eficiência que as tecnologias da informação trarão ao automóvel
e, ao mesmo tempo, na perda do poder que ele tem hoje na matriz
mundial dos transportes.
A partir de 2025,
segundo a empresa, a paisagem dos transportes será outra, com
pedestres, bicicletas, veículos individuais e transportes coletivos
conectados em rede, com base em poderosos dispositivos digitais.
Da mesma forma que a
IBM abandonou a produção de computadores, mas se manteve líder em
serviços de informação em rede, a indústria automobilística vai
ter que se reinventar.
Foi a mensagem do
encontro promovido pela "Audi Urban Future Summit" (Audi)
em 2010, no qual personalidades importantes da sociologia mundial
como Saskia Sassen e Richard Sennet contribuíram para que fossem
colocadas questões decisivas: será que as empresas automobilísticas
de hoje produzirão carros no futuro? Isso convém à ambição de
melhorar a mobilidade nas grandes cidades?
É verdade que, até
aqui, a maior parte do setor tem fechado os olhos a essas perguntas.
Um executivo da Volkswagen, diante das cotas de emplacamento adotadas
em grandes cidades chinesas, como reação à poluição e aos
engarrafamentos no país, não hesitou em declarar que a empresa se
dirigiria ao interior e que isso não prejudicaria a expansão de
seus negócios. As perspectivas de ganho por parte da indústria são
tão grandes que entre cidades sustentáveis e ampliação na frota
de automóveis a opção das montadoras deixa, infelizmente, pouca
margem a dúvidas.
É muito importante,
neste sentido, o documento recente da Confederação Nacional da
Indústria (CNI), fruto do excelente estudo levado adiante pela
equipe liderada por Sérgio Magalhães, arquiteto, urbanista,
professor da FAU/UFRJ e ex-secretário de Habitação do Estado do
Rio de Janeiro.
Na apresentação do
trabalho, Robson Braga Andrade, presidente da entidade, afirma: "As
cidades brasileiras estão parando". Os ambientes urbanos são
cada vez mais importantes na inovação, no emprego e em uma vida
social mais rica e diversificada e, no entanto, as cidades, apesar de
seu extraordinário dinamismo, são incapazes de oferecer horizontes
promissores à maior parte dos que nelas habitam.
Na raiz do
estrangulamento urbano está a maneira como se formou, no Brasil, o
vínculo entre habitação e transportes. Em vez de concentrar o
crescimento urbano ao longo dos equipamentos de transportes sobre
trilhos, predominantes na primeira metade do século 20, as cidades
brasileiras adotaram um caminho duplamente perverso.
Por um lado, promoveram
formas de ocupação do espaço habitacional que aprofundou o abismo
entre periferias, desprovidas de serviços públicos, com baixa
densidade populacional e onde é precária a própria presença do
Estado e áreas centrais com força econômica, para as quais é
preciso deslocar-se diariamente num esforço extremamente penoso e
que consome tempo imenso.
Por outro lado,
submeteram-se ao império do transporte motorizado e sobre pneus,
capaz de chegar justamente a essas áreas distantes, mas desprovidas
das infraestruturas elementares de uma vida urbana civilizada.
De todas as habitações
construídas no país, 80% não contaram com qualquer tipo de
financiamento formal ou assistência pública. O problema desta
autoconstrução, como bem coloca o documento da CNI, é que "a
família produz o domicílio, mas só o coletivo produz
infraestruturas".
Mesmo que a renda
dessas famílias tenha, recentemente aumentado, elas seguem, em sua
maioria, distantes dos bens públicos e dos equipamentos coletivos
sem os quais dificilmente se pode falar em cidadania. Saneamento
precário, transportes de baixa qualidade, dificuldades crescentes
com relação à segurança em áreas distantes dos grandes centros,
estas são algumas das marcas decisivas das periferias brasileiras.
A elas acrescentam-se
os congestionamentos, que comprometem não só a mobilidade dos que
têm carros, mas, sobretudo, a dos que dependem desses transportes
coletivos de baixa qualidade. Como os congestionamentos são cada vez
maiores e atingem número crescente de cidades (e não só as
metrópoles), cria-se imensa pressão para que as autoridades
resolvam o problema do trânsito, abrindo novas vias que, em pouco
tempo, acabam tão intransitáveis quanto aquelas às quais elas
tinham, originalmente, a intenção de imprimir maior fluidez.
Transportes coletivos
de alta qualidade, financiamento a habitações populares e, ao mesmo
tempo, contenção do espalhamento geográfico das cidades, são os
três vetores fundamentais para um ambiente urbano capaz de propiciar
desenvolvimento a seus habitantes.
Apesar da profundidade
do diagnóstico e da criatividade das propostas para enfrentar os
problemas urbanos brasileiros, o texto da CNI deixa de levantar
justamente a questão central que Bill Ford e os participantes do
evento da Audi discutem: continuar aumentando a produção de
automóveis individuais, será isso coerente com a inversão das
prioridades do planejamento urbano em direção a transportes
coletivos de alta qualidade?
O documento faz
propostas interessantes à atuação do poder público para ampliar a
mobilidade. Mas não é admissível que, diante de constatações tão
ricas e bem fundamentadas, as atividades das montadoras sigam de
vento em popa, com vasto apoio governamental, como se elas nada
tivessem a ver com o colapso das cidades que o estudo de sua
representante maior, a CNI, denuncia.
RICARDO ABRAMOVAY,
professor titular da FEA e do IRI/USP, pesquisador do CNPq e da
Fapesp, é autor de "Muito Além da Economia Verde", ed.
Planeta Sustentável.
twitter: @abramovay
e-mail: abramov@usp.br