Números

Números, Bíblia de Jerusalém. 

Esta é uma leitura literária de Números. Este livro, como quase todos os outros da coleção, é repleto de símbolos, metáforas, eventos fantásticos, místicos e mágicos, que possibilitam variadas interpretações. 

Neste livro, o leitor pode passar por cima dos monótonos recenseamentos do povo que está no deserto, sem prejuízo do entendimento. Acerca disso, tem-se que, no início do tempo no deserto, o povo conta seiscentos mil e, no final, também seiscentos mil, embora esta geração final não seja a geração inicial. 

O povo passou quarenta anos no deserto? Pode ser que sim, pode ser que não. É símbolo: o povo passou “muito tempo” no deserto. O povo saiu do Egito e se tornou um povo nômade do deserto. As terras boas além do deserto estavam ocupadas, evidentemente, e o povo nômade tentou algumas vezes invadi-las, sem sucesso. Aquele povo nômade olhava com inveja a terra boa dos outros. Iahweh, essa invenção, não deu terra a ninguém. É um argumento jurídico e mitológico que os nômades usaram para alegarem “direito” sobre as terras boas. O povo nômade do deserto não era bonzinho: era um povo selvagem, bárbaro, violento, haja vista as carnificinas que perpetraram em suas tentativas de invadirem as terras férteis. 

As pragas relatadas neste livro são pragas, pestes, epidemias normais em uma grande população sem acesso a condições ideais de saneamento e higiene. Todavia, a explicação mística é simples: o povo errou, Iahweh enviou uma praga, o povo sofreu, Iahweh retirou a praga. Pode-se imaginar as pragas que atingiriam tal população: cólera, varíola, gripe, peste, entre tantas. Incenso que Aarão fazia circular no acampamento não servia de nada. 

A partir dessas doenças epidêmicas, a legislação que advém é higiênica, porém revestida de caráter místico. Exemplos. Aquele que teve contato com sangue e cadáveres nas batalhas deve ficar fora do acampamento por alguns dias para se purificar. É evidente que essa norma de higiene diminui a possibilidade de contaminação. Da mesma forma, aquele que teve contato sexual com prostitutas ou mulheres de outras tribos deve se purificar. 

Enfim, neste livro, destaco o ritual do ciúme, um ritual bárbaro, misógino, machista e simbólico, e também a constituição das cidades de refúgio, relacionadas com a incipiente legislação acerca de intenção e culpa. 

Resumo. Números pode ser dividido em partes. 

1. Faz-se um recenseamento do povo que está no deserto com Moisés, são seiscentos mil, e a definição das ocupações dos levitas, que cuidam da Habitação. A ordem das tribos no acampamento, o recenseamento dos levitas. 

2. Reúne algumas leis. A lei do ritual para o ciúme é muito curiosa. Se a mulher dormiu maritalmente com um homem, às escondidas de seu marido e se não foi surpreendida no ato ou não há testemunhas, ou se um espírito de ciúme veio sobre o marido, deve-se: levar a mulher ao sacerdote e o marido faz uma oferenda de farinha de cevada, esta é a oferenda do ciúme. O sacerdote colocará água em um vaso de barro e pó do chão do Tabernáculo na água, agora chamada de águas amargas. O sacerdote fará a mulher jurar que não cometeu a falta e, depois, ela beberá as águas amargas. Se ela for culpada, seu sexo vai murchar e seu ventre vai inchar. Isso é indígena, isso é de povos selvagens, esse ordálio (quando a prova judiciária é feita com a concorrência de elementos da natureza e cujo resultado era interpretado como um julgamento divino). Se uma mulher teve contato sexual com algum homem fora do casamento, seu sexo pode realmente murchar: uma doença sexualmente transmissível. Seu ventre pode realmente inchar, ou seja, ela pode ficar grávida. 

Depois, fala-se nas leis para o nazîr (nazireu) e o nazireato, Sansão, por exemplo foi um nazîr, o nazîr não pode cortar o cabelo, usar bebidas fermentadas nem se aproximar de cadáveres. Rituais tolos. 

3. Trata de oferendas das tribos e define que os levitas devem se aposentar aos cinquenta anos, que bom. 

4. Novamente a Páscoa. Regras para celebrar a Páscoa. Moisés consulta Iahweh quando surgem dúvidas, qualquer coisinha, uma consultinha a Iahweh. O povo marcha no deserto guiado por uma estranha Nuvem. Quando a Nuvem para, eles acampam, quando ela se move, eles se movem. Regra sobre o uso das trombetas. Marchas no deserto são como uma campanha militar, o guia se chama, até hoje, o olho da caravana. 

5. Etapas no deserto. Volta a história do maná e das codornizes. Maria e Aarão falaram mal de Moisés porque este tomou uma mulher cuchita. Iahweh castigou apenas Maria com a lepra, machismo óbvio. Aparentemente, ela foi perdoada depois de sete dias. Foram enviados olheiros para a terra de Canaã. Eles voltaram com produtos da terra, mas revelaram que a terra estava ocupada por povos mais fortes que os israelitas. O povo teve medo e reclamou novamente, o Egito era melhor. Povo insatisfeito, reclama o tempo todo. Caleb, todavia, disse que não deviam ter medo porque Iahweh estava do lado dos israelitas. De todo modo, Iahweh se arretou e disse que aquela geração não entraria na terra prometida. Somente quarenta anos depois poderiam entrar. Parte dos israelitas tentou ainda entrar pelas montanhas ao sul, sem que a Arca os acompanhasse, mas foram rechaçados. O povo seguiu, então, na direção do Mar de Suf para entrar pelo leste. Esta composição mostra as campanhas militares daquele povo para tentar entrar e ocupar as terras de Canaã. 

6. Sacrifícios e oferendas por faltas cometidas. Apedrejamento do homem que foi apanhar lenha no sábado. Um grupo de duzentos e cinquenta israelitas se rebelou contra a liderança de Moisés. Ele colocou-os na frente da Tenda da Reunião e Iahweh fez a terra abrir a boca e engolir todos eles, que “desceram vivos ao Xeol”. Xeol é o Hades dos hebreus. Xeol designa as profundezas da terra, para onde os mortos descem, os bons e os maus sem distinção, onde Deus não é louvado, contudo o poder de Deus age mesmo lá no Xeol. Talvez Moisés tivesse alguns truques de magia, pólvora não existia, mas algo semelhante, para produzir a tal Nuvem e as manifestações de Iahweh. A gente vai compreendendo que é tudo muito simbólico e muito derivado de acontecimentos reais na origem. A obsessão com a pureza derivava das doenças e pragas. Uma praga aconteceu e deixou quatorze mil e setecentos mortos: quem gerou a praga foi a cólera de Iahweh porque, obviamente, o povo falhou em algo. Aarão combateu a praga com incenso, que para nada serve, mas a praga acabou um dia; quem acabou com a praga? Iahweh. Iahweh bota praga e tira praga, sem qualquer motivo. Tudo Moisés consultava Iahweh; nem se tivesse um celular ligado diretamente com lá-em-cima. Na verdade, Moisés inventava a lei que queria e botava a culpa em Iahweh. Toda hora é Iahweh disse isso, Iahweh disse aquilo. Iahweh disse que a melhor parte das oferendas ficava para os sacerdotes, o melhor vinho, o melhor azeite, o melhor novilho de cada rebanho, a melhor parte do cordeiro. Claro que quem faz leis sem restrições se beneficia delas. Iahweh ensina fazer uma oferenda de uma novilha vermelha sem defeito e perfeita, que deve ser queimada, o holocausto. As cinzas são usadas para fazer a água lustral, que é como uma água santa ou água benta, para purificação – novamente a obsessão de limpeza. Quem se aproxima de cadáver fica impuro. Faz sentido, porque não se sabe qual doença produziu aquela morte, peste, gripe, cólera. Então, o impuro fica fora da tribo por sete dias e lava a si e a suas vestes com a água lustral. 

7. De Cades a Moab. O povo de Israel é como um exército que vai invadir Canaã, os povos de Canaã tentarão evitar, resultado batalhas. Em Meriba, Iahweh achou que Moisés e Aarão duvidaram dele, não se sabe bem o motivo, e ficou enraivecido e disse que ninguém entrava na terra prometida. Em Edom, os israelitas pediram permissão para cruzar o território pela estrada real, foi recusada a permissão. Desviaram por outra região. A morte de Aarão é esquisita, ele sobe em uma montanha, passa o cargo para o filho e morre, sem motivo aparente; só se estava doente. O rei de Arad foi para cima de Israel que marchava para entrar no reino, Israel perde, depois ganha. O povo marchou em direção ao golfo de Ácaba, mas chama tudo de Mar de Suf. O povo reclama o tempo todo, ô povinho. “Saraf”, essa palavra, significa serpente, ou serpente de fogo, e também está na raiz da palavra serafim, curiosa palavra que serve para o bem e para o mal. Ataques de serpentes são combatidos com uma incoerência divina: Iahweh, aquele mesmo que condenou o bezerro de ouro, ordena que Moisés faça uma serpente de bronze na ponta de uma haste para proteger e salvar o povo dos ataques de serpentes. Descobre-se que havia livros ainda mais antigos que estes que chegaram até nós, por exemplo, o livro das Guerras de Iahweh. Os israelitas seguem sua marcha militar derrotando reis como Seon e Og. Balac, rei de Moab, teme os israelitas, e manda chamar Balaão, sacerdote, profeta, para amaldiçoar aquele povo, Balaão vai em sua jumenta e por três vezes ela sai do caminho, até que a jumenta pergunta “por que me bates?” e aparece o Anjo de Iahweh que estava bloqueando o caminho, mas agora deixa Balaão passar, vai Balaão e encontra Balac. E Balãao abençoa Israel três vezes, por ordem de Iahweh. Então Balac se arreta, mas segue seu caminho, incompreensível, e a história termina aqui, sem saber se Israel derrotou Balac. Israel se fixou perto de Moab e houve prostituição com as moabitas, Iahweh arretou-se e mandou logo empalar aqueles que foram com as moabitas. Também veio uma praga e morreram vinte e quatro mil e a praga cessou quando o neto de Aarão matou um israelita que foi para o acampamento com uma madianita: ele transpassou os dois com uma lança. Iahweh ordenou atacar os madianitas. As relações entre Israel e os vizinhos varia entre batalhas e alianças. 

8. Novo recenseamento, seiscentos mil, também recenseamento dos levitas. Iahweh diz que se um homem morrer sem filhos, transmite-se a herança para as filhas. Iahweh anuncia que Moisés vai morrer sem a terra prometida, ainda por alguma falta na Meriba, e Moisés pede a indicação de um novo líder, que vai ser Josué. Iahweh pede uma montanha de oferendas, dois cordeiros em holocausto todos os dias, o holocausto do mês com dois novilhos, um carneiro, sete cordeiros e mais um bode. Definem-se as festas, páscoa, festa das aclamações, das expiações, das tendas. Lei sobre votos, que é simples: “prometeu tem que cumprir”. Promessas feitas por mulheres só valem se validadas por pai ou marido. 

9. Despojos de guerra. Guerra contra Madiã: mulheres e crianças cativas, gado, rebanhos, bens, queimaram tudo, mataram Balaão, que havia abençoado Israel três vezes, crueldade. Moisés não gostou de terem trazido mulheres e crianças, ordenou que ficassem apenas com as moças virgens e as meninas, matassem o resto, sobraram trinta e duas mil virgens, evidente exagero. Os combatentes ficaram fora do acampamento israelita para se purificarem com água lustral e quarentena de sete dias. Divisão dos despojos entre a comunidade, sacerdotes e levitas. Os filhos de Ruben e de Gad pedem para ficar na Transjordânia, nas terras de Jazer e Galaad. Moisés não quis, advertiu que Iahweh poderia aumentar o tempo deles no deserto, mas eles disseram que iriam às batalhas por Canaã e voltariam depois, e Moisés disse “assim ok”. Novamente, lista das etapas do êxodo, é chute, etapas conflitantes, incoerentes, mar dos Juncos. Iahweh ordena que quando atravessarem o Jordão, destruam estátuas e templos, tomem posse da terra, expulsem os habitantes. Iahweh estabelece os limites geográficos da terra prometida: Iahweh atua como agrimensor ou topógrafo. Citam-se os príncipes de cada tribo. Quarenta e oito cidades são para os levitas, e seis delas são cidades de refúgio. Aquele que matar alguém involuntariamente se abrigará nas cidades de refúgio. Para homicidas, a pena de morte, que é executada pelo go’el, que é o vingador do sangue de uma dada família, é o protetor daquela família. Se o homicida não teve a intenção, não será morto, mas vai morar em uma cidade de refúgio até o dia em que o sacerdote daquela cidade morrer. Então, poderá sair da cidade de refúgio. Se o homicida não intencional sair antes da cidade de refúgio e for encontrado pelo go’el, este poderá matá-lo e não sofrerá qualquer pena. Em casos de homicídio, não pode haver apenas uma testemunha. Iahweh faz melhoramento na lei de herança das filhas: elas só poderão ficar com a herança do pai se casarem dentro da mesma tribo do pai, para não diminuir o total de terras da tribo. Fim de Números.