O diabo no corpo, Raymond Radiguet, 1923, 136 páginas, tradução de Paulo César de Souza, Penguin Companhia. Lido entre 29/03/2021 e 06/04/2021. Nota 2 (Regular).
Não gostei. O narrador é jovem e imaturo, cruel, possessivo, infantil, despótico. Todavia, real, incongruente. Um jovem desagradável.
Diz-se que personagens ricos em contradições são mais reais. Sim, é verdade. Todavia, não significa que um tal personagem despertará a empatia do leitor. Pode despertar, pode não despertar. O leitor, por vezes, pode torcer pelo sucesso de um personagem despótico, imaturo. No caso do narrador deste livro, que faz tudo errado, só me deu vontade de que o livro terminasse logo.
Há que destacar que o narrador sem nome é muito real: não tem certeza se ama; quando longe, sente saudade; quando perto, quer estar só; mente em excesso; tem ciúme, exerce a crueldade contra Marthe, que ele sabe dominada.
De todo modo, ambos são extremamente jovens e envolvidos em uma situação complicada na qual, em princípio, não desejariam estar. Dezesseis e dezenove anos.
Só conhecemos de Marthe aquilo que o narrador diz. Por um lado subjugada, submissa, amorosa. Por outro lado, desafia as convenções, os pais e, de certo modo, mais silencioso, desafia o marido que está na guerra. Mente, também, para todos e para o amante.
O pai do narrador é personagem interessante. Dúbio, varia entre tentar impor sua autoridade e em deixar que o filho escolha o caminho.
O final da novela, do tipo “tudo está bem quando acaba bem”, me fez detestar, ainda mais, o narrador: tudo fica bem para ele, não para Marthe.
Cabem três observações, ainda.
No romance, a Grande Guerra é algo aparentemente distante, e é uma época satisfatória para o jovem narrador. Há uma desestruturação do “normal”, da escola, da autoridade dos pais, durante os anos da guerra. Fora da escola, o narrador lê cem livros em dois anos.
Fora do romance, Radiguet, que teve vida curtíssima, quando adolescente manteve um relacionamento escandaloso com uma mulher mais velha e casada, o marido dela na guerra, Radiguet com quatorze anos, ela com vinte e quatro. O fato é saboroso, mas não torna o livro melhor.
O
posfácio conta como o autor conheceu Jean Cocteau: “Eles se conheceram em junho
de 1919, em uma matinê poética organizada por Max Jacob em memória de
Apollinaire, vitimado pela gripe espanhola seis meses antes.” Tempos que se
parecem com os nossos, agora.
Aviso de spoiler: vou escrever sobre todo o enredo do livro,
continue por sua conta e risco.
Resumo.
Quando o narrador tinha doze anos, apaixonou-se por uma menina da escola. Enviou uma carta para ela. Os pais da menina entregaram a carta ao diretor. O narrador passou a estudar em casa. Em 1913 e 1914, leu duzentos livros. Começou a guerra e todos exultavam, vinho e flores para os soldados. O atentado de Sarajevo como fenômeno premonitório. Em 14 de julho de 1914, uma criada em surto sobe ao teto da casa onde trabalha e depois de muitas horas pula. O narrador desmaia nos braços do pai. O estranho período da guerra e a poesia das coisas. Três anos de guerra se passaram, brincadeiras e travessuras com garotas: favores miúdos mútuos.
Em 1917, ele conheceu a garota Marthe, dezoito anos, ele quinze anos. Ela era noiva de um soldado que a proibia de ler certos livros, Baudelaire por exemplo. A felicidade é egoísta. O narrador foi visitar Marthe, ela havia saído com o noivo. Um mês depois, indo para a escola, encontrou-a por acaso na Bastilha, passearam e ele a acompanhou nas compras de roupas e móveis para a nova casa, influenciando as escolhas dela. Começou a faltar aulas, queria liberdade. O amigo René foi expulso por faltar aulas também. Ele acredita que também seria expulso e avisou ao pai, disse que queria pintar. Não queria fazer nada da vida, tinha o espírito livre. Não havia sido expulso e chegou a carta de matrícula.
Marthe casada e só, o marido Jacques na guerra. O narrador a visita diversas vezes até que fazem sexo, ele dezesseis, ela dezenove, crianças. Ele conta mentiras em casa para ficar na casa dela. Tem a chave da casa. Ele inventa um passeio que possibilite passar a noite com Marthe. Os pais descobrem a mentira. Marthe é um pouco mais madura que o narrador, mas só um pouco. A relação deles é recheada de imaturidade, infantilidades e, da parte dele, de ciúme, despotismo e crueldade. O escândalo silencioso, os amigos se afastam.
Marthe vai passar algum tempo na casa dos pais. O marido passa algumas licenças com ela. Tudo é provisório, um castelo de areia. O marido doente é ignorado por ela. Marthe grávida, vai dizer que o bebê é do marido. Mais uma licença do marido de Marthe, o narrador quer esquecê-la, mas fica ansioso por cartas. Ciumento, tenta proibir o banho de mar dela.
Cena terrível, o narrador estupra Svea, amiga de Marthe, na casa de Marthe. Os amantes passam uma temporada idílica na casa dos pais de Marthe que estavam fora. Sonho romântico, efêmero, ciúme do passado de Marthe. A mãe dele vê o relacionamento como tragédia, o pai é dúbio. A mãe de Marthe desaprova, mas tenta apoiar a filha no que for possível. Os pais do marido desaprovam a esposa. Todos parecem pensar, ou querer acreditar, que o filho é do marido.
Depois de passar três dias com Marthe, o narrador não quer dormir em casa, ela não quer que ele fique, decidem ir para um hotel em Paris. Noite fria e chuva, ele uma criança medrosa, voltam para a casa dela. Ele é cruel, insano. Marthe fica doente depois daquela noite de chuva. O médico recomenda repouso absoluto, ela vai para a casa dos pais.
Fim da guerra. Nasce o bebê, prematuro. Marthe coloca o nome do narrador no bebê. Não se veem mais. Marthe morre. Meses depois, o marido visita a casa do narrador, em visita ao pai dele, para ver aquarelas de Marthe. Diz que ela morreu chamando o nome do bebê. O bebê é tudo para Jacques. Para o cruel narrador, tudo ficou bem: “compreendi que afinal a ordem se estabelece por si mesma em torno das coisas. Não acabava de saber que Marthe havia morrido chamando por mim, e que meu filho teria uma existência razoável?”