Utopia, Thomas More, 1516, 216 páginas, tradução de Denise Bottmann, Penguin Companhia. Lido entre 06/04/2021 e 16/04/2021. Nota 2 (Regular).
Thomas More nasceu em 1478, foi conselheiro de Henrique VIII, negou-se a rejeitar o catolicismo, foi preso na Torre de Londres, declarado traidor e decapitado. Depois de uns quatrocentos anos, foi transformado em santo. Certamente, não valeu a pena perder a cabeça para virar santo. E hoje, a briguinha entre católicos e anglicanos é nada: são seitas amiguinhas. O grande interesse das religiões é influência, poder e dinheiro. Tolo é aquele que perde a cabeça para defender crenças infantis e aquele que se mete na briga dos poderosos. Religião, política e futebol é somente grana, briga de cachorro grande: os aficionados são bucha de canhão.
O livro.
A ilha de Utopia é uma distopia.
Isto é o mais espantoso para quem, como eu, nunca havia lido o livro de More. O pouco que eu sabia do livro se misturava a um pouco de imaginação. Eu imaginava uma ilha onde a vida seria um paraíso na terra, tudo funcionaria, todos felizes. Ora, o que é que se imagina como uma utopia?
Thomas More criou a palavra utopia, cujo significado original em grego, “lugar nenhum”, se expandiu para “lugar ou sociedade ideal, de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos”. Mas temos também como sinônimo de utopia: quimera, fantasia, fábula.
Daí, que o leitor ingênuo vai ler a Utopia de More e se depara com uma sociedade distópica, um lugar onde “se vive em condições de extrema opressão”. Talvez, para More, a ilha de Utopia seja um lugar ideal para viver. É uma visão ingênua e distorcida do autor.
Desse modo, curiosamente, Thomas More criou, ao mesmo tempo a utopia e a distopia. Vou listar aqui algumas das características principais que fazem da ilha de Utopia um péssimo lugar para viver (cabe observar, antes, que a ilha de Utopia é um tipo de comunismo: não há dinheiro nem comércio, tudo é de todos, e todos são vigiados).
Características distópicas da ilha de Utopia:
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Moradores da cidade e do campo são obrigados a mudar de lugar periodicamente
entre as localidades.
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Dentro da cidade em que habitam, os moradores são obrigados a mudar de casa a
cada dez anos.
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O dia e as atividades cotidianas são rigidamente determinadas, inclusive o parco
lazer, a hora de dormir e a quantidade de horas de sono.
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Escravos fazem as tarefas “sujas”; somente as mulheres cozinham.
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Os habitantes são deslocados de acordo com a necessidade do estado, caso haja
sub ou superpopulação em algum lugar.
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Todos são vigiados por todos, e os jovens são especialmente vigiados.
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Para viajar, é preciso autorização e data de retorno.
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Uma vez por mês, as esposas devem se ajoelhar diante dos maridos para confessar
os pecados. Deduz-se que os maridos não têm pecados porque não existe o mesmo
dever para eles.
Portanto,
vê-se que a Utopia de Thomas Mores nada tem de utopia; é, sim, uma sociedade
militaresca, rígida, fanática, ortogonal.
Segue o resumo dos pontos principais do livro.
Livro 1
O autor viaja e passa por Bruges e Antuérpia. Conhece um homem que se chama Rafael Hitlodeu (fornecedor de absurdos, em grego). Português, Hitlodeu se juntou a Américo Vespúcio – não se fala de Colombo – e viajou por Ceilão, Calicute e pela América. Na América imaginada pelo autor, Hitlodeu visitou numerosas vilas e países. Ensinou o uso da bússola aos “americanos”.
Havia monstros em todos os lugares e no oceano, mas Hitlodeu quer mesmo é contar sobre os utopianos. Utopia fica na região equatorial. Mas antes de iniciar a narração, Thomas More diz a Hitlodeu que este, com seu conhecimento, deveria assessorar reis e príncipes. Hitlodeu discorda e demonstra que não funcionaria. Descreve uma longa conversa na casa do arcebispo de Canterbury: discutem sobre a pena de morte para ladrões, os ricos, a propriedade, o ócio, o desperdício, a exploração pelos proprietários de terras, guerras, a falta de terras para o povo. A sociedade cria ladrões para depois puni-los por o serem. A solução de Hitlodeu para os ladrões é colocá-los para trabalhar, como escravos, para o bem coletivo.
Thomas More insiste que Hitlodeu deveria ser conselheiro de príncipes. Hitlodeu dá exemplos de que não daria certo. É inútil sugerir conselhos para os governantes. A filosofia não tem lugar entre os príncipes. Os sábios têm razão em se afastar dos assuntos públicos.
“Se eu propusesse leis justas a um rei e tentasse extirpar as fontes do mal dentro de si, pensas que eu não seria sumariamente expulso ou convertido em motivo de ridículo?”
Hitlodeu prega o estado com um mínimo de leis e tudo igualmente dividido. More diz que não é possível viver onde tudo é comunal. Hitlodeu diz que só voltou de Utopia “para revelar esse novo mundo”. Utopia: uma revelação (portanto, apocalipse, em grego).
Livro 2
A ilha de Utopia tem a forma da lua crescente, com uma enorme baía. Seu nome anterior era Abraxas (sigla grega que junta as iniciais dos “sete planetas” conhecidos). A ilha era ligada ao continente, mas Utopo realizou a obra de separação, cortando o istmo. A descrição que Hitlodeu vai fazer sugere um lugar rígido, militaresco, ortogonal, restrito, em todos os aspectos.
A ilha conta com 54 cidades semelhantes, porque planejadas da mesma forma. A capital é Amaurota (cidade ilusória, sem grego). Moradores da cidade e moradores do campo mudam de lugar periodicamente. Organização social rigorosa. Não há comércio.
Amaurota fica à margem do rio Anidro (anidro significa sem água). Há água doce e fresca. Em nenhum momento, Thomas More se preocupou com o esgotamento sanitário. A cidade é cercada por muralhas. Há um riacho dentro da muralha, fontes e cisternas, para o caso de sítio. As ruas são ortogonais e tem largura de 600 metros. As portas são automáticas (!), abrem e fecham sem toque humano.
Os moradores trocam de casa a cada dez anos. Cada casa cultiva, no quintal, vinhas, frutas, legumes. Todas as casas são iguais e com três pavimentos. Os telhados são planos (completamente inadequado para regiões equatoriais de muita chuva).
As cidades são divididas em quatro distritos. Governador é cargo vitalício. O Senado decide questões públicas. Os conflitos privados são raríssimos. Os ofícios são poucos: tecelagem, alvenaria, metalurgia, carpintaria. Nota-se que o autor esqueceu diversos ofícios essenciais, alguns citados depois, como a medicina e a agricultura.
Todas as roupas são iguais e adaptadas a frio e a calor (tecnologia de ponta que ainda não alcançamos). Cada família costura sua própria roupa. As mulheres assumem profissões mais leves. Os filhos adotam a profissão dos pais. Se quiserem outra profissão, devem ser adotados por outra família. São seis horas de trabalho por dia; de nove às doze, e de duas às cinco da tarde. Às oito da noite, todos deitam para dormir durante oito horas.
O tempo livre não deve ser usado para o ócio. Há palestras públicas antes do amanhecer. Depois do jantar, há uma hora de recreio, com música e conversa e uns jogos chatos. (Resta saber qual é o tempo livre: as famílias devem costurar, cuidar de suas hortas, trabalhar em seus ofícios e seguir os horários estritos impostos.)
A manutenção das edificações é feita permanentemente. A roupa de trabalho dura sete anos. Sobre ela, usa-se um manto para a vida social, de uma única cor para todos. Os mantos duram dois anos. Cada casa abriga dez a dezesseis adultos. Quando há cidade subpovoadas, transferem-se habitantes de outras cidades para lá. Se há superpopulação na ilha, transferem-se habitantes para colônias no continente, seguindo as mesmas leis da ilha. Se faltar gente na ilha, aqueles da colônia são repatriados.
Aqueles que recusam as normas, são expulsos. Se forem um grupo, estabelece-se uma guerra contra aqueles rebeldes.
Nos depósitos e feiras, os cidadãos podem pegar o que precisarem, sem pagamento. Animais são mortos e a carne tratada fora da cidade por escravos. Refeições são feitas em conjunto em salas comunais. As tarefas “sujas” são realizadas por escravos. As mulheres cozinham os alimentos. As crianças e adolescentes comem em pé e em silêncio. As pessoas jovens comem nas mesas misturadas com os mais velhos para coibir atitudes inadequadas. Durante as refeições, leituras de tema moral que suscitam conversas respeitáveis. Os hospitais e os médicos são pefeitos.
Para viajar, é necessário obter licença e especificar data de retorno. Viajante sem licença é detido e punido. Não existem tabernas, bares e bordéis. Encontros furtivos não são permitidos; a vigilância pública garante o comportamento adequado. O lazer não pode ser indecoroso.
A exportação de excedentes gera riqueza que é usada quando as guerras se fazem necessárias. A maior parte do exército é de mercenários. Ouro e prata são usados para fazer urinóis e grilhões para prisioneiros. A ilha tem pérolas e diamantes.
A religião é grave, severa, rígida, soturna. Acreditam na alma imortal e na bondade de deus. Só se admite o prazer bom e honesto. A razão conduz a deus. (Essa parte é cheia de baboseiras religiosas). “Aquelas coisas não naturais não contribuem para a felicidade”. O prazer verdadeiro é contemplar a verdade com a esperança em alegrias futuras. O prazer físico é, por exemplo, esvaziar os intestinos e fazer filhos. Os utopianos têm opiniões únicas; todos concordam. “O que faço é descrever, não defender”, diz Hitlodeu.
O clima de Utopia não é grande coisa mas, contraditoriamente, as safras são abundantes e os rebanhos férteis. Os escravos são gente do próprio povo. Se a doença é incurável e torturante, recomendam a eutanásia. Essa ideia é excelente. Entretanto, o suicídio é desonroso: o corpo é jogado no pântano. Idade mínima para casamento: 18 anos, mulheres; 22 anos, homens. O sexo antes do casamento recebe severa punição; os infratores ficam proibidos de casar. Os pretendentes são apresentados nus.
O adultério é crime, a reincidência é punida com a morte. Divórcio permitido. Os maridos podem castigar as esposas e os filhos. Há pouquíssimas leis (isso é fantasioso). Não há advogados; o juiz protege a parte mais fraca. Homens e mulheres fazem treinamento militar. Na visão de Hitlodeu, guerras e relações internacionais são muito simples. Os mercenários são do povo zapoleta: soldados perfeitos.
As armaduras são sólidas e ágeis. Há várias religiões; cultuam o Sol, a Lua, Mitra, mas muitos adotaram o cristianismo. Não há conflitos religiosos, mas o ateísmo é proibido, não se pode acreditar que a alma morre e que somos governados pelo acaso. A morte é feliz por causa da vida após a morte. Alguns acreditam que as almas dos mortos circulam entre os vivos. Os antepassados mortos protegem os vivos. Eles rezam por milagres.
As esposas se ajoelham diante dos maridos para confessar os pecados. Os sacerdotes usam trajes feitos com plumagens de pássaros. Só há dois dias não úteis por mês: o último e o primeiro. Hitlodeu pontua, por fim, que a sociedade dos nobres e aristocratas é injusta, composta por parasitas e bajuladores. A república é uma conspiração dos ricos. Cristo não consegue impor sua autoridade por causa de uma besta: a soberba.
Thomas More diz a Hitlodeu que as leis e costumes de Utopia são absurdos, especialmente a vida comunal e a abolição do dinheiro, mas que ele gostaria de ver algumas das características de Utopia nas “nossas cidades”.