sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Atletinha

 

Sala de espera de exame. É meio feriado, deixei a menina em casa com marido, o inútil queria sair para encontrar os amigos, caldinho, foi uma discussão homérica aquilina no quarto para a menina não ouvir, mas é claro que ouviu, a gente não fala baixo quando discute. Eu expliquei para o inútil que eu já havia avisado a ele sobre o exame, e expliquei também que aquele feriado era parcial, a maior parte das pessoas úteis do país estava trabalhando normalmente, e que eu mesma ia para o exame em jejum, fome du, e depois ia para o trabalho, e ele sabia de tudo isso e não ia mesmo sair com a coisa dos amigos dele porque não havia ninguém para ficar com a menina, a escola sem aula, e pronto e saí e não me despedi de ninguém. 

Deve fazer ao mal ao resultado dos exames esse estresse todo, alguma taxa vai dar errado. 

Sala de espera de exame e eu percebo que eu detesto todo mundo ali, não sei de onde vem essa minha capacidade de odiar todos os seres humanos. Sei, sei, você é metida a coisa de psicóloga e vai mencionar que, de fato, eu odeio a mim mesma. Ora, vá tomar no papeiro. Todo mundo é assim, todo mundo é falso, todo mundo odeia todo mundo, todo mundo me critica, todo mundo critica você assim que você sai, assim que você entra nos cantos, assim que você posta uma foto da tua carantonha curtindo uma praia, e todo mundo pensando que coragem a tua de tirar foto dessa tua carantonha feíssima para se exibir. 

Na minha sala de espera, onde detesto todo mundo, detesto mais, detesto com especial vigor, algumas pessoas. A mulher, sei lá, cinquenta anos, corpo bom ainda, vestido ajeitadinho, cabelo espichado em algum tipo de química e pintado de castanho, detesto cabelo artificial, e o que mais detestei nessa doida é que veio com a filha, dezesseis anos, sem necessidade, esses exames que fazem aqui não precisa coisa de acompanhante, e a coisa da filha, shortinho jeans, blusinha, veio encangada com o namoradinho, ora que droga é essa, tem lá necessidade dessa procissão, dessa comitiva, para vir fazer um exame, e o casalzinho nefasto fica arrulhando, acho que a doida da mãe não quis deixar os dois a sós no apartamento para que eles não fizessem, tolinha, eles já fazem há muito tempo. Ou sei lá o que a doida quis para trazer os dois idiotazinhos. 

Todavia, eu pude concentrar o meu ódio em uma moça, eu focalizei, eu direcionei, eu espero que ela tenha sentido alguma vibração do meu detestamento. Havia cadeira sobrando na primeira sala, mas a coisinha ficou em pé, como se fosse a princesinha que não podia por a bundinha na cadeirinha. Depois, a roupa, completamente descabida para ir fazer exame: um shortinho de lycra preto curtíssimo, daqueles para fazer exercício, uma blusinha branca de algodão, eu sou a atletinha, a roupa dizia, eu sou saúde, mim saúde, vocês doença, ela tem vergonha de fazer exame, exame é coisa de doente. Por baixo da blusinha de algodão, sutiã preto, feio, era grande, não era um sutiã gostosinho, delicadinho, sensual, era largo, provavelmente para sustentar os peitinhos quando ela pulasse na ginástica, tão saudável a coisinha. Um metro e sessenta. De início, loura, mas logo vi, falsa, cabelo castanho escuro mal pintado de louro, o louro indo embora, o castanho renascendo, predominando. Sandálias havaianas. Ora, cadê o tênis, se estava com roupinha de ginástica, aí, sandalinha havaiana pretinha sujando o pezinho branquinho de poeira. Pé ia chegar em casa marrom de sujo. 

Depois que passaram o gado, a gente, para outra sala, a lourinha atletinha decidiu sentar e sentou na cadeira mais afastada possível de nós, os outros, os doentes, ela não, ela saudável, exame de rotina, os outros, gordos, velhos, doentes, derrubados, davam nojinho nela. Na pontinha da cadeira para não encostar as coxas nuas no plástico contaminado do assento. Na cadeira mais afastada e olhando para o lado oposto do rebanho. Concentrei meu ódio, minha raiva do marido, da filha, do emprego, naquela cabecinha loura-falsa, naquela pele branca, pernas brancas torneadinhas, detestei cada centímetro da mocinha. Fiquei concentrada para ouvir o nome dela quando chamassem, para odiar melhor, odiar pelo nome, pessoalmente, mas algo me distraiu, ah foi a doida com os pombinhos, e não captei o nome da atletinha, fiquei frustrada. 

Me furaram de novo, me deram papéis, fui para o trabalho e não produzi quase nada no dia, meu fígado derramava a bile verde no mundo, esverdeava o céu e as nuvens, tons diferentes, estava bonito.

Livro das perguntas

Certo dia, Pablo Neruda recitou em público sua Ode dedicada ao poeta García Lorca e “alguém do público fez esta pergunta: 

- Por que você diz na Ode a Federico que por ele ‘pintam de azul os hospitais’? 

Com certeza, Neruda teria preferido mandá-lo passear com toda a sua cordialidade, mas por qualquer razão respondeu da seguinte forma: 

- Para mim a cor azul é a mais bela das cores. Tem a implicação do espaço humano, como a abóbada celeste, para a liberdade e a alegria. A presença de Federico, sua magia pessoal, impunha uma atmosfera de júbilo a sua volta. O meu verso provavelmente quer dizer que inclusive os hospitais, inclusive a tristeza dos hospitais, podiam se transformar sob o feitiço da influência dele e de repente verem-se convertidos em belos edifícios azuis.” 

Herrín Hidalgo in “Quem sabe algo sobre o amarelo?” no Livro das perguntas, Pablo Neruda, Cosac Naify, 2007.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Pedacinho

Sala de espera do exame. Mulher, setenta anos, senta-se na borda da cadeira, virada para a recepção, pronta a entrar em atividade, prontidão, inútil, irão chamá-la pelo nome no momento certo. Duas mulheres de cinquenta anos conduzem a mãe velha, bastava uma, não era necessário aquela procissão para conduzir a velha, a velha fica largada em uma cadeira, torta, as duas, devem ser irmãs, colocam as fofocas em dia, uma delas, mais gorda e com uma blusa vermelha apertada nas gorduras, está com um livro grosso de Ruy Castro. Uma alma que se salvou, ninguém lê mais papel. Homem alto, largo, mas não gordo, acompanhado de mulher miúda, submissa, se vê, ele será o examinado, fala mais alto do que o necessário, usa bermudas e fala ao telefone resolvendo assuntos tão importantes e tediosos de empresário, deve ser um saco ser casada com esse aí. Levei um livro, Alice Munro, contos, e releio e remarco as frases importantes. Minha irmã é minha acompanhante, tive que recorrer a ela, marido jamais teria tempo para ir comigo a um exame, ademais, ele tem horror a doenças, hospitais e médicos, doençafóbico, e o trabalho dele é mais importante do que eu. Marido diz que não, mas nem gosta de tocar em mim quando estou doente, pavor de doença, não fala de doença, acha que atrai. Minha irmã sabe que não gosto de conversar em sala de espera, aí fica bem caladinha, apesar de sermos inimigas desde criancinhas, mas na hora agá e jota só tenho ela para me acudir. Me chamam, entro sozinha, claro, a enfermeira me bota na maca, fui de vestido, então ela diz que não preciso tirar o vestido, apenas a calcinha, devia ter ido sem calcinha, tiro a calcinha e ela empacota minha calcinha em um papel toalha. Fique deitada na maca, diz, fico um tempão, não sei por que fazem entrar se não vão fazer logo o exame, sentei na maca, botam a gente deitada logo para que a gente se sinta indefesa. Me arrastam para a sala do procedimento, cheia de tubos e máquinas e telas. Gente de branco. Um cara de branco fura um vaso na minha mão e diz vai arder, enquanto injeta um líquido que pode me matar, começa a arder e a doer, eu digo tá doendo, ele diz vai passar, eu digo tá doendo mui, e fica tudo escuro. Que delícia, o pretume total, queria ficar ali para sempre, nunca mais sair dali. Não tem sonho, não tem marido, não tem a menina, não tem frio, não tem calor, nada, morrer é assim e é sensacional. Tempão depois, começo a ressuscitar, são flashes de realidade, aquela luz seca de hospital, dói, mas ainda estou confortável, me embrulharam em um cobertor de alumínio, como filme de tragédia, vou mais consciente, minha irmã ali do lado, lê um livro, não sei para quê acompanhante, incomodar alguém. Não quero despertar, não quero ser revivida, mas não tem jeito. Grogue, meio cá meio lá. A médica vem e diz que foi tudo bem, mas tinha uma coisinha e tiraram um pedacinho e vai fazer uma biópsia, odeio essa palavra biópsia. Então não foi tudo bem, ora. Me cortaram um pedaço sem eu saber nem sentir. Detesto os diminutivos da médica e não, não foi tudo bem. Posso ir para casa, uma fome do bonde, não ando direito, minha irmã me leva, chego em casa não tem comida, sem mim aquilo vira uma zona, não quero saber de nada, dor de cabeça, vou para cama, só quero cama e dormir e nunca mais acordar. Esqueço a fome e a menina e marido e a zona da casa, durmo, apago horas, quero voltar para aquele lugar do nada absoluto.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Sistêmico


Sade: “[...] se as regras impostas foram infringidas foi porque nada segura a libertinagem e porque o verdadeiro modo de ampliar e multiplicar os desejos é querer lhes impor limites.” 

A menina cresce todos os dias. A roupa de ontem não cabe hoje. Marido passa pelo mundo com a cabeça nem sei onde. Ah, dizem, maridos mais jovens são mais ativos, dividem as tarefas, lá-lá-lá. Mentira, menina, isso é engabelação de materiazinha de jornal metido a coisa. Divide não, ajuda não. De cem, um divide. Ajudar, ajudam, mas é pouco. Quem sabe o que falta na casa sou eu, é a mulher. Eu desisti de ter ajuda de homem. Fazem tudo com displicência, impacientes, autocentrados. Minha cabeça já não está boa. Fui no médico, disse tudo, disse que tem algum problema geral no meu corpo, eu não disse “sistêmico”, adjetivo bonito, mas era o que eu pensava, não disse para não parecer pedante, disse, uma dor aqui, uma sensação ali, vontade de vomitar, o xixi, o cocô, o sangue. O médico não tocou em mim, acho que teve nojo do meu corpo. Não adianta me falar que devia ter ido em uma médica, prefiro médico homem e bem mais velho, médico novinho sabe de nada, frangotes. Não tocou em mim, não passou nada, mas quer me ver toda por dentro. Médico é assim, você por fora não vale nada, querem ver você por dentro, se pudessem te abriam ali, cirurgicamente, na hora, e trocavam as peças defeituosas, ou condenavam de vez. Fecha, não tem mais jeito, babau. E tudo é exame em jejum, já penso na fome, ai, ai, ai. Vão me furar, sugar meus líquidos e enfiar coisas e tubos por todos os meus buracos e fotografar lá dentro e tome fome. A medicina é muito atrasada. Devia ter uma máquina que visse tudo de uma só vez, em cinco minutos. Devia ter uma cápsula-comprimido, com sensores, chip e câmera e o diabo a quatro, engolia e a cápsula saía pesquisando tudo, fotografando tudo. Quando a gente botasse a cápsula para fora, ela emitiria um bip e piscaria uma luzinha para ser facilmente localizada. Isso tudo, sangue, xixi, tubos, vai descobrir meu câncer, mais de um, certamente, metástases, pólipos, cancros, muitos omas, linfomas, miomas. Coitada da menina que vai ficar sem mãe e com esse pai avoado. Coitada nada, vai ser mais feliz criada pelo pai somente, mais livre. Ai, vou levar a menina para comprar um tênis, enquanto estou viva, o pé dela está ficando monstruoso.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Congresso Internacional do Medo

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Carlos Drummond de Andrade in Antologia poética, 1980, Livraria José Olympio Editora.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

São Bernardo, obra-prima

             Notas avulsas sobre São Bernardo. 

São Bernardo, Graciliano Ramos, 1934. 

Madalena é um misto de Desdêmona sem o assassinato e Emma Bovary sem a culpa. Emma se mata após uma sequência de traições e libertinagens e despesas sem controle. Desdêmona é morta sem ter culpa de nada por conta do ciúme excessivo de Otelo. Madalena vê e compreende o ciúme incontrolável de Paulo Honório e executa a ação que ele gostaria de executar – e que talvez venha a fazer algum dia. Ela exime o Otelo alagoano de exercer sua vingança. Por outro lado, Madalena é deslocada do tempo e do lugar, assim como Emma, e não vê como pode continuar a viver desse modo. Assim como Emma, Madalena não demonstra qualquer amor pelo filho, e mata-se de forma semelhante. 

Paulo Honório, homem prático que estabelecia objetivos e, então, coordenava os esforços para alcançá-los, determinou-se a ter um herdeiro e, para isso, escolheu a fêmea reprodutora errada. Paulo Honório, sem ter qualquer religião, apela constantemente para o diabo e o inferno, e um pouco menos para deus, em seu vocabulário. Madalena não tem deus, mas a cena final entre ambos se dá na capela da fazenda. Madalena diz não saber se rezava, não, apenas falava consigo mesma. Ele e ela não encontram deus nem o diabo na capela, e não se encontram um ao outro. Não há encontro possível na estrutura de formação daqueles dois personagens. 

Casimiro Lopes como um duplo taciturno de Paulo Honório. O próprio narrador afirma isso: “E não me espantaria se me afirmassem que eu e Casimiro Lopes éramos uma pessoa só.” Quando Madalena chama Paulo de assassino, ele titubeia e pensa em Casimiro como assassino. 

Casimiro Lopes, o capanga, taciturno, calado. Diz Paulo Honório: “Quanto a palavras, meia dúzia delas.” Essa frase é sensacional pois tem meia dúzia de palavras! 

Quando soube que Madalena escrevia artigos em jornal, Paulo Honório esfriou em sua intenção de casar com ela: “Julguei que fosse uma criatura sensata.” 

Uma das mais belas imagens do grosseiro Paulo Honório: “de manhã, a serra cachimbava”. Quem já viu uma serra no interior do país, de manhãzinha, sabe do que Paulo Honório está falando. 

Madalena, “dois dias depois do casamento, ainda com um ar machucado”; Paulo Honório, brusco, grosseiro, mão enormes, sugere que o sexo com Madalena foi brutal para a mocinha loura, franzina. 

O capítulo 19, a metade do romance, é impressionante porque já antecipa mortes, fantasmas e o final da história. Mestre Caetano, mesmo morto, deveria trabalhar. Paulo Honório com seus fantasmas, solitário. 

Estamos à beira de um abismo.” O país sempre esteve e está à beira de um abismo. 

O ciúme começa no capítulo 24, dois terços do romance. Os ciúmes de Paulo Honório, infundados, lunáticos. A inferioridade tremenda de Paulo ante a inteligência, o cosmopolitismo de Madalena resulta no ciúme lunático, na insegurança absoluta. “Não havia sinais meus” no menino. Bentinho, Dom Casmurro. O menino era “feio como os pecados”. Os pecados da mãe não existiam, então foram os pecados do pai, assassino, que se perpetuaram na criança. “As perninhas e os bracinhos eram finos que faziam dó.” Feio e membros fininhos: o menino era um inseto, Kafka. Paulo Honório, bem como Otelo, a exigência de uma prova: “O que me faltava era uma prova: entrar no quarto de supetão e vê-la na cama com outro.” “Para que deixar viva mulher tão cheia de culpa? Quando ela morresse, eu lhe perdoaria os defeitos.” O Senhor Jaggers de Dickens: em certo tipo de casal, “é bater ou rastejar”. 

Temas de ficção científica. O tempo. Voltar no tempo e escolher outra opção. Se tivesse casado com Germana, vida de almocreve e feliz. Voltar no tempo e recomeçar com Madalena: a previsão infausta de que daria o mesmo resultado. Voltar no tempo e viver em outra época, na monarquia e a probabilidade de ser feliz. 

Há uma metamorfose no final ou, por outra, Paulo Honório se vê como nunca viu antes, percebe sua própria realidade, como o bicho de H. P. Lovecraft, Paulo se vê com “lacunas no cérebro”, “nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes”, “deformidades monstruosas”, Kafka.

Traduzir metamorfose

Duas pequenas notas sobre as traduções de A metamorfose por Modesto Carone e por Petê Rissatti. 

1) Gregor Samsa não gostava de um funcionário da empresa. Em alemão, o Geschäftsdiener, que pode ser traduzido como o contínuo (Modesto Carone), o atendente da loja (Petê Rissatti), balconista, porteiro ou servente. Gregor diz: Es war eine Kreatur des Chefs, ohne Rückgrat und Verstand. Tradução literal: Era uma criatura do chefe, sem espinha dorsal ou compreensão. 

Modesto Carone: Era uma criatura do chefe, sem espinha dorsal nem discernimento. 

Petê Rissatti se distancia da frase original: Era um serviçal do chefe, sem tutano nem perspicácia. 

Modesto Carone permanece próximo da frase original. É relevante, pois o narrador, transformado em inseto, coloca as características de inseto (invertebrado e não racional) no contínuo. O inseto é o contínuo, os insetos são os outros. Petê Rissatti perde essa referência com sua tradução da frase, além de diminuir a força da expressão original criatura do chefe. 

2) A faxineira, ou empregada, uma velha viúva, que tentava ser amistosa com o inseto. Gregor diz: Anfangs rief sie ihn auch zu sich herbei, mit Worten, die siewahrscheinlich für freundlich hielt, wie »Komm mal herüber, alter Mistkäfer!« oder »Seht mal den alten Mistkäfer!«. Em tradução literal: A princípio, ela também o chamava com palavras que provavelmente considerava amigáveis, como “Venha aqui, velho besouro de esterco!” Ou “Olhem para o velho besouro de esterco!”. A palavra importante aqui é Mistkäfer, que significa besouro de esterco, ou besouro rola-bosta. Não é que o inseto fosse um besouro, mas ocorria à imaginação da faxineira chamá-lo assim. É relevante seguir o original pois mostra que o autor não definiu o tipo de inseto mas, a partir da descrição inicial e da visão de um terceiro, o leitor pode configurar o inseto na sua mente. Todavia, Modesto Carone e Petê Rissatti se afastam da intenção do autor. 

Modesto Carone: No começo ela também o chamava ao seu encontro, com palavras que provavelmente considerava amistosas, como “venha um pouco aqui, velho bicho sujo!” ou “vejam só o velho bicho sujo!”.

Petê Rissatti: No início, ela o chamava também para si com palavras que provavelmente ela considerava amigáveis, como “Venha cá, velho bicho nojento!” ou “Vejam só o velho bicho nojento!”

Passarinho

Domingo. Detesto. Dia de ficar com a menina o dia todo, ver o marido o dia todo, melhor é dia de semana que não se tem de fazer de conta que se é uma família. Detestar é o verbo que me vem à boca todo o tempo. Domingo é tudo mais difícil. A casa continua se sujando, as roupas continuam se sujando, mas a menina quer brincar, a menina quer, a menina quer, a menina quer tudo. O marido não faz a barba, se aboleta na rede, no sofá. Parece que domingo é livre, mas é nada, a obrigação de fazer algo diferente, levar a menina no parque ou praia, almoçar em algum restaurante entupido de gente barulhenta e deseducada. Eu não pergunto, eu sei o que eu fiz para merecer isto, eu brinquei de boneca, é um mal, brinquei de casinha e pensava que a vida era brincar de casinha, um marido boneco, um carro rosa, tudo perfeito. A menina brinca de boneca, fazer o quê, é a mesma merda, a mesma repetição. Domingo. Marido acorda mais tarde e a menina acorda mais cedo, eu nem consigo pensar direito e levanto para enganar a menina com uma brincadeirinha e recolher a roupa do varal e pensar no que vai ser o café da manhã e o que vai ser no café da noite, o almoço já resolvido, é domingo, vou comer demais no meio do barulho.

Passarinho canta enquanto recolho a roupa. Detesto passarinho. Deve ser bom, ser passarinho, morre logo, dura pouco, não cuida de casa.

domingo, 25 de outubro de 2020

Útero

Tanta gente morre por besteira, só eu não. Queria um câncer fulminante de útero, de pâncreas, queria um ataque cardíaco fulminante, um raio que o parta, mas não, continuo aqui. Só não consigo é pular do prédio, fico imaginando o baque, a porrada, deve doer pra caralho, ainda não quero não. E foda-se quem achar que devo procurar “ajuda”, vou procurar porra nenhuma, não tem um psico-qualquer-coisa que tenha uma vidinha resolvida. Vai ver, é tudo complicado lá nas casas deles. Eu não quero ajuda, quero parar. 

Fico pensando na menina, claro. Ficar sem mãe. Meu marido é zero, não sabe nada de casa, nada de cuidar da menina, nada de roupas. Ele tenta, mas homem é um zero e acabou. A menina vai ficar sendo cuidada por ele, é até bom, vai crescer menos angustiada com as exigências da mãe. Já sinto um câncer crescendo no meu útero. Tenho medo. Queria uma doença rápida e indolor. 

Acho que é só a menina que me segura aqui. Penso na putinha com a qual meu marido vai se ajuntar depois que eu me esbagaçar na marquise do térreo. Homem que deixa de ter esposa, logo arruma uma mais nova e se ajunta. Poucos, pouquíssimos são como Ordep, maduros e solteiros. Homem precisa de uma mãe, uma mulher para ordenar a vida cotidiana. Meu marido já é um escroto, então depois que eu me for, expressão feia, aí é que o safado vai se espalhar. Problema, vai até esquecer da filha. A menina vai ter fome, vai ficar na escola até tarde esperando e nada, vai deixar de fazer as tarefas da escola, perder o aniversário das amigas, a roupa vai ficar puída, nunca que aquele inútil entrou em uma loja para comprar roupa da menina. Talvez tenha até comprado roupa para alguma quenga, mas nunca para a filha. Mas tem tanta gente que cresce assim, em “um lar desestruturado”, e supera e vira gente na vida. Eu tenho que pensar em mim e na varanda do apartamento. 

Mas dói muito. O governo que não faz porra nenhuma pelo cidadão devia providenciar um remédio, um comprimido, que eliminasse a vida sossegadamente. Ficar livre da máquina de lavar roupa é o paraíso. 

O que eu preciso para esquecer isso é de uma boa foda. Mas o esquecimento dura pouco. E aquele escritório de merda no hospital, dar bom dia para todos, uns hipócritas, uns incompetentes. Sou advogada, mas nunca quis me destacar em nada, nem nessa profissão, queria mesmo ficar apagadinha, e é assim, o departamento pessoal do hospital é foda, é muito trabalho, mas quase tudo rotineiro, daí sobre um pouco de tempo para pensar, eu lá queria ser advogada famosa e trabalhar vinte horas por dia, eu tenho hora para pegar minha filha na escola e tenho hora para levar no balé. Que não serve para nada, a menina é inábil como o pai, nunca vai ser bailarina, todas as meninas de todas as escolinhas de balé de todas as cidades nunca vão ser bailarinas. Perda de tempo. Dá pena ver a menina nas apresentações canhestras de final de ano. E as meninas jogadoras de futebol também nunca vão ser jogadoras famosas, tudo ilusão, vão casar com um safado e botar mais uma escrota de uma menina no mundo para casar e assim por diante e por diante. 

Queria era sumir, mas tenho hora no médico, vai dar câncer o exame, certeza.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Capítulo 31.1 – Clichê

Capítulo 31.1 – Clichê

Clichê: lugar-comum, banalidade, frase repetida, chavão.

Então, chegamos a este ponto, este aqui. Toda frase é clichê. Eu fico muito puta com isso, quando penso nisso, e sei lá. Bota aí no gugle qualquer frase tua, ela vai aparecer lá nos resultados. Daí, vou ter que ao contrário pensar, penso, para que frase minha uma não apareça resultados nos, e não seja um chavão. Olha, esses pensamentos que estou tendo aqui, digo logo, é tempo roubado ao meu selviço, já disse uma vez, trabalho em um hospital, na burocracia. Meu marido ganha mais do que eu, aquele filho de uma puta. A puta já morreu, a mãe dele, eu detestava aquela velha: católica, falsa, hipócrita, papa-hóstia, toda noite na missa da Igreja de São Pedro Advíncola. Isso foi um parêntese porque eu queria pensar mesmo é clichê sobre. Esse gugle acabou com a vida dos escritores, toda frase já está lá, foi o que pensei e disse.

Mas fora isso e ademais, o povo colabora com a clichezada. Estava lendo umas resenhas de livros – primeiro digo logo que livro novo com menos de duzentas páginas não é livro, deve ser desconsiderado, é plaquete, é historieta, é continho – lendo as resenhas e encontrei isso, que vos passo, em pensamento. Não vou colocar entre aspas, fodam-se as aspas e quem achar ruim também. Tenho que escrever um parecer aqui do trabalho e daqui a pouco continuo, isso é um parêntese, e também tenho que telefonar para a escola da minha filha, eu odeio essas duas palavrinhas juntas “tenho que” ou essas três “você tem que”. O tempo me corrói. 

Encontrei lá: narrativa que flerta com a distopia, flerta com Shakespeare, cria um microcosmo, parece se apoiar, passeia por facetas sombrias, turbilhão de memórias, parece tentar compreender, cria um mundo de possibilidades, parece tentar romper, vai navegando águas cada vez mais profundas.

Flerta e flerta, flertar: namoricar, paquerar. Ou é distopia ou não é. Ou faz referências ao Bardo de Avon (!) ou não faz. Vai paquerar o cara de Avon. Microcosmo todo livro de ficção cria, ora. Facetas sombrias, turbilhão de, mundo de, sei não, sei não. E o livro vai navegando; livro não navega, história não navega; ou o livro se aprofunda em algo ou fica no raso. Os “parece” é que são foda. Ou é ou não é. Se um livro ou história somente parece, então não atingiu nada; ou foi o resenhista que não conseguiu chegar a alguma conclusão: rompe ou não rompe, compreende ou não compreende.

Ai, deus, esse dia de serviço que não termina. Uma falta de sexo danada. Vou ter que resolver sozinha, com a ajuda do brinquedo vermelho. Meu marido hoje não vai querer, vai falar que está cansado, mentira, isso é alguma vagabunda que ele pegou na rua, escroto. Não tenho tempo de ir na casa de Ordep hoje, e esse é outro que não me quer quando eu quero: ele quer que eu avise, que eu marque, diz que eu atrapalho a sua busca incessante de conhecimento. Ele fala assim, escroto e pedante. Tenho que pegar uma roupa na lavanderia.

Capítulo 31 - Grandes esperanças

Capítulo 31 - Grandes esperanças

Grandes esperanças, Charles Dickens, 1860, 702 páginas – tradução de Paulo Henriques Britto, Penguin Companhia. 

Extraordinário. Li duas vezes, a primeira em 2018, e gostei ainda mais agora na releitura. Recomendo demais. 

Resumo resumido: Pip, garoto pobre do interior, passa a receber a ajuda de um protetor anônimo, muda-se para Londres, esquece os antigos amigos, torna-se perdulário, conhece seu protetor, perde tudo, recomeça sua vida de baixo, reconcilia-se consigo mesmo. 

Certamente é difícil resumir um romance de quase setecentas páginas eivado de pequenos e grandes acontecimentos. A trama parece ter sido planejada por Dickens nos mínimos detalhes. 

Pip é um menino pobre e órfão, criado pela irmã e o marido, Joe. O menino ajuda um prisioneiro que havia fugido, mas que é logo recapturado. O menino conhece a menina Estella, órfã adotada e educada pela rica Senhora Havisham para ser uma mulher insensível e sem coração. Pip recebe a informação de que tem um protetor anônimo e que, um dia terá a posse de propriedades. Vai para Londres para receber alguma educação, mas torna-se perdulário e fútil. Sente aversão por Joe, quando este vai visitá-lo. Encontra Estella algumas vezes e vê que ela continua fria. Estella casa com um homem brutal e agressivo. Pip descobre quem é o seu protetor e percebe que suas grandes esperanças foram falsas esperanças. Sente aversão por seu protetor, mas termina por ajudá-lo e por gostar dele. Ajuda seu amigo Herbert anonimamente e também ao pai deste. Recomeça sua vida de baixo, trabalhando como caixeiro e leva anos até se tornar sócio da empresa em que trabalha. Reconcilia-se consigo e com seu passado. 

Então, tem-se dois finais. O melhor final é aquele que Dickens escreveu primeiro: Pip passeia no centro de Londres com o filho de Joe, que também se chama Pip, e encontra Estella que passa em uma carruagem. Ela diz que foi e é infeliz, o primeiro marido morreu, está casada com um segundo marido. Ela pensa que o menino é filho de Pip, e se despedem assim. 

Um amigo de Dickens achou o final decepcionante – eu acho justamente o contrário, é um ótimo final, coerente, adequado – então Dickens reescreveu o final e é este que foi publicado em todas as edições enquanto Dickens era vivo. No segundo final, Pip encontra Estella, viúva, nas ruínas da casa da Senhora Havisham e saem juntos de lá, deixando no ar a possibilidade de que eles comecem uma vida juntos. 

Enfim, livro imenso, cheio de personagens inesquecíveis como o Senhor Jaggers, Wemmick, Magwitch, a Senhora Havisham, Joe Gargery e Biddy.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Capítulo 31 – Santos Óleos

Capítulo 31 – Santos Óleos

A Rua Santos Óleos de Drummond permaneceu em meus pensamentos. Cuidava da filha, da comida, da roupa que ela usaria no dia seguinte, das tarefas da escola, falava com o marido pelo telefone, ele ia chegar mais tarde, provavelmente alguma safadeza, mas, no meio disso tudo, voltava a rua.

Lancei-me na tarefa mental de enumerar as ruas da cidade velha, aquelas que ficam em torno da Biblioteca de Ordep, aquelas que eu conseguia me recordar. Rua das Irmãs Negras, Rua dos Tecelões, Rua São Guilherme, Rua São Paulo, Rua Forno das Chamas, Rua do Pequeno São João, Rua dos Multiplicadores, Rua da Gratidão, Rua do Cavalo Branco.

Tanta poesia nos nomes antigos de ruas antigas, a gente sem saber porque foram assim apelidadas. Tanta poesia naquela biblioteca ordepiana, tanto sexo, também. Odeio, odeio, odeio porque ele tem essa vida sossegada. Noto, noto, percebo que ele não se importa muito comigo. Não me importo com ele, é a fuga que me move. Recolher a roupa do varal. Colocar roupa suja na máquina de lavar.

Capítulo 30.1 – Livro de Judite

Capítulo 30.1 – Livro de Judite

O Livro de Judite é uma fábula que conta a vitória dos hebreus sobre o poderio imensamente maior de um rei assírio. Os personagens provavelmente não existiram na forma como aparecem neste conto, mas funcionam como símbolos. Os nomes, os lugares, nada bate com fatos históricos. O Livro de Judite é, pois, uma ficção disfarçada de verdade, com a intenção de vangloriar o povo israelita e o deus daquele povo. Nem por isso deixa de ser uma história muito boa de acompanhar.

Resumo resumido: Israel é atacado pelo exército do general Holofernes, Judite seduz e degola o general, e os judeus vencem a batalha.

Telas famosas resultaram desse conto: o tema da decapitação de Holofernes seduziu muitos artistas, entre os quais, Michelangelo da Caravaggio, Artemisia Gentileschi e Goya. As telas de Caravaggio (1599) e de Gentileschi (1620) são as mais impressionantes.

O livrinho de 18 páginas, em letra miúda, pode ser dividido em cinco partes: a) as guerras de Nabucodonosor, b) o cerco à cidade de Betúlia, c) a intervenção de Judite, d) Judite e Holofernes, e) a vitória dos israelitas.

No conto, o rei Nabucodonosor inicia uma guerra contra o rei Arfaxad e o derrota. Depois da vitória, Nabucodonosor decide formar um grande exército de cento e vinte mil homens e enviá-lo para derrotar ou subjugar os povos que não haviam se aliado a ele contra Arfaxad. O comando do exército é entregue ao general Holofernes. O exército então descreve uma trajetória de vitórias e massacres e pilhagens. A seguir, Holofernes se aproxima das fronteiras de Israel, próximo da cidade fictícia de Betúlia, e oferece a paz aos israelitas em troca de aceitarem Nabucodonosor como rei e deus. Os israelitas decidem enfrentar o grande exército inimigo.

Para invadir o país pela região de Betúlia é necessário passar em um estreito entre montanhas, e os israelitas contam com essa dificuldade para derrotar o exército de Holofernes. Este decide não travar uma batalha direta e sim sitiar a cidade e cortar o acesso às fontes de água. Depois de mais de um mês de cerco, o povo da cidade está fraco e morrendo. A população pede ao juiz e aos anciãos que aceitem a rendição, e estes pedem mais cinco dias de prazo: se Deus não interceder por Israel, eles se renderão.

Judite, uma jovem viúva bela e rica, vê nessa proposta do conselho de anciãos um desafio a Deus. Ela vai até o conselho e diz que não se deve impor prazos e condições a Deus, deve-se, sim, orar e confiar nele. Por outro lado, ela tem um plano e decide agir. Ela se propõe a descer até o acampamento de Holofernes e tentar resolver a situação. Judite então se prepara, intensificando sua beleza, com joias e ricas vestes, e com uma serva desce ao acampamento. Ela diz aos soldados que quer falar com o general para indicar a melhor forma de invadir a cidade, sem a perda de qualquer soldado. Holofernes aceita recebê-la em sua tenda e gosta da proposta dela.

Judite permanece alguns dias no acampamento até que Holofernes a convida para um banquete. Ele está seduzido pela beleza da moça e diz a seus oficiais que não deixará de se unir a uma mulher tão bela. Judite participa do banquete e Holofernes, animado, fica a sós com a moça no final da festa. Todavia, ele bebeu em demasia e termina por adormecer. Judite segura a cabeça do general pelos cabelos e, com dois golpes de um alfange, degola-o. Ela coloca a cabeça do general na bolsa de sua serva e sai da tenda: diz aos guardas que vai até a fonte de água fazer suas orações.

Judite volta para Betúlia e mostra aos anciãos e ao povo a cabeça de Holofernes. A população se sente encorajada e prepara um ataque imediato ao acampamento. Quando os guardas anunciam o ataque dos israelitas e entram na tenda para acordar o general, encontram apenas o corpo decapitado de Holofernes. Isto desestrutura os oficiais e o exército, e eles são derrotados e fogem. O povo faz a pilhagem no acampamento e Judite recebe todas as riquezas da tenda de Holofernes. Em Betúlia, em Jerusalém e por todo o país há festas e danças.

Judite vive até os cento e cinco anos e nunca foi tocada por homem a não ser seu marido Manassés, quando era vivo. Antes de morrer, ela distribui suas riquezas entre os parentes. Ao morrer, é enterrada junto ao túmulo do marido.

Alguns aspectos curiosos:

Toda a parte que conta das guerras de Nabucodonosor, a formação do exército, a campanha guiada por Holofernes e o cerco aos israelitas é de muito interesse, parece um livro ou filme épico, Senhor dos Anéis.

O único lugar do Antigo Testamento em que aparece a menção ao mar Vermelho como sendo o mar que os hebreus cruzaram na fuga do Egito é aqui no Livro de Judite. Nas outras menções, incorretamente traduzidas para “mar Vermelho”, o que está escrito em hebraico é “yam sûf”, ou seja, mar de Suf, e também aparece mar dos Juncos, ou simplesmente o mar. 

Judite preparou-se da seguinte forma para descer até Holofernes: lavou-se, ungiu-se com perfume, penteou os cabelos e mais, turbante, roupa de festa, sandálias, colares, braceletes, anéis, brincos, todas as suas joias. Todas as noites em que permaneceu no acampamento, ela ia até a fonte e se banhava.

Enfim, este é um conto delicioso que merece ser lido por suas qualidades literárias.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Capítulo 30 – Luísa Porto

Capítulo 30 – Luísa Porto

Louca. As obrigações da casa me deixam quase. Além do trabalho insano e inútil, que só me dá de bom a prata, há tantas pequenas ações domésticas que dependem de mim. A filha, o balé, a escola da filha, a roupa da filha, as roupas da casa, a faxineira, roupas para colocar na máquina, supermercado, cansa até enumerar. Preciso de descanso, preciso de uma pausa. Não tem como fugir dessa vida, não vou deixar minha filha. O marido até deixava, mas a menina, não.

Fui na casa de Ordep, lá é um paraíso de silêncio, de livros, de conversa sem crianças e sem tevê. Quando estou esgotada de tudo e quando me posso dar uma pausa, é um prêmio que concedo àquela derrotada que, por vontade própria, criou uma vidinha macabra para si. E quando e se ele aceita me ver. Ordep é um metódico extremado, insuportável, tirano. Gosto do sexo e gosto da conversa. Meu marido não merece isso, sei, mas eu mereço, eu mereço algo que me permita a sanidade, que não permita a loucura, o suicídio. Adoro a ideia de suicídio, a morte e a liberdade absoluta. Odeio campanhas antissuicídio, o suicídio é um direito, devia estar na carta da ONU ou qualquer bosta dessas.

Fui na casa de Ordep, pedi a ele que me recebesse, por dentro quase implorava, às vezes ele não quer ser interrompido, grande bosta que ele faz, divagar, pensar, escrever, ler. Eu fico puta, eu tenho inveja da vida dele, não quero ter, e fico puta por ter, tendo. Fui lá e levava um livro, um livro que eu estava redescobrindo, uma coleção de poemas de Drummond, lia muito Drummond na adolescência, gostava da poesia seca e magra dele, parecida com aquele corpo dele, seco e magro. Aprendi com Dickens a não ter receio de repetir expressões e palavras, foda-se quem achar ruim.

Li para ele o Desaparecimento de Luísa Porto, um poema longo e estranho, me encanta. Depois da primeira leitura, li de novo. Ele pegou o livro e leu trechos. Saboreamos palavras e pedaços. A Rua Santos Óleos, a mãe enferma, erma de cuidados, a filha volatilizada, sumida, diluída.

Luísa saiu para fazer compras na feira da praça, não voltou, faz três meses. Estrábica, 37 anos, o olhar desviado e terno. O poema afirma e insiste: ela não se suicidou, ela não se matou. Fico maravilhada com aquele verso as ruas mudaram de rumo, e Luísa perdeu o caminho de casa. Imagino, à noite, as ruas se rearranjando, com barulho de engrenagens, como um mecanismo de composição de dominós. E a descrição do corpo e a fotografia da moça são disfarces de realidade mais intensa. A amiga de Luísa era uma moça desimpedida, mas Luísa, não, Luísa era casta e não tinha nem namorado.

Não precisa nem Freud para saber que eu é que queria me volatilizar, desaparecer, ir na esquina e não voltar. Não posso.

Naquele restinho de tarde roubado, a gente nem se uniu, as relações carnais de Marcel, a gente só ficou junto pensando com o livro de Carlos nas mãos.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Capítulo 29 – Cronópios e famas

Capítulo 29 – Cronópios e famas 

Fábula: fábulas são composições literárias curtas, escritas em prosa ou versos em que os personagens são animais que apresentam características humanas com o objetivo de passar uma lição de moral; mas, por extensão, fábula também é uma narrativa curta, mesmo sem animais e sem moral. Cortázar intitula “Fábula sem moral” um dos “capítulos” de seu livro Histórias de cronópios e de famas. Na historieta, não há animais nem moral, como diz o título. 

Histórias de cronópios e de famas, JulioCortázar, tradução de Gloria Rodríguez, é um bom livro, curto, 125 páginas, que se poderia ler em uma tarde ou duas. Composto de pequenos “capítulos”, sem numeração, mas sempre com títulos. As historinhas variam entre o absurdo, o surreal, o cômico, a anedota e a observação do comportamento humano. Há pequenas joias como a história do relógio e a da bicicleta. A seção sobre a família que se dedica a atividades inúteis também é boa. Os cronópios, as famas e as esperanças são seres imaginários, com características mais ou menos definidas, e suas histórias compõem a quarta e última parte do livro.

Há muita criatividade e liberdade na composição das fábulas deste livrinho e vale a pena ler e desfrutar lentamente até.   

Capítulo 28.1 – Marie Cardona

Capítulo 28.1 – Marie Cardona 

É evidente que o meu cérebro sabia da existência do livro Meursault, contre-enquête, de Kamel Daoud (em português, O caso Meursault), que “apresenta o ponto de vista do irmão do árabe assassinado por Meursault” conforme consta na apresentação. Mas o meu cérebro havia esquecido que eu sabia e, quando da releitura de O estrangeiro, em algum momento imaginei como seria a história contada do ponto de vista de Marie Cardona – para mim, o personagem mais simpático da novela. 

O melhor de Marie é que ela desiste de Meursault. Não há motivo para continuar dedicando tempo e sentimento a alguém tão frio e incapaz de sentir. Faz muito bem Marie quando o esquece. Que apodreça. 

O narrador diz que ela não escrevia mais, também deve ter deixado de visitá-lo, quem sabe “cansada de ser a namorada de um condenado à morte”. Que importaria se Marie dava sua boca a um novo Meursault? pergunta-se o próprio.

A história de Marie Cardona, para mim, seria a narrativa de uma moça morena, bronzeada e bonita, solar e tropical, empregada no comércio, que gostava de mar e de cinema e de passear e de conversar e estar com amigos, ingênua até certo ponto. A moça cometeu o erro de gostar de um cara frio, um cara que não sabia amar, sem preferências, anódino. A moça gostou dele, pretendia que o amor o transformasse, mas ele nem acreditava em amor. A moça fez o possível para apoiar o cara, mas desistiu. O sol e o mar e os rapazes a chamaram, ela esqueceu o taciturno Meursault, sequer estava em Argel no dia da guilhotina. Três anos depois morava em Paris, entrou para a turma de Simone e Jean-Paul, eles souberam do relacionamento dela com o guilhotinado de Argel, o caso tivera alguma repercussão nos jornais. Marie fez sexo com ambos, separadamente, eram ciumentíssimos, embora afirmassem o contrário, Simone e Jean-Paul. Foi ao Brasil com Simone, conheceu Vinícius de Moraes e encetou um caso com ele. Abandonou Simone e viajou com Vinícius para Los Angeles, conheceu Carmem Miranda e chegou a se hospedar na casa dela. Passam-se os anos e Marie se torna uma ainda bela mulher madura, mais calma, trabalha na Unesco de Paris como tradutora. Casou-se, mas não quis ter filhos, separou-se e casou de novo. Marie morreu em 1992 em decorrência de complicações de um câncer de fígado. 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O estrangeiro envelheceu muito mal

O estrangeiro, Albert Camus, 1942, 122 páginas na minha edição da Editora Record que eu comprei em 1990 por 8 dólares (está anotado na folha de rosto), com tradução de Valerie Rumjanek. 

O livro é simétrico e rigoroso: começa com uma morte, a da mãe; no exato meio do livro acontece uma morte, a do árabe, que é marcada pela música de Beethoven: as quatro batidas secas de destino na porta da desgraça; e na última página se anuncia a morte do protagonista e narrador. 

Para um livro tão calculado, restou um mistério: a história é narrada em primeira pessoa, porém o narrador foi condenado à guilhotina e será executado poucas horas após encerrar a narrativa. Como temos, então, acesso à narração? Nabokov resolveu tal situação descrevendo, no prefácio de um falso doutor, a forma como o manuscrito de Humbert Humbert veio à luz. Não há uma explicação assim em O estrangeiro, o que nos remete a algumas possibilidades: a) o autor não soube ou não quis explicar; b) o narrador não morreu, obteve uma comutação da pena capital. 

O protagonista e narrador é uma pessoa desagradável. É um maré-me-leva-maré-me-traz. Na primeira parte do livro, demonstra que tudo tanto faz: tanto faz casar ou não, tanto faz ser amigo de Raymond ou não, tanto faz escrever uma carta ou não, tanto faz conversar com Salamano ou não. Tanto faz andar na praia com sol a pino ou não, tanto faz matar um árabe ou não. Nada tem importância e tudo aconteceu por acaso. Todavia, na segunda parte, o narrador já demonstra que não é assim tanto faz: ele preferia estar livre, ir à praia com Marie, preferia que a pena capital fosse comutada. 

O protagonista é uma pessoa fraca, inclusive fisicamente. Ele sofria de enxaqueca. A luz o ataca como espadas: a luz que cegava, o brilho da luz das lâmpadas, o brilho do céu era insuportável, o dia cheio de sol o atinge como uma bofetada, o brilho do mar era insustentável, o sol na cabeça descoberta, o sol esmagador, a cabeça latejando de sol, o brilho vermelho. Sintomas claros de enxaqueca. Um bom médico teria evitado o crime. 

É um indivíduo fraco para o calor e o sol, é um homem do norte, de clima frio, deslocado na África. Se o narrador fosse um homem dos trópicos, o crime, se houvesse, teria outra motivação. No caso de Meursault, a fraqueza diante do calor e a enxaqueca o fizeram matar o “árabe”. O protagonista tem a cabeça fraca para os trópicos: o suor e a gordura dos trópicos o afetam de forma exacerbada. Uma pessoa hipersensível: sol, calor, gordura, a pele dos outros, tudo o afeta. 

Ademais, o livro é claramente racista e, a partir de uma visão “superior” ou “ocidental”, não percebe sequer as diferenças culturais: o narrador/autor não faz diferença entre árabes e mouros, usa as duas palavras indistintamente. Ele mostra os “árabes” sempre em grupo, não há indivíduos entre os “árabes”, e eles olham em silêncio, como se “nós” fôssemos pedras ou árvores. E qual a maneira que Meursault e seus comparsas olham para os “árabes”? Este assunto de mouros, árabes, bárbaros, remete a Otelo, que séculos antes também navegava em tais contradições. 

O julgamento de Meursault é bastante real, mesmo para os dias atuais – veja-se a série Os doze jurados, por exemplo. No julgamento do narrador, ele é julgado não apenas pelo assassinato do “árabe”, mas por todo o seu comportamento cotidiano. Algo que o autor pode ter usado para destacar o absurdo, mas que é comum em julgamentos. Não julgamos de modo objetivo e sim considerando nossas cargas de formação e cultura e aquelas do réu e da vítima. Não existe um julgamento objetivo, é ilusão. 

De todo modo, não resta dúvida de que um assassinato a sangue frio como aquele mereceria uma pena pesada, prisão perpétua ou a pena capital – visto que tal existia no país e na época. A justificativa para o assassinato tornava o crime ainda mais pusilânime: Meursault matou por causa do sol. 

Um livro que envelheceu mal, para mim, desde a primeira leitura que fiz dele. O protagonista é irreal demais, frente a realidade de Marie, de Raymond, de Céleste. Livro muito desagradável e preconceituoso.

domingo, 18 de outubro de 2020

Capítulo 27 – Desestruturar

Capítulo 27 – Desestruturar 

Dominar um homem que quer ser dominado não dá tanto tesão quanto dominar um homem que faz algumas restrições. Porque é necessário quebrar devagarinho tais restrições. Ela pensava sobre isso naquele domingo, e imediatamente corrigiu o pensamento: não um homem, mas uma pessoa, pois dava tesão dominar mulheres também. Embora preferisse dominar homens; mulheres já são submissas por natureza. É necessário quebrar a vontade do outro. Homens são mais desafiadores. Homens reúnem uma lista de restrições. Às vezes, ela intuiu, até praticam aquilo com alguma puta, mas nunca com a namorada ou a esposa ou a amante. Homens não querem nada que penetre neles, isso retira a macheza, e se os amigos soubessem. Leona também não faz isso com o marido; o casamento, é necessário que seja algo sério, conforme, estruturado. A desestruturação ela exerce fora de casa. Ser o dominador, ser o homem, mas sendo, ao mesmo tempo, a mulher. Penetrar é um dos seus maiores prazeres, subjugar, para depois ser penetrada, e aí o gozo vem forte, fortíssimo. Subverter e inverter, amordaçar, proibir, punir, constranger. Sai leve, leve, depois de uma sessão desse tipo. E a casa, organizada, tudo no lugar, a filha e os deveres da escola, tudo, tudo, ganha uma nova cor, o amarelo.

sábado, 17 de outubro de 2020

Capítulo 26 – Desconexões

Capítulo 26 – Desconexões 

Em abril de 1954, Albert Camus leu O estrangeiro na Radio France 4 – foram 3 sessões na série Leituras à noite. No início do século XXI, as três sessões foram reunidas em três CDs, cada um com uma hora de duração. 

O estrangeiro, Albert Camus, 122 páginas na minha edição da Editora Record que comprei em 1990 por oito dólares (está anotado na folha de rosto), com tradução de Valerie Rumjanek. As pissoa não lê, as pissoa diz que não tem tempo de ler. É mentira. É preguiça. Um livro de 122 páginas pode ser lido em três horas, seguidas ou consecutivas. Tanta gente que gosta mesmo de leitura lê um livro por semana. 

Leona caminhou pela praia da cidade, mar de um lado e edifícios do outro, a maré estava baixa, muito baixa, era bom assim, a extensão de areia ficava maior, os prédios ficavam mais distantes, a abóbada parecia maior. Pedras que ela quase nunca via afloraram. Ela caminhava ao sol e pensamentos desconexos se conectavam. Meursault era um indivíduo doente, sofria de enxaqueca, a luz forte entrava em seus olhos e cérebro como lâminas. Meursault era um indivíduo do norte transplantado para a zona tórrida. Um moreno não seria afetado assim pelo sol a ponto de matar friamente por acaso. O mar afastava-se do continente. A Lua se afastava gradativamente da Terra. Quando não houver mais Lua, não haverá maré e o mar ficará sempre no mesmo nível. Em qual nível. Ela alimentava esperanças de que ficasse sempre no ponto mais baixo, assim, mais tranquilo, ela temia o mar e as ondas fortes. Cortázar escreveu uma historinha em que todos se tornam escritores e os livros findam por invadir toda a terra, e depois os oceanos, e os oceanos se tornam uma papa e depois solidificam e se pode caminhar sobre os antigos oceanos. Nabucodonosor, puto da vida com os povos inimigos, preparou um exército de cento e vinte mil homens, que mentira, e ordenou que matassem os inimigos em tal quantidade que os rios se encheriam de cadáveres e transbordariam. Coitado. 

Entrou no mar para fazer xixi, ondas fraquinhas e estava rasinho. Depois da caminhada, almoçou, tomou banho e dormiu um pouco, de tarde. 

O carro em que Camus estava, corria a cento e oitenta quilômetros por hora quando Gallimard perdeu o controle e espatifou o veículo contra uma árvore, depois outra, e Camus morreu tal morte absurda. Havia um cão no carro, mas ele não foi encontrado depois do acidente.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Capítulo 25.2 – A batalha da planície

Capítulo 25.2 – A batalha da planície 

Aconteceu no décimo-terceiro ano do reinado de Serguei Semionov, que reinou sobre os hepatitas, com capital em Raged, a grande cidade do norte. Por outra parte, Astargad reinava sobre os lotonas, com capital em Betina, a grande cidade do leste. Em torno de Betina, Astargad edificou muralhas com pedras cortadas e esculpidas de três metros de largura e seis de comprimento. A altura da muralha era de setenta metros e a largura de cinquenta. Havia cinco portas na muralha. Ladeando cada porta, levantou duas torres de cem metros de altura, com bases de sessenta metros de diâmetro. Fez as portas de madeira e ferro, com setenta metros de altura, quarenta metros de largura e três metros de espessura, para a passagem de seu potente exército de infantaria e da cavalaria. 

Foi naquele ano que o rei Serguei Semionov decidiu fazer a guerra contra o rei Astargad. Os exércitos inimigos se encontraram na grande planície, situada na província de Rugau, na fronteira entre os dois reinos, uma área que ambos disputavam desde séculos. Os habitantes das montanhas, os habitantes das margens dos rios, os habitantes das planícies de Coria, terra dos elmênidas, reuniram-se às tropas de Astargad, porque este rei governava com mais sabedoria. Outros povos, em menor número, associaram-se ao rei Semionov. Dessa forma, numerosos povos juntaram-se para a grande batalha da planície de Rugau.

Capítulo 25.1 – Camélias

Capítulo 25.1 – Camélias

 

“Sou da opinião de que só se pode criar personagens quando já se estudou muito os seres humanos, assim como só se pode falar uma língua na condição de tê-la aprendido a sério.

Não tendo ainda atingido a idade em que se pode inventar, contento-me em relatar.

Exorto o leitor a se convencer da veracidade desta história, da qual todos os personagens, com exceção da heroína, ainda vivem.”


 

A dama das camélias,Alexandre Dumas Filho, 1848, tradução de Caroline Chang. 

Capítulo 23.2 – Das origens

Capítulo 23.2 – Das origens 

Xavier de Maistre, Julio Cortázar e Roland Barthes foram os inspiradores deste livrinho irrelevante. O autor não tem a ironia, a verve e o humor dos dois primeiros, tampouco o imenso cabedal de conhecimento do último. No entanto, atreveu-se a perpetrar tal crime contra a humanidade, contra as letras, contra a literatura. Um ser desprezível. 

Xavier de Maistre, com a Viagem ao redor do meu quarto, Cortázar com as Histórias de cronópios e de famas, e Barthes com os Fragmentos de um discurso amoroso, são os verdadeiros culpados do crime. 

De Cortázar, o autor chupou principalmente o formato, o capítulo curto, a diversidade de temas. De Maistre, a viagem em torno de si mesmo. De Barthes, a ausência de método disfarçada em método. Barthes escrevia sobre qualquer assunto que lhe interessava, partindo de seus gostos pessoais, e cercava essas escolhas de uma ilusão de método quando não havia método algum. Era lindo. 

Recordo aqui, porque quero recordar, a introdução de Maistre:

 

J’ai entrepris et exécuté un voyage de quarante-deux jours autour de ma chambre. Les observations intéressantes que j'ai faites, et le plaisir continuel que j'ai éprouvé le long du chemin, me faisaient désirer de le rendre public; la certitude d'être utile m'y a décidé. Mon cœur éprouve une satisfaction inexprimable lorsque je pense au nombre infini de malheureux auxquels j'offre une ressource assurée contre l'ennui, et un adoucissement aux maux qu'ils endurent. Le plaisir qu'on trouve à voyager dans sa chambre est à l'abri de la jalousie inquiète des hommes; il est indépendant de la fortune.

 

Est-il en effet d'être assez malheureux, assez abandonné, pour n'avoir pas un réduit où il puisse se retirer et se cacher à tout le monde? Voilà tous les apprêts du voyage.

 

Je suis sûr que tout homme sensé adoptera mon système, de quelque caractère qu'il puisse être, et quel que soit son tempérament; qu'il soit avare ou prodigue, riche ou pauvre, jeune ou vieux, né sous la zone torride ou près du pôle, il peut voyager comme moi; enfin, dans l'immense famille des hommes qui fourmillent sur la surface de la terre, il n'en est pas un seul;—non, pas un seul (j'entends de ceux qui habitent des chambres) qui puisse, après avoir lu ce livre, refuser son approbation à la nouvelle manière de voyager que j'introduis dans le monde.

 

Eu empreendi e executei uma viagem de quarenta e dois dias em volta de meu quarto. As observações interessantes que fiz, e o prazer continuado que experimentei ao longo do caminho, me fizeram desejar torná-la pública; a certeza de ser útil me fez decidir por isto. Meu coração experimenta uma satisfação inexprimível quando eu penso na infinita quantidade de infelizes aos quais ofereço uma solução segura contra o tédio, e um abrandamento das doenças que sofrem. O prazer que se obtém ao viajar em seu próprio quarto está ao abrigo da inveja inquieta dos homens; e é independente da fortuna.

 

De fato, há alguém tão infeliz, tão abandonado, que não tenha um reduto onde seja possível se retirar e se esconder do mundo? Aqui estão todos os preparativos para a viagem.

 

Estou seguro de que qualquer homem sensato adotará meu sistema, seja qual for sua personalidade e seu temperamento; quer seja avaro ou pródigo, rico ou pobre, jovem ou velho, nascido na zona tórrida ou perto do polo, ele pode viajar como eu fiz; enfim, na imensa família dos homens que formigam sobre a face da terra, não há um só – nem um só (entre aqueles que habitam quartos) que possa, depois de ter lido este livro, recusar sua aprovação à nova maneira de viajar que eu introduzo no mundo.

 

(Tradução canhestra do autor).

 

Recordo aqui, porque me apraz, um trecho de Barthes:

 

3. Références

 

Pour composer ce sujet amoureux, on a « monté » des morceaux d'origine diverse. Il y a ce qui vient d'une lecture régulière, celle du Werther de Goethe. Il y a ce qui vient de lectures insistantes (le Banquet de Platon, le Zen, la psychanalyse, certains Mystiques, Nietzsche, les lieder allemands). Il y a ce qui vient de lectures occasionnelles. Il y a ce qui vient de conversations d'amis. Il y a enfin ce qui vient de ma propre vie. Ce qui vient des livres et des amis fait parfois apparition dans la marge du texte, sous forme de noms pour les livres et d'initiales pour les amis. Les références qui sont ainsi données ne sont pas d'autorité, mais d'amitié : je n'invoque pas des garanties, je rappelle seulement, par une sorte de salut donné en passant, ce qui a séduit, convaincu, ce qui a donné un instant la jouissance de comprendre (d'être compris ?). On a donc laissé ces rappels de lecture, d'écoute, dans l'état souvent incertain, inachevé, qui convient à un discours dont l'instance n'est rien d'autre que la mémoire des lieux (livres, rencontres) où telle chose a été lue, dite, écoutée. Car, si l'auteur prête ici au sujet amoureux sa « culture », en échange, le sujet amoureux lui passe l'innocence de son imaginaire, indifférent aux bons usages du savoir.

 

3. Referências

 

Para compor tal sujeito amoroso, foram “montados” pedaços de origem diversa. Há aqueles que vêm de uma leitura regular, tal como o Werther de Goethe. Há os que provêm de leituras insistentes (O banquete de Platão, o Zen, a psicanálise, certos místicos, Nietzsche, as canções alemãs). Há os que vêm de leituras ocasionais. Há aqueles que vêm de conversas com amigos. Há, enfim, aqueles que provêm da minha própria vida. Aqueles que vieram dos livros e dos amigos aparecem, por vezes, na margem do texto, sob a forma de nome para os livros e de iniciais para os amigos. As referências assim oferecidas não são de autoridade, mas de amizade: eu não invoco garantias, eu apenas recordo, como um tipo de saudação en passant, aquilo que seduziu, que convenceu, que ofertou um instante a alegria de compreender (de ser compreendido?). Deixaram-se tais recordações de leituras, de escuta, no estado frequentemente incerto, inacabado, que convém a um discurso no qual a instância não é mais que a memória de lugares (livros, encontros) onde tal coisa foi dita, lida, escutada. Portanto, se o autor empresta, aqui, ao sujeito amoroso sua “cultura”, em troca, o sujeito amoroso lhe passa a inocência de seu imaginário, indiferente aos bons usos do saber.

 

(Tradução canhestra do autor). 

Vê-se que Xavier de Maistre propõe, com alegria e ironia, que a viagem em torno do umbigo, que ele executou enquanto estava preso, traz interesse inestimável para toda a humanidade. Roland Barthes, por seu lado, enfeita e ilude com fumos de método, com artifícios de academia, aquilo que é unicamente a sua opinião, a sua observação e o prazer que ele encontrava em formatar um discurso sobre este ou aquele tema. Cortázar, em paralelo, fez um livrinho em que cada página é diversa das outras, livres, mas estranhamente coerentes no conjunto.


Abençoado ou amaldiçoado por tais mestres, exponho-me. 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Capítulo 24 – Putifar

Capítulo 24 – Putifar 

Putifar significa levar uma pessoa, de qualquer gênero, a se tornar uma puta ou um puto, putificar, putiformar. A palavra tem origem no idioma caldeu, mais especificamente na antiquíssima tradição etíope das sacerdotisas da região de Putifar, que exerciam a prostituição sagrada. Por volta do ano 3.254, antes da Era Comum, existia o costume de, a cada semana, uma das sacerdotisas do templo de Nuxus, permanecer na entrada do templo e atender os interessados, em um anexo do templo, fossem habitantes, passantes ou viajantes, mediante pagamento. Este poderia ser feito em moedas – aceitava-se o metal egípcio, grego, romano, aramaico e dólar canadense – ou em bens e animais. Os recursos obtidos pelas prostitutas sagradas eram recolhidos ao tesouro do templo e utilizados na manutenção e na ampliação das glórias daquela instituição.


quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Capítulo 23.3 – Vícios novos

         Capítulo 23.3 – Vícios novos

 

“Os progressos da civilização permitem a cada um manifestar qualidades insuspeitadas ou vícios novos que os tornam mais queridos ou mais insuportáveis a seus amigos.”

 

“Les progrès de la civilisation permettent à chacun de manifester des qualités insoupçonnées ou de nouveaux vices qui les rendent plus chers ou plus insupportables à leurs amis.”

 

Marcel Proust, Sodomae Gomorra. 

O protagonista falava da recusa terminante de Françoise em usar a nova máquina, o telefone, e até de recusar aprender a usá-la. Verifica-se que as novíssimas tecnologias do século vinte e um também produziram e estão a produzir um sem-número de comportamentos, vícios novos, insuportáveis nos amigos e conhecidos. Entre os quais, a necessidade sempiterna de exibição: inumeráveis exibem continuamente suas mínimas e tediosas atividades, da hora em que acordam até a hora em que se deitam. Não basta viver uma vida tediosa, é necessário mostrar cada passo do tédio particular.