Capítulo 14 – Ilha deserta

Capítulo 14 – Ilha deserta

A venda de bibliotecas particulares é um acontecimento melancólico. Demonstra a inutilidade de amar os livros, de ajuntar e cuidar. Morre-se e aos parentes próximos resta a obrigação de jogar fora a coleção. Vender, doar, tocar fogo, jogar no caminhão do lixo.

Ordep pensa nisso enquanto devolve à estante livros que consultou, enquanto acaricia uma fileira de volumes, quando rearruma e limpa prateleiras. Planeja, no futuro, meses antes de morrer, iniciar e concluir ele mesmo a doação dos livros. A dificuldade do plano é que não se consegue combinar uma data com a morte. Morre-se repentinamente e tudo fica pelo meio.

Alguns o consideram entre maluco e obsessivo, isso de ter um mil, oitocentos e cinquenta volumes, de manter a estante metodicamente organizada. Transtorno obsessivo-compulsivo, dizem. Ele afirma que saber a quantidade exata de volumes não é uma mania, é somente constatar o que cabe no estúdio e que, às vezes, há mais, outras menos. E a organização ajuda a encontrar o que se busca.

Ele sabe, ainda, que poderia viver com menos volumes e mesmo com um único livro. Aquela pergunta repetida que fazem aos escritores: “qual livro levar para uma ilha deserta”. Para ele, a escolha seria levar um único volume antológico, como a obra completa de Shakespeare, ou a Bíblia – que é uma inacreditável coletânea de estilos, poesia, erotismo, aventuras – ou Em busca do tempo perdido. Ou Metamorfoses, Ovídio, ou Dante, Homero, Virgílio.

Até um livrinho fino, cem páginas, por exemplo, poderia servir para o leitor isolado na ilha, desde que denso como O estrangeiro ou A metamorfose.

Ordep não se sente um maluco – mas os malucos não se sabem malucos, é o que parece. Ele tem certeza que, eliminada a hipótese absurda da ilha deserta, conseguiria, se necessário, viver com duzentos livros, cem livros, sessenta livros.

Poderia, até, deixar de ler. Se o mundo distópico dos filmes de ficção científica chegasse, a vida dele, único sobrevivente, se tornaria uma aventura de sobrevivência. Não haveria nem tempo para ler. Comida e água são muito mais relevantes.