São Bernardo, obra-prima

             Notas avulsas sobre São Bernardo. 

São Bernardo, Graciliano Ramos, 1934. 

Madalena é um misto de Desdêmona sem o assassinato e Emma Bovary sem a culpa. Emma se mata após uma sequência de traições e libertinagens e despesas sem controle. Desdêmona é morta sem ter culpa de nada por conta do ciúme excessivo de Otelo. Madalena vê e compreende o ciúme incontrolável de Paulo Honório e executa a ação que ele gostaria de executar – e que talvez venha a fazer algum dia. Ela exime o Otelo alagoano de exercer sua vingança. Por outro lado, Madalena é deslocada do tempo e do lugar, assim como Emma, e não vê como pode continuar a viver desse modo. Assim como Emma, Madalena não demonstra qualquer amor pelo filho, e mata-se de forma semelhante. 

Paulo Honório, homem prático que estabelecia objetivos e, então, coordenava os esforços para alcançá-los, determinou-se a ter um herdeiro e, para isso, escolheu a fêmea reprodutora errada. Paulo Honório, sem ter qualquer religião, apela constantemente para o diabo e o inferno, e um pouco menos para deus, em seu vocabulário. Madalena não tem deus, mas a cena final entre ambos se dá na capela da fazenda. Madalena diz não saber se rezava, não, apenas falava consigo mesma. Ele e ela não encontram deus nem o diabo na capela, e não se encontram um ao outro. Não há encontro possível na estrutura de formação daqueles dois personagens. 

Casimiro Lopes como um duplo taciturno de Paulo Honório. O próprio narrador afirma isso: “E não me espantaria se me afirmassem que eu e Casimiro Lopes éramos uma pessoa só.” Quando Madalena chama Paulo de assassino, ele titubeia e pensa em Casimiro como assassino. 

Casimiro Lopes, o capanga, taciturno, calado. Diz Paulo Honório: “Quanto a palavras, meia dúzia delas.” Essa frase é sensacional pois tem meia dúzia de palavras! 

Quando soube que Madalena escrevia artigos em jornal, Paulo Honório esfriou em sua intenção de casar com ela: “Julguei que fosse uma criatura sensata.” 

Uma das mais belas imagens do grosseiro Paulo Honório: “de manhã, a serra cachimbava”. Quem já viu uma serra no interior do país, de manhãzinha, sabe do que Paulo Honório está falando. 

Madalena, “dois dias depois do casamento, ainda com um ar machucado”; Paulo Honório, brusco, grosseiro, mão enormes, sugere que o sexo com Madalena foi brutal para a mocinha loura, franzina. 

O capítulo 19, a metade do romance, é impressionante porque já antecipa mortes, fantasmas e o final da história. Mestre Caetano, mesmo morto, deveria trabalhar. Paulo Honório com seus fantasmas, solitário. 

Estamos à beira de um abismo.” O país sempre esteve e está à beira de um abismo. 

O ciúme começa no capítulo 24, dois terços do romance. Os ciúmes de Paulo Honório, infundados, lunáticos. A inferioridade tremenda de Paulo ante a inteligência, o cosmopolitismo de Madalena resulta no ciúme lunático, na insegurança absoluta. “Não havia sinais meus” no menino. Bentinho, Dom Casmurro. O menino era “feio como os pecados”. Os pecados da mãe não existiam, então foram os pecados do pai, assassino, que se perpetuaram na criança. “As perninhas e os bracinhos eram finos que faziam dó.” Feio e membros fininhos: o menino era um inseto, Kafka. Paulo Honório, bem como Otelo, a exigência de uma prova: “O que me faltava era uma prova: entrar no quarto de supetão e vê-la na cama com outro.” “Para que deixar viva mulher tão cheia de culpa? Quando ela morresse, eu lhe perdoaria os defeitos.” O Senhor Jaggers de Dickens: em certo tipo de casal, “é bater ou rastejar”. 

Temas de ficção científica. O tempo. Voltar no tempo e escolher outra opção. Se tivesse casado com Germana, vida de almocreve e feliz. Voltar no tempo e recomeçar com Madalena: a previsão infausta de que daria o mesmo resultado. Voltar no tempo e viver em outra época, na monarquia e a probabilidade de ser feliz. 

Há uma metamorfose no final ou, por outra, Paulo Honório se vê como nunca viu antes, percebe sua própria realidade, como o bicho de H. P. Lovecraft, Paulo se vê com “lacunas no cérebro”, “nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes”, “deformidades monstruosas”, Kafka.