Livro de Judite, Bíblia de Jerusalém, 18 páginas, 16 capítulos. Releitura em 02/03/2021.
Resumo resumido: Israel é atacado pelo exército do general Holofernes, Judite seduz e degola o general, e os judeus vencem a batalha.
Telas famosas resultaram desse conto: o tema da decapitação de Holofernes seduziu muitos artistas, entre os quais, Michelangelo da Caravaggio, Artemisia Gentileschi e Goya. As telas de Caravaggio (1599) e de Gentileschi (1620) são as mais impressionantes. O nosso Pedro Américo também pintou sua versão em 1880.
Resumo.
O livrinho de 18 páginas, em letra miúda, pode ser dividido em cinco partes: a) as guerras de Nabucodonosor, b) o cerco à cidade de Betúlia, c) a intervenção de Judite, d) Judite e Holofernes, e) a vitória dos israelitas.
No conto, o rei Nabucodonosor inicia uma guerra contra o rei Arfaxad e o derrota. Depois da vitória, Nabucodonosor decide formar um grande exército de cento e vinte mil homens e enviá-lo para derrotar ou subjugar os povos que não haviam se aliado a Nabucodonosor contra Arfaxad. O comando do exército é entregue ao general Holofernes. O exército então descreve uma trajetória de vitórias e massacres e pilhagens. A seguir, Holofernes se aproxima das fronteiras de Israel, próximo da cidade fictícia de Betúlia, e oferece a paz aos israelitas em troca de aceitarem Nabucodonosor como rei e deus. Os israelitas decidem enfrentar o grande exército inimigo.
Para invadir o país pela região de Betúlia é necessário passar em um estreito entre montanhas, e os israelitas contam com essa dificuldade para derrotar o exército de Holofernes. Este decide não travar uma batalha direta e sim sitiar a cidade e cortar o acesso às fontes de água. Depois de mais de um mês de cerco, o povo da cidade está fraco e morrendo. A população pede ao juiz e aos anciãos que aceitem a rendição, e estes pedem mais cinco dias de prazo: se Deus não interceder por Israel, eles se renderão.
Judite, uma viúva bela e rica, vê nessa proposta do conselho de anciãos um desafio a Deus. Ela vai até o conselho e diz que não se deve impor prazos e condições a Deus, deve-se, sim, orar e confiar nele. Por outro lado, ela tem um plano e decide agir. Ela se propõe a descer até o acampamento de Holofernes e tentar resolver a situação. Judite então se prepara, intensificando sua beleza, com joias e ricas vestes, e com uma serva desce ao acampamento. Ela diz aos soldados que quer falar com o general para indicar a melhor forma de invadir a cidade, sem a perda de qualquer soldado. Holofernes aceita recebê-la em sua tenda e gosta da proposta dela, além de ficar encantado com a moça.
Judite permanece alguns dias no acampamento até que Holofernes a convida para um banquete. Ele está seduzido pela beleza da moça e diz a seus oficiais que não deixará de se unir a uma mulher tão bela. Judite participa do banquete e Holofernes, animado, fica a sós com a moça no final da festa. Todavia, ele bebeu em demasia e adormece. Judite segura a cabeça do general pelos cabelos e, com dois golpes de um alfange, degola-o. Ela coloca a cabeça do general na bolsa de sua serva e sai da tenda: diz aos guardas que vai até a fonte de água fazer suas orações.
Judite volta para Betúlia e mostra aos anciãos e ao povo a cabeça de Holofernes. A população se sente encorajada e prepara um ataque imediato ao acampamento. Quando os guardas anunciam o ataque dos israelitas e entram na tenda para acordar o general, encontram apenas o corpo decapitado de Holofernes. Isto desestrutura os oficiais e o exército, e eles debandam e são derrotados. O povo faz a pilhagem no acampamento e Judite recebe todas as riquezas da tenda de Holofernes. Em Betúlia, em Jerusalém e por todo o país há festas e danças.
Judite vive até os cento e cinco anos e, acentua-se, nunca foi tocada por homem a não ser seu marido Manassés, quando era vivo. Antes de morrer, ela distribui suas riquezas entre os parentes. Ao morrer, é enterrada junto ao túmulo do marido.
Alguns aspectos instigantes:
Metade do conto narra as guerras de Nabucodonosor, a formação do exército, a campanha guiada por Holofernes e o cerco aos israelitas, e é de muito interesse, parece um livro ou filme épico, Senhor dos Anéis.
É certo que as mitologias (grega, romana, judaica, cristã, budista, hindu) contêm elementos simbólicos misturados com algo de realidade (!) e de alguma tentativa de ensino (moral, ético). As quantidades, nas mitologias, são simbólicas, mas a fortaleza de Arfaxad impressiona.
“Era o décimo-segundo ano do reinado de Nabucodonosor, que reinou sobre os assírios em Nínive, a grande cidade. Arfaxad reinava, então, sobre os medos, em Ecbátana. Em torno de Ecbátana, ele edificou muralhas com pedras talhadas de três côvados (um metro e meio) de largura e seis (três metros) de comprimento. A altura da muralha era de setenta côvados (35 metros), e a largura de cinquenta (25 metros). Sobre as portas dela, levantou torres de cem côvados de altura (50 metros) com bases de sessenta côvados (30 metros) de largura. Fez as portas dela com setenta côvados (35 metros) de altura e quarenta (20 metros) de largura, para a saída de seu potente exército e o desfile da cavalaria.”
O exército chefiado pelo general Holofernes é imenso, 120 mil homens, fora cavalaria e as vivandeiras. Para comparação, o exército brasileiro tem cerca de 200 mil soldados. Imaginar a fortaleza de Arfaxad, o exército de Nabucodonosor em movimento, alimentando-se, arrasando, enchendo de cadáveres os rios, Nabucodonosor como o puro mal, isso, para mim, é muito mais instigante que Sauron, sociedade do anel...
Disse Nabucodonosor a Holofernes: “Cobrirei toda a face da terra com os pés do meu exército e entregarei meus inimigos à pilhagem. Seus feridos encherão as ravinas, e toda torrente e todo rio, inundados, com seus cadáveres, transbordarão.”
Judite, além da beleza natural, se fez sedutora:
“Tirou o pano de saco que vestira, despojou-se do manto de sua viuvez, lavou-se, ungiu-se com ótimo perfume, penteou os cabelos, colocou na cabeça o turbante e vestiu a roupa de festa que usava enquanto vivia seu marido Manassés. Calçou sandálias nos pés, colocou colares, braceletes, anéis, brincos, todas as suas joias, embelezando-se a fim de seduzir os homens que a vissem.”
Deste modo, Judite foi um cavalo de Troia às avessas: a cidade-fortaleza sitiada enviou aos sitiantes o “cavalo”. Judite encantou os soldados e uma tropa de cem deles a conduziu ao centro do acampamento. Se fosse um filme, ver-se-ia Judite em um carro com cavalos acompanhada por cem cavaleiros fazendo sua entrada bombástica no acampamento inimigo.
Depois da vitória e da pilhagem ao acampamento, Judite é recebida em Betúlia de forma dionisíaca, como em um cortejo de bacantes:
“Todas as mulheres de Israel correram para vê-la e organizaram um grupo de dança para festejá-la. Judite tomou em suas mãos tirsos e deu-os às mulheres que a acompanhavam. Judite e suas companheiras coroaram-se de oliveira. Depois, ela foi na frente de todo o povo e conduziu as mulheres na dança. Todos os homens de Israel, armados e coroados, acompanhavam-nas cantando hinos.”
Tirso: “bastão enfeitado com hera e pâmpanos, e rematado em forma de pinha, atributo de Baco e das bacantes, personagens da mitologia greco-romana.”
Nota da Bíblia de Jerusalém: “Tais cortejos são bem conhecidos, mas os adornos com coroas de folhagem verde são um costume propriamente grego. Da mesma forma os tirsos, ramos ou bastões decorados com folhagem, só aparecem, na Bíblia, em 2Mc 10,7. Entretanto, havia o costume de agitar ramos para exprimir alegria (Lv 23,40).”
Enfim,
este é um conto delicioso que merece ser lido por suas qualidades literárias e
simbólicas.