O colecionador, John Fowles, 1963

O colecionador, John Fowles, 1963, 343 páginas, tradução de Antônio Tibau, DarkSide. Início: 26/01/2021 – Fim: 30/01/2021. Nota 4 (Escala:1 – Ruim, 2 – Regular, 3 – Bom, 4 – Ótimo, 5 – Obra-prima). 



Aviso de spoiler: vou escrever sobre todo o enredo do livro, continue por sua conta e risco. 

Releitura deste romance memorável depois de muitíssimos anos. 

O romance conta, em primeira pessoa, a obsessão de um sujeito limitado culturalmente por uma moça que cursa uma escola de arte. Ele, Frederick Clegg, é funcionário da prefeitura de uma cidadezinha e a vê passar na rua todos os dias. Ela, Miranda Grey, parte para estudar arte em Londres. Mundos culturais totalmente distintos. O sujeito ganha um prêmio de loteria e começa a imaginar como poderia ter a moça como “hóspede”. Ele compra uma casa isolada e um furgão, prepara o cativeiro e sequestra a moça. O leitor acompanha, então, os dias de cativeiro por meio da narrativa enviesada do sequestrador: as tentativas de fuga, as falsas esperanças de liberdade que ele dá a ela, a mente distorcida dele, a gripe dela. 

O nome da moça, Miranda, é também o nome da personagem de “A tempestade”, de Shakespeare. O sequestrador diz a Miranda que seu nome é Ferdinand, e não Frederick, porque Ferdinand é o rapaz que vai casar com Miranda na peça. Todavia, ela passa a chamá-lo de Caliban, o ser meio humano e meio monstro que vive na ilha de “A tempestade” e que tenta estuprar Miranda.   

Depois, o leitor tem acesso ao diário de Miranda, escrito nos dias do cativeiro. Os mesmos acontecimentos, agora narrados pela sequestrada, as tentativas de fuga frustradas, a ilusão de que poderia ser libertada, o horror do cativeiro, do silêncio, da solidão, a variação de atitudes dela (odiar o sequestrador, não colaborar, não comer, sentir empatia pelo monstro, tentar se aproximar dele), e a gripe não tratada que vai levá-la à morte. As recordações de Miranda dos tempos de liberdade, sua família e amigos, seus pensamentos sobre arte. 

O sequestrador narra, então, a sua falta de empenho em tentar ajudar Miranda na grave doença, a sua falta de coragem, a dificuldade em se relacionar com outros humanos e pedir ajuda; tudo isso o torna o assassino dela, por absoluta omissão. No epílogo, o leitor assiste impotente enquanto Clegg inicia a preparação de outro sequestro. 

O romance é fascinante, o leitor torce, se agita, se mexe, quer ler tudo de uma vez, não quer parar de ler, quer saber o final, quer que o livro não acabe; o leitor pressente que o destino de Miranda está determinado, e torce pela personagem, quer que ela fuja de algum modo, frustra-se com as tentativas de fuga infrutíferas, odeia o sequestrador (e diverte-se com a loucura dele, ao mesmo tempo). Um livro tristíssimo e cruel e não dá para não ler.

 

Quase perfeito. 

Não classifiquei o romance como obra-prima por conta de algumas falhas: 

- Deus ex-machina: Frederick Clegg ganha uma fortuna na loteria. Isto facilita o enredo. Este tipo de truque afasta o romance da realidade. O autor poderia ter resolvido a situação de outro modo, economias de Clegg, por exemplo, visto que ele não quase não tinha despesas, e mudança da tia e da prima para a Austrália, e Clegg ficaria com uma casa só para si. 

- Empatia com o sequestrador: talvez o autor tenha feito de forma proposital; o leitor não sente uma total ojeriza pelo monstro. Clegg chega a ser engraçado, o leitor ri da loucura, ri do afastamento dele da realidade. Como quando Clegg culpa Miranda por tudo, pelos castigos que ele impõe a ela, pelo agravamento da própria doença, tudo culpa dela. Quando Clegg fica magoado por alguma grosseria de Miranda. A empatia do leitor com o sequestrador diminui o horror do cativeiro de Miranda, e isso é terrível. É possível que o autor tenha propiciado a empatia do leitor com o criminoso para que fosse possível compreender a empatia que se estabelece, às vezes, entre Miranda e o monstro. A expressão “Síndrome de Estocolmo” surgiu em 1973, dez anos depois da publicação deste romance, mas o leitor percebe que Miranda apresenta muitos momentos de apego ao seu sequestrador. 

- A fixação de Miranda pelo pintor quase fracassado G. P. é enfadonha, muitas vezes, e diminui a força do romance. Os preconceitos de Miranda acerca de arte e de gente também causam irritação: Miranda sabe tudo, sabe qual é a arte “certa” e quais são as ideias “certas” sobre arte e sobre o mundo. Neste sentido, ela se assemelha, sem perceber, ao sequestrador, visto que Clegg tenta sempre falar e se portar da forma “correta”, correta de acordo com as opiniões dos outros, correta de acordo com o padrão da sociedade.

 

A edição da DarkSide. 

Em termos de objeto e design, excelente: capa dura, figuras antigas de borboletas, páginas especiais, tudo bacana. 

Em termos de conteúdo, péssima edição: 

- A tradução tentou atualizar algumas gírias da personagem (1963): exemplo: "eu disse a ele na real o que eu pensava sobre..." Ora, a tradução deveria procurar gírias que estivessem em uso em 1963. 

- A tradução não atentou para o problema dos "seu" e "sua", que em português refletem o gênero da "coisa possuída", enquanto em inglês "his" e "her" refletem o gênero do "dono da coisa". A tradução deveria ter usado mais frequentemente os "dele" e "dela". O texto resultou confuso em muitas partes. 

- A tradução suprime com excessiva frequência os pronomes pessoais "eu" e "ele", e não atenta para o fato de que, por exemplo, "fazia" primeira pessoa e "fazia" terceira pessoa são a mesma palavra e confundem o leitor. 

- Há muitos errinhos que passaram na revisão. 

- As notas, que se apresentam na forma de um posfácio, sem numeração, dirigem-se a leitor de dez anos de idade ou mentalmente incapaz. Por exemplo: as notas dizem que em 1963 não havia "textão das redes sociais" e os pensadores usavam a literatura para "dissecar o mundo". Uau! Anotam também que as referências artísticas do romance são "easter eggs". O pior: que Rembrandt era "fã e precursor do selfie, cinco séculos antes do smartphone". Que pobreza mental explicar Rembrandt dessa forma.

 

Resumo. 

Parte 1. 

O narrador é um funcionário subalterno de um cidade próxima a Londres. Saberemos mais tarde que o nome dele é Frederick Clegg. Ele mora com a tia e a prima, é colecionador de borboletas e nunca teve contato mais íntimo com qualquer mulher. Ele admira uma moça da cidade, Miranda Grey. A moça vai estudar arte em Londres. Clegg ganha um prêmio de loteria (um deus ex-machina que facilita o enredo). A tia e a prima embarcam para a Austrália. Clegg descobre onde Miranda estuda, em Londres, e a observa. Compra um furgão para fotografar e caçar borboletas. Começa a planejar o sequestro de Miranda. Compra uma casa antiga, no campo, afastada de tudo, com um adequado porão. Realiza o sequestro de Miranda. Primeiros dias do cativeiro. Miranda o trata como perturbado, “eu posso te ajudar”, ela diz; ele se ofende. Ele mente e diz que seu nome é Ferdinand (para se referir ao pretendente de Miranda em “A tempestade”). Notícias sobre o desaparecimento da moça nos jornais. Primeira tentativa de fuga. Primeiro banho no andar superior da casa. Discussões, discordâncias, brigas. Ela pergunta se ele é bicha. Miranda diz que ele deveria ser chamado de Caliban, não de Ferdinand. Miranda pede que ele não a estupre com violência; se vier a acontecer, ela não vai lutar. Segunda tentativa de fuga, ela fingia estar com apendicite. Tentativa de mandar um bilhete minúsculo dentro de uma carta para os pais, autorizada pelo sequestrador. Terceira tentativa de fuga: com um prego de quinze centímetros, ela consegue retirar três ou quatro pedras, mas por trás há rocha. Na noite anterior à “libertação”, jantar, vestido, colar e anel, um falso pedido de casamento. Ela tenta fugir pela porta, é sedada, levada para o porão, ele faz fotografias dela com calcinha e sutiã. Na volta do banho, uma machadinha esquecida, ela o ataca, consegue fazer um corte na têmpora, mas é dominada. Outra noite, depois do banho, tenta seduzi-lo, ficam nus, nada acontece, não dá certo. Ele mente e diz que não pode fazer sexo. Ele consegue, desde que seja dentro das fantasias malucas dele. Ela pede para habitar um quarto na casa, para ter ar e luz. Ele faz mais uma falsa promessa. No dia de subir para o tal quarto, ele diz que quer fazer fotos dela, nua, ela não aceita. Ela pegou gripe. Discutem, ele a amarra e faz as fotos. Ela piora da gripe. 

Parte 2. 

É o diário de Miranda. Ela anota seu medo, os dias, seus pensamentos e recordações. Pai, mãe, irmã, amigos e o pintor G. P., um cara mais velho do que ela, uma fascinação, um tipo de mentor; um artista meio fracassado, meio revoltado, inteligente, culto. Ela anota diálogos com Caliban. O diário mostra a variação de atitudes dela frente ao sequestrador. As ilusões dela, o medo, o horror da situação. Ilusão de que ele a deixaria ir embora um dia. As brigas, a tentativa de seduzir o sequestrador. As ideias dela, ou de G. P., sobre arte e sobre pessoas. A ingenuidade dela. É triste acompanhar a saúde dela se deteriorando. 

Parte 3. 

O sequestrador narra os últimos dias de Miranda. As fracas e inúteis tentativas dele em salvar a vida dela. A culpa foi dela. Ele pensa em se matar, um pacto suicida. 

Parte 4. 

Epílogo. O sequestrador não se matou. Enterra o corpo de Miranda. Começa a imaginar que poderia até trazer outra hóspede.