Frankenstein ou o Prometeu moderno, Mary Shelley, 1818

Frankenstein ou o Prometeu moderno, Mary Shelley, 1818, 417 páginas, tradução de Christian Schwartz, Penguin Companhia. 

Aviso de spoiler: vou falar do enredo do livro sem restrições, continue por sua conta e risco. 

Impressionante que uma moça de dezenove anos tenha concebido e escrito tal história. 

Ao ler um original tão famoso, que deu origem a outras histórias e a tantos filmes, e que se incorporou à cultura popular, constatamos que certos aspectos foram deturpados ao longo do tempo: 

- A criatura não tem nome, sendo referenciada como “criatura”, “monstro”, “demônio”; todavia, o nome do cientista migrou para a criatura. 

- A autora não descreve os procedimentos utilizados por Victor Frankenstein para criar o monstro e dar-lhe vida. Há vagas referências a necrotérios, mas nem mesmo se descreve o laboratório do cientista, tampouco se fala em “eletricidade” ou alguma forma de energia ou de química que dispare a fagulha de vida na criatura. Para a criação da segunda criatura, uma fêmea, sequer haveria “material” disponível, visto que Victor estava em uma ilha isolada com somente cinco habitantes – os quais ele não usou como matéria-prima, ressalte-se. 

- A criatura não é lenta e inepta como se vê em algumas representações. O “monstro” é sobre-humano, repito um ser super-humano, praticamente um super-herói ou um supervilão, como se quiser. A criatura é maior, mais forte, mais veloz na terra e na água, mais resistente à fome e ao frio, possivelmente mais inteligente que os humanos. A gente pensa na criatura como o Superman ou, melhor, o Hulk. É possível que a ideia de super-heróis tenha se originado da criatura de Frankenstein. 

Aqui em casa, nós fizemos a leitura deste clássico em voz alta, em nove noites. A leitura em voz alta parece espantar um possível enfado de algumas passagens descritivas e de outras repetitivas. Sim, o livro de Mary Shelley poderia ter algumas partes cortadas e resumidas sem prejuízo da história. 

As melhores partes do livro se referem ao embate entre criador e criatura, à responsabilidade do criador em relação ao que criou, ao desenvolvimento de tecnologia sem princípios éticos. A narrativa remete, evidentemente, à nossa situação de criaturas abandonadas por um criador mudo, distante, ou inexistente. O capítulo em que a criatura consegue conversar com o criador, expor seus sentimentos, cobrar responsabilidade do criador é excelente. 

Victor Frankenstein é um crápula, um irresponsável, egoísta, megalomaníaco, covarde. Dá nojo no leitor quando alguns personagens se referem a Victor como alguém grandioso e digno. Sujeitinho desclassificado. 

A criatura é o melhor personagem, tenta ser amável e delicada, é rejeitada por todos, alimenta ódio, vingança e remorso. 

Ao final, um livro muito bom, vale a pena ler, diverte e faz pensar. 

Resumo. 

Volume um. 

O livro inicia com cartas de Robert Walton para sua irmã Margaret. Ela está na Inglaterra e ele na Rússia. 

Na Carta I, sabemos que Walton é um herdeiro do primo, está em São Petersburgo, e que pretende cruzar o polo norte de barco. 

Na Carta II, Walton está em Arcangel, comprou um barco, prepara uma tripulação, e conta a história do contramestre: este doou sua fortuna para que jovem pobre pudesse se casar com uma moça rica, na qual o contramestre estava interessado. 

Na Carta III, Walton já está em altas latitude e envia a carta por meio de um mercador. 

A Carta IV, como não foi enviada, se tornou uma reunião de notas de Walton. O barco fica preso no gelo e a tripulação avista no horizonte gelado um trenó puxado por cães e guiado por “um ser com a forma aparente de um homem, mas de estatura desmesurada”. No dia seguinte, encontram um grande pedaço de gelo flutuante com um trenó, um cão e um homem, que trazem para bordo. O homem enfraquecido vai melhorando com o passar dos dias e vai contar a sua história. Percebe-se que Walton é um duplo do homem enfraquecido, o homem misterioso percebe que Walton tem objetivos grandiosos que quer alcançar a todo custo e decide adverti-lo com seu exemplo. 

Capítulo I. O pai do homem ainda sem nome salva da miséria e casa com Caroline que, por sua vez, salva da miséria a menina órfã Elizabeth e a leva para criar. Caroline tem três filhos, Victor, William e Ernest. 

Capítulo II. O amigo Clerval e o interesse pela alquimia. 

Capítulo III. Morte de Caroline por escarlatina, ida de Victor para estudar em Ingolstadt, conhece o professor Krempe e o professor Waldman; este é químico e não renega tudo da alquimia. 

Capítulo IV. Os anos de estudo, a busca por criar vida. 

Capítulo V. A autora não detalha como Victor conseguiu criar um ser, H. G. Wells vai usar o mesmo recurso em seus livros, pular a parte técnica. Ela insinua visitas a necrotérios, mas não há descrição conseguir corpos ou parte de corpos, tampouco de como despertar a criatura. A criatura adquire vida, Victor foge horrorizado, a criatura foge do laboratório. Victor passa meses doente. 

Capítulo VI. Victor recuperado com a ajuda de Clerval. 

Capítulo VII. Carta do pai, o irmão William foi assassinado, Victor volta a Genebra, vê a criatura perto do local onde o irmão foi morto. Justine é presa pelo crime. 

Capítulo VIII. Julgamento de Justine, culpada, morte de Justine na forca. 

Volume dois. 

Capítulo I. Victor viaja pelos Alpes. 

Capítulo II. Victor encontra a criatura e tenta lutar com ela, a criatura pede para contar a sua história. 

Capítulo III. A criatura faz a narração, fala do horror dos humanos, a estadia junto ao chalé, onde habitam Agatha, De Lacey, Felix. 

Capítulo IV. A criatura permanece escondida junto ao chalé, aprende algumas palavras. 

Capítulo V, chega ao chalé a árabe Safie, noiva de Felix, a criatura aprende mais assistindo as aulas que dão para Safie. 

Capítulo VI. A criatura conta a história da família do chalé e da turca Safie. É um ninho de histórias: Victor conta a sua história para Walton, na qual a criatura conta a sua história e, dentro desta, a criatura conta a história da família do chalé. 

Capítulo VII. A criatura se apresenta a De Lacey, o velho cego do chalé, que o recebe bem, mas quando os jovens retornam, arma-se a confusão, a criatura é atacada e foge. 

Capítulo VIII. A família do chalé abandona a casa, a criatura queima o chalé e parte na direção de Genebra em busca do criador. Encontra e mata William e coloca o pingente no bolso de Justine. A criatura termina de contar sua história e pede que Victor lhe faça uma companheira. 

Capítulo IX, a criatura argumenta e convence Victor a prometer que lhe fará uma companheira. 

Volume três. 

Capítulo I. Victor procrastina começar a nova criatura, viaja para Londres com Clerval. 

Capítulo II. Victor vai para a Escócia e, depois, para uma ilha isolada nas Órcades, e lá trabalha na nova criatura e está adiantado no processo. 

Capítulo III. Quando Victor vê a criatura na janela, destrói a nova criação. A criatura diz que vai se vingar. Victor sai de barco e joga os despojos no mar, dorme, perde o rumo e aporta na Irlanda. É acusado de assassinato e preso. 

Capítulo IV. O juiz leva Victor para ver o morto, é Clerval, Victor adoece por dois meses na prisão, o pai chega à prisão, não há julgamento porque se comprova que ele estava na ilha (nem deveria ter sido preso, falhas do romance). Viagem de volta. 

Capítulo V. Em Genebra, casamento e viagem de lua de mel, de barco, para Evian. 

Capítulo VI. A criatura mata Elizabeth, Victor volta para Genebra, deixa o corpo de Elizabeth, o pai morre poucos dias depois. 

Capítulo VII. Victor persegue a criatura por meses até o oceano congelado no Ártico, até ser encontrado pelo navio de Walton. A narração volta a ser feita por Walton, escrevendo para a irmã. 

Anotação de 26 de agosto. Victor vê que Walton tomava notas sobre a história e as corrige e amplia. Victor, mais fraco, porém continua a obsessão de perseguir a criatura. 

Anotação de 2 de setembro. O navio está preso no gelo, Walton teme um motim. 

Anotação de 5 de setembro. O navio ainda preso, motim, a tripulação quer voltar se o navio se soltar do gelo, Victor faz um discurso inútil para que tenha coragem e continuem o propósito. 

Anotação de 12 de setembro. O navio se soltou e começam a voltar para o sul. Victor morre. A criatura sobe a o navio e entra na cabine onde está o corpo de Victor. Fala com Walton. Fala do ódio, dos crimes e dos remorsos. Avisa que vai se dirigir ao norte, fazer uma pira funerária (com que madeira?) e se matar. Vai embora do navio. Fim. 

Trechos do diálogo da criatura com o criador: 

“Eu esperava ser assim recebido”, disse o monstro. Os miseráveis são odiados por todos os homens; quão odiado devo ser eu, por conseguinte, miserável para além de todas as coisas! E tu, no entanto, meu criador, detestas e rejeitas esta tua criatura, à qual tua arte te liga por laços que somente é possível romper pelo aniquilamento de um de nós. Estás disposto a me matar. Como te atreves a brincar assim com a vida? Cumpre tua obrigação comigo e cumprirei a minha contigo e com o restante da humanidade.

[...]

“Condenas-me por te haver criado; pois vem, então, que haverei de extinguir a centelha de vida que tão negligentemente apliquei em ti.”

[...]

“Já não sofri o bastante para que tentes agravar a minha infelicidade? Tenho apreço pela vida, ainda que ela não passe de um acúmulo de angústias, e a defenderei.”