O mal-estar na cultura, Sigmund Freud, 1930, 191 páginas, tradução de Renato Zwick, L&PM.
Não sou especialista na área do famoso doutor. A leitura que fiz dos livros dele foi uma leitura de conhecimento, uma leitura para conhecer um pouco o pensamento dele, e é como a um pensador da modernidade que me refiro ao famoso doutor. Modernidade de 1930 mas que também é a nossa, noventa anos depois, em certa medida.
Acerca da psicanálise, não tenho conhecimento para opinar, então minha opinião é achismo. Que seja. Os livros do pensador estão aí para ser lidos e cada um pode ter sua opinião. Os livros dele não são livros de matemática ou de química, para os quais a discussão deveria ser técnica. Acerca da psicanálise, ainda, acho até que funciona, mas que não é ciência, nem mesmo ciência médica. Por sorte funciona, por acaso funciona. Talvez funcione porque as pessoas precisam de alguém com quem debater e expurgar seus problemas, culpas, “pecados”, crimes, desejos, safadezas. Antes, quem fazia esse papel eram os sacerdotes, os pajés, os tambores, os cânticos, as oferendas. Ainda fazem, é certo.
Robert Louis Stevenson dividiu a psique do doutor Jekyll em duas partes, a boa e a má, e a parte boa controlava a má. Com a poção, o doutor conseguiu que a parte má adquirisse vida própria e não fosse mais controlada pela parte boa. Hyde era o mal puro. Por seu lado, o doutor Jekyll continuava com a psique dividida em duas partes.
Sigmund, a quem sua mamãe chamava “meu Sig de ouro”, dividiu a psique humana em três partes, o “eu”, o “isso” e o “supereu”. Talvez tal divisão seja útil para o entendimento que ele queria ter do ser humano. Eu, do alto da minha arrogância misturada com ignorância, também posso dividir a psique humana em partes teóricas – qualquer um de nós pode fazer isso, visto que a psique não é concreta, é uma abstração. Eu quero agora dividir a psique humana em quatro partes: o “eu”, o “isso”, o “aquilo” e o “infraeu”. Ou dividir em sete partes, denominadas de A até G. Nada impede. A psique abstrata, fantasmática, pode ser fatiada como quisermos, a possível “divisão” não decorre de um fato médico ou científico. O fato do pensamento de Freud funcionar em certa medida não significa que aquela divisão aleatória proposta é real.
Bem, sobre o livro a que me refiro, essa é a segunda leitura que fiz dele. Como livro de um pensador, de alguém que pensa a cultura, os seres humanos, suas ações e sensações, é um bom livro, instigante, faz o leitor pensar também, não é tedioso e apresenta aspectos que não percebíamos antes. Como ciência, é impreciso e vago. Mesmo como livro de ensaios de um pensador, alguns aspectos causam espanto:
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A grande quantidade de imprecisões, representadas por expressões como “talvez”
e “parece”.
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A ausência de definições acerca de termos ou expressões.
- A enorme carga de preconceito e eurocentrismo (próprios da época do autor, é evidente).
Já no primeiro parágrafo do livro, encontra-se exemplo do que foi citado acima. O autor diz: “É impossível escapar à impressão de que os seres humanos geralmente empregam critérios equivocados, de que ambicionam poder, sucesso e riqueza para si mesmos e os admiram nos outros, enquanto menosprezam os verdadeiros valores da vida.” Ora, o que significa a expressão “os verdadeiros valores da vida”?
É evidente que, para cada ser humano, esta pergunta vai resultar em respostas diversas. Se alguém responder “deus” como um dos verdadeiros valores, já sabemos que esse não é um valor para Sigmund de ouro, tampouco para este que aqui escreve. Para alguém, um dos verdadeiros valores da vida será a amizade, mas para outro, como Oscar Wilde, será o desprezo, ou a indiferença. Em suma, não existem, de forma generalizada, os tais “verdadeiros valores da vida”. Para Freud, seriam o conhecimento, o estudo, mas para alguém poderia ser, com igual validade, o dinheiro. Não há absoluto neste ponto. A própria vida humana é um valor? Não para mim, de modo geral. Em particular, a vida é um valor para mim: a minha vida, a dos meus filhos. De modo universal, a vida humana não é um valor: o ser humano pode, deveria até, desaparecer do planeta, ou do universo, que não faria falta, não haveria qualquer abalo na força. Não há “deus”, para Freud e para mim, não há um plano para o ser humano, o que faz da vida humana um acaso, não um valor.
Machismo: Freud diz que “as mulheres representam os interesses da família e da vida sexual; o trabalho da cultura se tornou sempre mais um assunto de homens, coloca-lhes tarefas sempre mais pesadas, força-os a sublimações dos impulsos de que as mulheres são pouco capazes.” E mais: “a mulher se vê relegada a um segundo plano pelas exigências da cultura e entra em uma relação hostil com esta.” É evidente que Freud era homem do seu tempo, a desvalorização das mulheres era comum. Isso não significa que se possa desculpar a curta visão do doutor, deveria ter enxergado além de seu tempo.
Outro defeito grave inerente ao pensamento de Sigmund é que ele se mete na antropologia – e em outros campos de ciências – sem ter a devida capacidade e formação. A parte em que ele sugere a forma como os humanos dominaram o fogo é bizarra e ingênua. Qualquer um de nós pode escrever um ensaio, e é isso que Freud fez nesse livro. Todavia, o problema que decorreu dos ensaios de Sigmund é que seus seguidores, e ele mesmo, passaram a achar que tudo ali estava bem correto e fundamentado, e isso está muito longe de corresponder à verdade.
“Ensaio é uma obra de reflexão que versa sobre determinado tema, sem que o autor pretenda esgotá-lo, exposta de maneira pessoal ou mesmo subjetiva. Ao contrário do estudo, o ensaio não é investigativo, podendo ser impressionista ou opinativo.”
O grande problema com Freud é que, detestando a religião e deus, ele originou, por sua vez, uma religião. Esse pessoal que segue as ideias de Freud parece um bando de fanáticos religiosos, e ninguém pode sequer discordar dos dogmas do Moisés-Sigmund. É o que me parece.
O lado bom deste livro instigante é a análise que o autor faz acerca da felicidade, da impossibilidade de sermos felizes (não está no plano da “criação” a felicidade dos humanos), acerca do sofrimento e acerca do delírio religioso. A parte em que Freud se coloca contra o ingênuo preceito de “amarás a teu próximo como a ti mesmo”, e demonstra o absurdo de uma tal proposta, e ainda aponta que o próximo é digno de hostilidade e mesmo de ódio, é sensacional e divertida. Iconoclasta, aquele que se tornou um ícone.
Vale a pena ler Freud, todavia com muito bom senso e senso crítico, não se pode engolir tudo o que ele inventava na cabecinha de menino mimado de mamãe que ele tinha.
Primeiro parágrafo e trecho.
“É impossível escapar à impressão de que os seres humanos geralmente empregam critérios equivocados, de que ambicionam poder, sucesso e riqueza para si mesmos e os admiram nos outros, enquanto menosprezam os verdadeiros valores da vida. No entanto, ao efetuar qualquer juízo geral desse tipo, corre-se o risco de esquecer a variedade do mundo humano e de sua vida psíquica. Há alguns poucos homens aos quais não é negado o respeito de seus contemporâneos, ainda que a sua grandeza resida em qualidades e realizações inteiramente alheias às metas e aos ideais da multidão. Não será difícil supor, porém, que apenas uma minoria reconheça esses grandes homens, enquanto a grande maioria nada queira saber deles. Mas as coisas podem não ser tão simples assim, graças às discrepâncias entre o pensar e o agir dos seres humanos e à multiplicidade de seus desejos.”
“É
particularmente digno de nota o caso em que um grande número de pessoas
empreende conjuntamente a tentativa de obter garantias de felicidade e proteção
contra o sofrimento mediante uma transformação delirante da realidade. Precisamos
caracterizar também as religiões da humanidade como delírios coletivos desse
tipo. E quem toma parte no delírio, obviamente nunca o reconhece como tal.”