A concha

De Cézanne, gosto somente das naturezas-mortas e de algumas vistas do Monte Sainte-Victoire. As representações do corpo humano são péssimas. Não sei se ele não sabia mesmo fazer corpo ou se era intencional, no intuito de ser “moderno”. As frutas de Cézanne são vibrantes – embora, de fato sejam bolas coloridas e não frutas. Mas a cor e a composição me agradam. Uma ou outra pintura que retrata Madame Cézanne também me interessam; a mulher parece braba, raivosa e troncuda. Não dá para saber como era a vida a dois, entre eles, mas aquela mulher é assustadora. A grande amizade entre o artista e Zola resultou em uma tela estranha, La pendule noire, que foi pintada na casa do escritor. Não é um dos meus quadros favoritos, é sombrio, e traz aquele elemento – eu diria assustador ou, no mínimo, inusitado – no lado esquerdo, uma grande concha na qual a abertura de entrada está cingida por uma mancha vermelha.

A primeira vez em que vi essa tela foi no Musée du Luxembourg – era uma exposição denominada Cézanne et Paris, composta por telas que o artista pintara na cidade e na Île-de-France. Ao ver a concha, pensei imediatamente no órgão sexual feminino, era uma simbologia óbvia. Recordei, também, que a concha é a proteção do animal, o esqueleto externo, a armadura, o envoltório rígido. Li depois, em algum lugar, que o artista quis representar ali a natureza feminina de Zola. São intepretações apenas. Entretanto, aquela concha sanguínea não está ali por acaso. Chega até a desequilibrar a composição, em alguma medida. A concha me parece, ao mesmo tempo, cérebro, cabeça de animal com a boca aberta e suja de sangue, monstro e órgão sexual. A concha e o vermelho me fazem esquecer o restante dos elementos da composição.

Foi uma sorte ver essa tela ao vivo, visto que ela faz parte de uma coleção particular. Naquele dia no museu, fiz a inspeção geral das obras expostas – estava lá, inclusive, a famosa tela Paul Alexis lisant à Émile Zola, mas essa não me prendeu tanto quanto a outra – e dediquei mais tempo às naturezas-mortas que chamo de “alegres”, em contraposição à tela da concha. Todavia, na maior parte do tempo fiquei preso a esse quadro – ia e vinha e parava em sua frente. Pensava em Cézanne, imaginava histórias, ia para a frente de uma tela que mostrava a robusta e enraivecida Madame Cézanne. Ficou evidente para mim que Cézanne quis destacar a concha e os símbolos, tantos, envolvidos naquela imagem. Somente o próprio poderia nos falar sobre seus pensamentos. Eu via uma imagem sombria, fúnebre, lutuosa, a composição como uma concha geral; e dentro da concha geral, a concha luminosa e sangrenta, a amizade de Émile e Paul, a raiva de Madame, a armadura calcária contra o mundo.

Enfim, La pendule noire é uma tela da qual não gosto, em absoluto, mas que não deixo de revisitar, em pensamento e nas imagens de computador, desde que a vi pela primeira vez, motivadora de uma epifania incompleta, o que é, em si, um paradoxo.