Notas sobre Otelo
Paulo Mendes
Otelo, William Shakespeare,
1604, tradução, introdução e notas de Lawrence Flores Pereira, ensaio de W. H.
Auden. Penguin Companhia, 328 páginas.
Personagens
Otelo, o Mouro, militar a
serviço de Veneza
Desdêmona, filha de Brabâncio
e esposa de Otelo
Cássio, um honrado tenente
Iago, alferes (oficial abaixo
de tenente), um vilão
Emília, esposa de Iago
Rodrigo, um cavalheiro tolo
Brabâncio, senador, pai de
Desdêmona
Graciano, irmão de Brabâncio,
nobre veneziano
Ludovico, parente de
Brabâncio, nobre veneziano
Montano, governador de Chipre
antes de Otelo
Duque de Veneza
Palhaço, servo de Otelo
Bianca, uma cortesã
Ciúme, inveja, ingenuidade
Otelo é um clássico e deve ser lido e relido.
Possivelmente, mesmo quem não leu a peça – ou a assistiu em cinema ou teatro –
sabe, ao menos superficialmente que se trata de uma obra sobre o ciúme. Ciúme
obsessivo e infundado. O enredo é o seguinte: o general Otelo, mouro e negro, a
serviço de Veneza, encanta a branca e nobre Desdêmona, que foge de casa para
casar com o Mouro. Otelo recebe de Veneza a missão de embarcar para Chipre e
enfrentar a frota turca, e leva a esposa consigo. Iago, um de seus comandados,
ciumento, invejoso, obsessivo, elabora tramoias contra o tenente Cássio e
contra a esposa do general. Otelo acredita nas mentiras de Iago e mata a
inocente Desdêmona. Todavia, observe-se que nada é simples nesta peça, os
personagens são complexos e nuançados.
Otelo
não é apenas uma tragédia. Shakespeare elaborava suas peças como um
divertimento variado. Nelas se encontram músicas e músicos, farsas, ditados
espirituosos, cenas cômicas, crítica de costumes, palhaços, peças dentro da
peça e atores. A esse respeito, veja-se o que disse Fritz Lang, diretor de
cinema, de acordo com Braulio Tavares:
Veja
o caso de Shakespeare. Depois de uma cena muito forte, ele bota toda vez uma
cena cômica. Eu tinha uma edição bem antiga do Otelo onde depois de uma cena
forte aparecia a rubrica: “Entra o Urso”. Que diabo era isso? Finalmente alguém
me explicou. Isso era uma sobra de uma edição muito mais antiga. Naquele
momento da peça Shakespeare sentia que a audiência precisava de algo mais leve,
então entrava um urso, com o domador e provavelmente alguns músicos tocando.
Faziam umas brincadeiras e assim descarregavam a tensão, para que o processo
todo pudesse recomeçar. Ele não podia começar a criar tensão na primeira linha
e depois subir sem parar. Poder, pode; mas a plateia aguenta?
Otelo também é uma peça complexa por conta das questões
raciais de que trata. O personagem Otelo é negro e mouro, ou seja, muçulmano,
mas que adotou o cristianismo. Desdêmona, branca. Muitas vezes vai ser
discutido se é verdadeiro o amor da branca pelo negro. Muitas vezes esse
relacionamento vai ser chamado de monstruoso. O “monstro” é um dos elementos
capitais da peça. O ciúme é um monstro, Otelo é um monstro. O “demônio”, da
mesma forma, é frequentemente invocado.
O
leitor de primeira viagem talvez se espante com a quantidade de termos
obscenos. Shakespeare não economiza em palavras e imagens duras acerca de sexo:
corno, puta, cobrir, montar. O ato sexual é descrito, certas vezes, como
monstruoso, animalesco.
Algo que incomoda na peça é o fato de todos os
personagens parecerem excessivamente ingênuos em relação às tramas de Iago.
Iago seria o único esperto, o único desconfiado, ardiloso, malévolo. A tolice e
a credulidade de Rodrigo, de Otelo e, em menor intensidade, a de Cássio são
espantosas.
Deste
modo, Iago é o grande personagem da obra: complexo, vil, falso, ambíguo, odioso,
ciumento, invejoso, malicioso. Alguns analistas dizem que Iago é o mal em
estado puro, que ele faz o mal por simples prazer. O próprio Iago não se define,
“eu não sou o que sou”, tampouco explica seus motivos quando solicitado ao
final da peça, apenas se cala. Ao longo da peça, Iago dá alguns motivos para a
maldade. Reclama que Cássio tenha sido promovido em seu lugar. Desconfia que
sua esposa, Emília, o traiu com Cássio e com Otelo. Mas Iago não é de confiança
nem mesmo nestas afirmações, permanece dúbio e suspeito. Parece ter inveja e
raiva de todos. Entre ele e Emília não há um único diálogo amoroso, somente
palavras grosseiras e sardônicas. Iago é sexualmente ambíguo: às vezes, parece
amar Otelo, parece amar Desdêmona, e conta de carícias involuntárias com Cássio,
por causa de um sonho.
Emília é personagem delicioso, pragmática, arguta. Desdêmona
oscila entre a romântica e a esperta. Não é uma santinha. Não é que Desdêmona
tenha traído Otelo. É que ela se dá a jogos e brincadeiras maliciosas tanto com
Iago quanto com Cássio. Tem predileção por Cássio e insinua que ele esteve
entre ela e Otelo, no começo do relacionamento. Como Cássio é um sedutor, ela
se permite alguns flertes com ele. Todavia, nela prepondera a aura romântica, o
amor por Otelo acima de tudo.
Por fim, convenhamos que essa história de traição
feminina e castigo, de ciúme e morte, deveria ser letra morta, enterrada sob
camadas de poeira dos séculos. Todavia, sabemos que não o é. Homens e mulheres
ainda matam, se matam, enlouquecem, por conta do ciúme, com ou sem motivo.
Portanto, Otelo segue atual na forma de descrever a loucura que toma conta de
alguns humanos quando defrontados com tais sentimentos.
A edição da Penguin Companhia é primorosa e a tradução de
Lawrence Flores Pereira é excelente, um trabalho meticuloso. O tradutor buscou
a melhor combinação entre versos e palavras de modo a manter o ritmo do texto
original. De minha parte, prefiro uma tradução direta, sem atenção com a rima.
Assim, procuro consultar o original e ver como foi realmente escrito. Neste
resumo, usei minhas traduções literais e imperfeitas.
Resumo e notas
Ato 1
Cena 1
Iago e Rodrigo vão à casa de
Brabâncio, senador de Veneza e pai de Desdêmona, avisar que a moça fugira para
casar com Otelo, o Mouro, general que está a serviço da cidade. Iago afirma que
tem ódio do Mouro porque foi preterido para o lugar de tenente, visto que Otelo
escolhera Cássio, um oficial florentino, para o posto. Ele termina esta fala definindo-se:
Eu não sou o que eu sou.
I am not what I am.
É possível que o Bardo faça,
aqui, uma referência ao Deus do Gênesis, que se denomina “Eu sou aquele que é”,
uma forma de caracterizar Iago como a encarnação do mal, o oposto de Deus, um
semidemônio, como se dirá no último ato. Sem se identificar, Iago promove um
escarcéu na frente da casa de Brabâncio. Ele fala do sexo entre Otelo e
Desdêmona, e critica, inclusive, a cor e a idade do Mouro.
Iago:
Acorda,
Brabâncio. Ladrões, ladrões.
Olha
para tua casa, tua filha e teus pertences.
Ladrões!
Ladrões!
Awake!
what ho, Brabantio! thieves, thieves!
Look
to your house, your daughter, and your bags!
Thieves,
thieves!
Ainda
agora, agora mesmo, um velho carneiro preto
está
cobrindo a tua ovelha branca. Levanta, levanta.
Even
now, now, very now, an old black ram
Is
tupping your white ewe. Arise, arise!
[...]
e tu pensas que somos rufiões, pois terás tua filha coberta por um cavalo da
Barbária [...]
[...]
and you think we are ruffians, you’ll have your daughter cover’d with a Barbary
horse [...]
Sou
aquele, senhor, que veio contar que tua filha e o Mouro estão agora fazendo a
besta com duas corcovas.
I
am one, sir, that comes to tell you your daughter and the Moor are now making the
beast with two backs.
Rodrigo se identifica e diz a
Brabâncio que a filha dele foi levada para o “abraço bruto de um mouro lascivo”
e destaca a “grave rebeldia” da moça. Iago, apesar de detestar o Mouro, não
entra em choque com ele: se faz amigo do general, por conveniência e para se
vingar depois, e vai ao encontro de Otelo. Brabâncio, incrédulo frente à fuga
da filha, pensa que a moça teria sido enfeitiçada.
Não
existem feitiços
pelos
quais os bens da juventude e a virgindade
podem
ser corrompidos?
Is
there not charms
By
which the property of youth and maidhood
May
be abus’d?
Ato 1, Cena 2
Iago revela que nove ou dez
vezes já pensou em matar Otelo, mas lhe falta iniquidade. Ao encontrar o Mouro,
indaga se este realmente se casou e avisa da fúria de Brabâncio. Otelo confia
nos serviços que já prestou a Veneza e diz provir de uma linhagem nobre, além
de ter uma “alma perfeita”, “my perfect soul”. Falta modéstia ao Mouro. É relevante
a ressalva que Otelo faz sobre a união com Desdêmona:
Se
eu não amasse a gentil Desdêmona,
eu
não colocaria minha ampla liberdade
em
circunscrição e confinamento,
nem
pelo valor do mar.
But
that I love the gentle Desdemona,
I
would not my unhoused free condition
Put
into circumscription and confine
For
the sea’s worth.
Um destacamento guiado por Cássio
chega em busca de Otelo visto que o Duque de Veneza o convocou para uma reunião
urgente na madrugada. Algo a respeito da frota turca. Quase ao mesmo tempo,
Brabâncio e soldados chegam para prender Otelo.
Tu
ladrão odioso [...] tu encantaste minha filha [...]
tu
a enfeitiçaste com encantos sujos,
abusaste
de sua delicada juventude com drogas e minerais
que
enfraquecem os movimentos.
O
thou foul thief [...] thou hast enchanted her [...]
That
thou hast practic’d on her with foul charms,
Abus’d
her delicate youth with drugs or minerals
That
weakens motion.
Otelo pergunta para onde deve
ir diante de tal acusação e Brabâncio lhe diz que para a prisão. Ironicamente, Otelo
pergunta se a prisão vai satisfazer o Duque, que acabara de convocá-lo,
juntamente com o senador Brabâncio. Este muda o discurso e decide levar o caso
à reunião do conselho.
Ato 1, Cena 3
O Duque e os senadores estão
reunidos e discutem a situação: chegam notícias de que uma grande frota turca
avança para tomar Chipre. Entram Otelo, Brabâncio e seus séquitos. O Duque
informa que vai precisar dos serviços do Mouro de imediato. Entretanto, o
senador Brabâncio afirma que a filha foi enfeitiçada e roubada. O Duque diz que
o criminoso deve sofrer as penas impostas no “livro sanguinário da lei”, “the
bloody book of law”, mesmo que o envolvido fosse seu próprio filho. Todavia,
quando é informado de que o responsável pelo rapto é Otelo, adoça as palavras e
pede que este faça sua defesa.
Que
eu tenha tomado a filha deste senhor
é
a máxima verdade; é verdade que casei com ela;
a
própria cabeça e o rosto da minha ofensa
têm
esse tamanho, não mais que isso.
[...]
Vou
contar sem enfeites
todo
o curso do meu amor – com quais drogas, quais feitiços,
quais
conjurações e qual poderosa magia
(visto
que estou sendo acusado de tal proceder)
eu
conquistei a filha dele.
That
I have ta’en away this old man’s daughter,
It
is most true; true I have married her;
The very head and front of my offending
Hath
this extent, no more.
[...]
I
will a round unvarnish’d tale deliver
Of
my whole course of love – what drugs, what charms,
What
conjuration, and what mighty magic
(For
such proceeding I am charg’d withal)
I
won his daughter.
Brabâncio reitera as acusações
de feitiçaria: “apaixonar-se por algo que ela temia olhar!”, “to fall in love
with what she fear’d to look on!”, somente por meio de “procedimentos
engenhosos do inferno”, “practices of cunning hell”. O Duque tenta esfriar o
caso: “Afirmar isto não é prova. São necessários testes mais amplos e evidentes”.
O tema das provas vai se repetir mais tarde, na peça, quando Otelo pede provas
da infidelidade da esposa.
Otelo pede que tragam
Desdêmona para que ela mesma fale a respeito e nesse ínterim explica como se
deu o romance. Ele conta que era convidado à casa de Brabâncio com frequência
para contar suas aventuras militares, “as batalhas, os cercos, os
acontecimentos”. Contar de fugas, prisão e de como foi feito escravo, de cavernas
e desertos. Desdêmona ouvia os relatos sempre que as tarefas da casa a deixavam
livre. “Com ouvidos famintos devorava minha narração”, “and with a greedy ear devour up my discourse”. Ela
pediu que o Mouro lhe contasse diretamente suas desventuras e foi às lágrimas
com os sofrimentos narrados.
Ela
me amou pelos perigos que passei,
e
eu a amei porque ela teve pena deles.
Este
apenas é o feitiço que usei.
She
lov’d me for the dangers I had pass’d,
And
I lov’d her that she did pity them.
This
only is the witchcraft I have us’d.
“Uma história assim ganharia
até minha filha”, diz o Duque, “I think this tale would win my daughter too.” Desdêmona
chega e declara que, agora, só deve obediência ao Mouro, seu marido. Brabâncio
diz que melhor seria ter adotado uma criança do que ter tal filha e suplica que
voltem a tratar das questões de estado. O Duque determina que Otelo deve lançar
uma expedição contra os turcos que ameaçam Chipre e este abraça o encargo
curvando-se ao Estado. Ele pede que a República cuide de Desdêmona em sua
ausência, mas o pai se recusa a abrigá-la. Desdêmona pede ao conselho para
acompanhar Otelo na guerra.
Minha
extrema violência e a tempestade de
eventos
se
espalham pelo mundo. Meu coração está subjugado
às
máximas qualidades do meu senhor.
[...]
Deixem-me
ir com ele.
My
downright violence, and storm of fortunes,
May
trumpet to the world. My heart’s subdu’d
Even
to the very quality of my lord.
[...]
Let
me go with him.
Otelo roga que concedam a
permissão:
Não
peço isto
para
agradar o palato do meu apetite
nem
para cumprir com o fogo (as jovens disposições
em
mim extintas) e com as virtuosas satisfações.
I
therefore beg it not
To
please the palate of my appetite,
Nor
to comply with heat (the young affects
In
me defunct) and proper satisfaction.
A afirmação de fogo extinto
não deve ser real visto que Otelo parece cumprir as obrigações conjugais ao
longo da peça. Certamente, a “extrema violência” de Desdêmona não propiciaria
manter um casamento de fogo morto.
O Duque quer pressa e diz que
façam o que acharem melhor. Combina-se que Iago seguirá após Otelo, em barco
separado, e escoltará Desdêmona. O Duque tenta conformar Brabâncio: “Se a
virtude não compensa a ausência de beleza, ao menos teu genro é muito mais
justo que negro”, “If virtue no delighted beauty lack, your son-in-law is far
more fair than black.” Brabâncio adverte Otelo: “Observe-a, Mouro, se tens
olhos para ver; ela enganou o pai e pode te enganar”, “Look to her, Moor, if
thou hast eyes to see; she has deceiv’d her father, and may thee.” E Otelo: “Acredito
nela com a minha vida!”, “My life upon her faith!”
Após a reunião do conselho de
estado, Iago e Rodrigo combinam os próximos passos. Rodrigo diz que vai se afogar
visto que perdeu a amada. Iago despreza essa atitude:
Tolo
cavalheiro. [...] Se eu pensasse em me afogar pelo amor de uma guiné, eu
trocaria minha humanidade com um babuíno. Nossos corpos são nossos jardins,
para os quais nossas vontades são os jardineiros. Coloca dinheiro em tua bolsa.
Foi um começo violento o dela, e tu verás uma correspondente separação.
Ela vai mudar pela juventude. Quando estiver saciada do corpo dele, descobrirá
o erro de sua escolha. Eu odeio o Mouro. Se tu consegues torná-lo corno, te
darás prazer e a mim diversão. Nada de afogamento, ouviste?
A extrema violência, citada
por Desdêmona, e o começo violento, por Iago, remetem à Romeu e Julieta,
à fala de Frei Lourenço: “Esses prazeres violentos têm finais violentos”. Depois,
Iago fala para si e para o público:
Eu
odeio o Mouro,
e
é pensamento corrente que entre os meus lençóis
ele
tem feito o meu ofício. Não sei se é verdade,
mas
para uma mera suspeita desse tipo,
eu
agirei como se fosse certeza.
[...]
Em
algum tempo, soprar no ouvido de Otelo
que
Cássio é excessivamente familiar com sua esposa.
Cássio
tem uns modos e um jeito macio
que
o faz suspeito – ele gosta de seduzir as mulheres.
I
hate the Moor,
And
it is thought abroad that ’twixt my sheets
H’as
done my office. I know not if’t be true,
But
I, for mere suspicion in that kind,
Will
do as if for surety.
[...]
After
some time, to abuse Othello’s ear
That
he is too familiar with his wife.
He
hath a person and a smooth dispose
To
be suspected – fram’d to make women false.
Por fim, diz Iago que o plano
“está armado. O inferno e a noite devem trazer este nascimento monstruoso para
a luz do mundo.”
Ato 2
Cena 1
Em Chipre. Houve uma terrível
tempestade que causou naufrágios na frota turca e a separação dos barcos da
frota de Otelo. O primeiro barco a aportar em Chipre é o de Cássio: este não
sabe o que teria acontecido com o barco de Otelo, mas viu a derrocada dos
turcos. É de notar que não houve batalha: a “vitória” de Otelo foi mera sorte e
não adveio dos alegados méritos do general.
O segundo barco a chegar é o
de Iago, que traz Desdêmona, e que não participou da batalha que não houve.
Cássio diz que os mares perigosos se abriram para a passagem da divina
Desdêmona. Enquanto aguardam notícias de Otelo, Desdêmona e Iago se divertem em
um jogo de palavras: dísticos maliciosos sobre as mulheres. Isto tem início
quando Iago fala mal de Emília e, por extensão, das mulheres. As pilhérias de
Iago comportam um sentido sexual explícito ou velado.
Ora,
ora, vocês são pinturas fora de casa,
Sinos
nas salas, gatos selvagens nas cozinhas,
Santas
quando ferem, demônios quando são ofendidas,
Brincalhonas
nos trabalhos domésticos, e donas de casa na cama.
Come
on, come on; you are pictures out a’ doors,
Bells
in your parlors, wild-cats in your kitchens,
Saints
in your injuries, devils being offended,
Players
in your huswifery, and huswives in your beds.
Antes de pedir que Iago a
distraia com pilhérias, Desdêmona, ainda preocupada com a ausência de Otelo,
declara: “Não estou feliz, mas faço enganar aquilo que sou para semelhar o
contrário.”
I am not merry; but I do beguile
The thing I am by seeming otherwise.
Após o joguinho de dísticos,
Cássio e Desdêmona conversam em separado e Iago vê sensualidade nos gestos do
casal. Iago mostra-se ciumento e ambíguo. A cena é narrada por Iago que vê
Cássio beijar os dedos de Desdêmona várias vezes. Uma brincadeira, um jogo de
sedução. De acordo com Iago, Cássio pega a mão dela, há sussurros e beijos nos
dedos.
He
takes her by the palm; ay, well said, whisper. [...] Very good; well kiss’d! an
excellent courtesy! ’Tis so indeed. Yet again, your fingers to your lips?
Otelo chega a Chipre, enfim, e
faz uma cena de amor “de cinema” com a esposa, juras eternas, “alegria de minha
alma”, “se eu morresse agora, não teria sido mais feliz”, e Iago promete:
“Vocês estão bem afinados agora, mas eu perturbarei as cordas que fazem essa
música”.
Iago e Rodrigo combinam de
desafiar Cássio durante a noite, e fazer com que Cássio incorra em algum erro.
Iago não tem ainda a trama completa em sua mente, ele mostra que está ajustando
as armadilhas, um verdadeiro “working in progress” de maldade. Em sua fala,
Iago reitera suspeitas de que o Mouro, e também Cássio, mantiveram relações
sexuais com Emília.
Suspeito
que o Mouro luxurioso
pulou
na minha sela e o pensamento disso
corrói
meu interior como um mineral venenoso;
For
that I do suspect the lusty Moor
Has
leaped into my seat; the thought whereof
Does
(like a poisonous mineral) gnaw my inwards;
Terei
o nosso Cássio pelos quadris,
vou
insultá-lo ao Mouro no grau e na farda,
pois
suspeito que ele também usou minha touca de dormir.
I’ll
have our Michael Cassio on the hip,
Abuse
him to the Moor in the rank garb
(For
I fear Cassio with my night-cap too).
Ato 2, Cena 2
Um arauto lê a ordem de Otelo
para que se comemore o desastre da frota turca e suas núpcias entre cinco horas
da tarde e onze da noite.
Ato 2, Cena 3
A armadilha é desfechada
contra Cássio. Durante as comemorações incentivadas por Otelo, Iago estimula o
abstêmio Cássio a beber. Cássio fica bêbado, Rodrigo o provoca e Cássio o
ataca. O ex-governador Montano tenta evitar a briga e é ferido por Cássio,
enquanto Rodrigo foge incógnito. Otelo é despertado e vem ver o que houve. Iago
simula não querer contar tudo, mas acaba por relatar o comportamento vergonhoso
de Cássio. Montano está ferido. Otelo fica furioso e diz que Cássio nunca mais
será seu oficial. Cássio sente-se arruinado.
Ó
tu, espírito invisível do vinho, se não tens um nome para ser conhecido, vamos
te chamar demônio.
O
thou invisible spirit of wine, if thou hast no name to be known by, let us call
thee devil!
Iago nota que Cássio se
recuperou rapidamente da bebedeira. Cássio responde:
Acontece
que o demônio da bebedeira deu lugar ao demônio da ira: uma imperfeição me
mostra a outra, para me fazer francamente desprezar a mim mesmo.
It
hath pleas’d the devil drunkenness to give place to the devil wrath: one
unperfectness shows me another, to make me frankly despise myself.
Iago segue com o plano e tenta
consolar Cássio:
Tu,
como qualquer homem, podes ficar bêbado vez ou outra. Eu te digo o que fazer. A
esposa do general é o general agora [...]. Confessa-te livremente com ela;
importuna-a para que te ajude a recuperar teu posto.
You,
or any man living, may be drunk at a time, man. I’ll tell you what you shall
do. Our general’s wife is now the general [...] Confess yourself freely to her;
importune her help to put you in your place again.
Iago fica só.
Então
sou um vilão
se
aconselho Cássio a este movimento paralelo
que
conduz diretamente para o bem dele? Divindade do inferno!
Quando
os diabos querem insinuar os mais negros pecados,
eles
primeiro sugerem visões do paraíso,
como
eu faço agora;
How
am I then a villain,
To
counsel Cassio to this parallel course,
Directly
to his good? Divinity of hell!
When
devils will the blackest sins put on,
They
do suggest at first with heavenly shows,
As
I do now;
Ato 3
Cena 1
Cássio pede a Emília um
encontro com Desdêmona.
Ato 3, Cena 2
Otelo despacha assuntos de
estado.
Ato 3, Cena 3
Encontro de Cássio e Desdêmona.
Ela se compromete a interceder por ele. A fala de Desdêmona parece um feitiço
e, ao mesmo tempo, usa a linguagem dos tribunais.
Meu
senhor nunca descansará,
eu
o manterei domesticado, e lhe falarei até que perca a paciência;
nossa
cama vai parecer uma escola, a mesa dele uma penitência,
eu
confundirei tudo que ele faz
com
o recurso por Cássio. Portanto, fica feliz, Cássio,
pois
tua advogada vai preferir morrer
que
dar tua causa por perdida.
My
lord shall never rest,
I’ll
watch him tame, and talk him out of patience;
His
bed shall seem a school, his board a shrift,
I’ll
intermingle every thing he does
With
Cassio’s suit. Therefore be merry, Cassio,
For
thy solicitor shall rather die
Than
give thy cause away.
Otelo está chegando e Cássio se
retira. Iago começa a envenenar a mente do Mouro, e chama a atenção dele para a
súbita saída de Cássio. Desdêmona vai ao encontro de Otelo e pede
insistentemente que ele aceite Cássio de volta ao serviço. Otelo fica irritado
e pede que ela se retire.
Suprema
desafortunada! A perdição prende minha alma,
mas
eu te amo! e quando eu não te amar,
virá
o Caos novamente.
Excellent
wretch! Perdition catch my soul
But
I do love thee! and when I love thee not,
Chaos
is come again.
Iago sugere existir algo entre
Desdêmona e Cássio, com meias palavras, e Otelo se desespera: é “como se existisse
um monstro em teus pensamentos, hediondo demais para ser mostrado”.
As if there were some monster in thy thought
Too hideous to be shown.
Otelo insiste em saber o que
ele pensa. Iago:
Expressar
meus pensamentos? Dizem que são vis e falsos.
Qual
é o palácio onde coisas sujas
Não
se introduzem às vezes?
([...]
meu ciúme
transforma
em faltas aquilo que não é) então, que tua sabedoria
não
dê atenção
àquele
que conjectura tão desajeitadamente.
Cuidado,
meu senhor, com o ciúme.
Ele
é um monstro de olho verde que zomba
da
carne que o alimenta. O corno que vive
feliz,
certo
de seu destino, é aquele que não ama a sua errada;
todavia,
que malditos minutos suporta
aquele
que adora, com dúvidas; que suspeita, mas ama fortemente.
Utter
my thoughts? Why, say they are vild and false,
As
where’s that palace whereinto foul things
Sometimes
intrude not?
[...]
my jealousy
Shapes
faults that are not), that your wisdom then,
From
one that so imperfectly conjects,
Would
take no notice,
O,
beware, my lord, of jealousy!
It
is the green-ey’d monster which doth mock
The
meat it feeds on. That cuckold lives
in bliss
Who,
certain of his fate, loves not his wronger;
But
O, what damned minutes tells he o’er
Who
dotes, yet doubts; suspects, yet strongly loves!
Otelo: “Ela me escolheu. Não
Iago, eu verei antes de duvidar. Quando eu duvidar, prova.” Iago retruca que
não está, ainda, falando de provas. Aconselha que Otelo olhe a esposa,
observe-a bem com Cássio, use os olhos, sem ciúme e sem segurança. É um safado.
Diz ele que, em Veneza, elas deixam que Deus veja as travessuras que não ousam
mostrar aos maridos. Lá, o truque não é deixar de fazer, mas manter escondido.
“Ela enganou o pai, casando com você.” Otelo fica só:
Ela
se perdeu,
talvez
porque sou negro
e
não tenho a suave conversação
que
os cavalheiros têm, ou porque estou descendo
o
vale dos anos (ainda que não tanto).
Fui
ferido, e meu alívio
Será
detestá-la.
Haply,
for I am black,
And
have not those soft parts of conversation
That
chamberers have, or for I am declin’d
Into
the vale of years (yet that’s not much),
She’s
gone. I am abus’d, and my relief
Must
be to loathe her.
Desdêmona perde o lenço que
Otelo lhe dera. Emília pega o lenço e o entrega a Iago, sem saber o que ele
trama. Ele vai deixar o lenço no quarto de Cássio. “O Mouro já mudou com meu
veneno.” Otelo volta para falar com Iago, não tem mais paz: “Aquele que é
roubado, mas não procura o objeto, fica sem saber, e não foi roubado, afinal.”
Eu
continuaria feliz, se o general de campo,
os
soldados e todos, tivessem saboreado seu doce corpo,
desde
que eu nada soubesse.
I
had been happy, if the general camp,
Pioners
and all, had tasted her sweet body,
So
I had nothing known.
Otelo volta a reclamar provas,
tem dúvidas sobre tudo: “Vilão, tu tens que provar que minha amada é uma puta,
dá-me uma prova ocular! [...] Eu penso que minha esposa é honesta e penso que
não é. Penso que tu és justo e penso que não és. [...] Eu queria ser
satisfeito!”
Iago: “Como ficaria
satisfeito, meu senhor? Serias o supervisor, a boca enormemente aberta?
Observando-a ser coberta? Seria uma tediosa dificuldade trazê-los para tal
cena.” Otelo pede alguma prova válida. Iago diz que não lhe agrada a tarefa,
mas como já foi tão longe no caso, por sua tola honestidade e amor, conseguirá
a prova.
Iago conta, então, de uma
noite em que deitou com Cássio, para dormir. É um relato homoerótico. Sonhando,
Cássio pegou a mão de Iago, e falava “doce Desdêmona, doce criatura”, beijou
Iago com força, como se arrancasse beijos dos lábios de Iago, e ainda colocou a
perna sobre a coxa dele. Otelo fica puto, mas Iago contemporiza: ora, foi
apenas um sonho. Entretanto, Iago diz que viu o lenço de Desdêmona com Cássio.
Otelo pede sangue, sangue, sangue; ajoelha-se, Iago o acompanha e se ajoelha,
como um ritual de casamento. Otelo, por fim: “Dane-se, dane-se, lasciva
atrevida, belo demônio.”
Ato 3, Cena 4
Desdêmona ainda não perdeu a
esperança de convencer Otelo a aceitar Cássio de volta. Ela percebe que perdeu
o lenço. Desdêmona e Otelo discutem por causa de Cássio e do lenço. Otelo
conta, ou inventa, que o lenço é místico e trá-lá-lá, e foi tecido por “uma
sibila que observou, em vida, o sol percorrer duzentos círculos”.
Emília percebe o ciúme de
Otelo e explica os homens a Desdêmona:
Não
é um ano ou dois (de casamento) que nos mostra um homem:
eles
são nada além de estômagos e nós somos nada além de comida;
eles
nos devoram esfaimadamente, e quando estão satisfeitos
eles
nos arrotam.
’Tis
not a year or two shows us a man:
They
are all but stomachs, and we all but food;
They
eat us hungerly, and when they are full
They
belch us.
Otelo está furioso, Desdêmona
imagina que ele tenha mudado por causa de razões de governo, Emília insiste que é ciúme. Desdêmona: “Eu
nunca dei motivo.” E a sabedoria de Emília:
Mas
almas ciumentas não respondem dessa forma:
Elas
não precisam de motivo para o ciúme,
São
ciumentas porque são ciumentas. É um monstro
Gerado
por si mesmo, nascido de si mesmo.
But
jealious souls will not be answer’d so;
They
are not ever jealious for the cause,
But
jealious for they’re jealious. It is a monster
Begot
upon itself, born on itself.
Entra em cena a personagem Bianca,
descrita no início como uma “courtezan”, que atualmente se escreve “courtesan”,
que mantém um relacionamento com Cássio. No Cambridge Dictionary, o
termo significa “a woman, usually with a high social position, who in the past
had sexual relationships with rich or important men in exchange for money”. No Merriam-Webster,
temos: “a prostitute with a courtly, wealthy, or upper-class clientele”.
Não fica clara a posição de
Bianca no séquito de Otelo, tampouco como Bianca chegou a Chipre. Como havia
restrições a levar mulheres para as batalhas, ela não deveria ter ido nos
navios de Otelo. A não ser, talvez, sob a proteção de Cássio. Ou, ainda, Bianca
pode ser uma veneziana que mora em Chipre e é visitada eventualmente por
Cássio.
Bianca encontra o “amigo
Cássio” e reclama do tempo de separação, ela contava as horas: uma semana
separados, sete dias e sete noites, cento e sessenta e oito horas!, ela diz.
Cássio, “pardon me, Bianca” e dá a ela o lenço que encontrara em seu quarto.
Ato 4
Cena 1
Iago se diverte em cutucar a
ferida de Otelo. Ele imagina a possibilidade de uma mulher ceder um beijo, em
segredo, ficar nua na cama com um amigo, sem fazer nada, e tais coisas não
configurarem uma ofensa. Otelo discorda, pois isso é o diabo com suas
tentações. E o lenço que ela perdeu não lhe sai da cabeça. “Pelos céus, eu
teria muito prazer em esquecer o lenço. Mas isto vem sobre a minha memória,
como faz o corvo sobre a casa infectada, pressagiando mau agouro para todos.”
By
heaven, I would most gladly have forgot it.
Thou
saidst – Oh, it comes o'er my memory,
As
doth the raven o'er the infectious house,
Boding
to all – he had my handkerchief.
Não tenho conhecimento
suficiente, mas me parece que tal passagem de Shakespeare veio a se insinuar na
mente de Edgar Allan Poe (1809 – 1849) e, de forma voluntária ou sub-reptícia,
inspirou o célebre poema, no qual o corvo entra na casa sombria para nunca mais
sair:
Take
thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!”
Quoth
the Raven “Nevermore.”
Mais insinuações de Iago, e
Otelo convulsiona, Iago diz que é o segundo ataque de epilepsia. Quando Otelo
volta a si, Iago pergunta se feriu a cabeça. Otelo acha que é uma zombaria.
Iago nega, apenas gostaria que Otelo suportasse sua fortuna como um homem.
Otelo diz que “um homem chifrudo é um monstro e um tolo”, “a horned man’s a
monster and a beast”.
Iago:
Há muitos tolos, então, em uma
cidade populosa
E muitos monstros cidadãos.
There’s many a beast then in a
populous city,
And many a civil monster.
Iago pede que Otelo ouça a
conversa que vai ter com Cássio. Será uma conversa sobre Bianca, mas Iago faz
Otelo pensar que a conversa é sobre Desdêmona. Bianca, segundo Iago: “Uma
senhora que ao vender seus desejos, compra seu pão e roupas. É uma criatura que
adora Cássio. É a praga da puta, seduzir muitos e ser seduzida por um.”
Otelo escuta enquanto Cássio
fala de Bianca: “Pobre indecente, pobre desonesta, e penso que ela de fato me
ama. Casar com ela? O quê? Um cliente. Ela está convicta de que vai casar
comigo pelo seu próprio amor e ilusão, não por minhas promessas. Ela é só uma
outra doninha, uma doninha perfumada.” Entra Bianca, discute com Cássio e joga
o lenço no chão, Otelo vê o lenço. “Meu coração tornou-se uma pedra, bato nele
e ele fere minha mão.”
No, my heart is turn’d to stone; I strike it, and it
hurts my hand.
Otelo imagina envenenar
Desdêmona, mas Iago aconselha: “Não faças com veneno, estrangula-a na cama dela,
a mesma cama que ela contaminou.”
Do
it not with poison; strangle her in her bed, even the bed she hath
contaminated.
Por sua vez, Iago se
compromete a matar Cássio naquela mesma noite.
Desdêmona entra com nobres de
Veneza que trazem uma carta para Otelo ordenando a volta dele e passando o
comando de Chipre para Cássio. Ela se diz contente com a notícia e Otelo
descontrolado, bate em Desdêmona na frente de todos. Os nobres ficam
estarrecidos e decepcionados com o Mouro.
Ato 4, Cena 2
Otelo interroga Emília sobre a
esposa. Emília afirma que Desdêmona é honesta, casta e verdadeira. Otelo discute
com Desdêmona que se ajoelha: “eu compreendo a fúria em tuas palavras, mas não
compreendo as palavras. [...] Que pecado ignorado eu cometi?” Otelo: puta, erva
daninha, meretriz, puta astuciosa de Veneza.
Otelo:
Não
és uma puta?
Desdêmona:
Não,
sou uma cristã.
Se
preservar este vaso para o meu senhor
de
qualquer toque sujo e ilegal
significa
não ser uma puta, então não sou.
No, as I am a Christian.
If
to preserve this vessel for my lord
From
any other foul unlawful touch
Be
not to be a strumpet, I am none.
A palavra “vaso” (vessel), no
verso, é interessante. O vaso, recipiente, foi usado metaforicamente por
Desdêmona, significando corpo, mas também com conotação sexual (vagina, ânus).
Em Tessalonicenses 1, 4, 3-5, na versão da King James Bible (1611), Paulo
diz:
Vocês
devem se abster de fornicação. Cada um deve saber como dominar seu vaso com
santidade e honra, não na luxúria da concupiscência, como os gentios que não
conhecem Deus.
For
this is the will of God, even your sanctification, that ye should abstain from
fornication:
that
every one of you should know how to possess his vessel in sanctification and
honour;
not
in the lust of concupiscence, even as the gentiles which know not God.
Chama a atenção o uso da
palavra vessel com conotação sexual por Paulo, relacionada diretamente com a
fornicação e a concupiscência.
Desdêmona percebe a
aproximação da tragédia e pede a Emília que, naquela noite, coloque na cama os
lencóis do casamento. Desdêmona e Emília falam com Iago.: “O senhor a acusou de
ser uma puta, [...] chamou-a de puta, nem um mendigo bêbado usaria um termo
assim com a sua meretriz. [...] Para que chamar de puta. Com quem ela andou?
Onde foi, como, quando e que aparência tem? Algum biltre vilão manipulou o
Mouro, um biltre torpe e imundo, um tipo desprezível.”
Desdêmona:
Eu
sou aquele nome, Iago?
Iago:
Que
nome, cara senhora?
Desdêmona:
Aquele
que meu senhor disse que eu era.
Emília:
Ele
a chamou de puta. Nem um mendigo bêbado
Teria
usado tais termos com sua prostituta.
Emília diz que algum vilão
está influenciando o Mouro. Iago diz que não existe tal pessoa.
Desdêmona:
Se
tal pessoa existe, que os céus o perdoem.
Emília:
Uma
forca o perdoe, isso sim, e o inferno corroa seus ossos!
Por
que chamá-la de puta? Com quem ela esteve?
Em
que lugar? A que horas? De que forma? Qual a probabilidade?
O
Mouro foi influenciado por algum patife desonesto,
algum
notório vilão, algum companheiro indecente. [...]
A halter pardon him! and hell
gnaw his bones!
Why
should he call her whore? Who keeps her company?
What
place? what time? what form? what likelihood?
The
Moor’s abus’d by some most villainous knave,
Some
base notorious knave, some scurvy fellow. [...]
Iago convence o tolo Rodrigo a
matar Cássio.
Ato 4, Cena 3
Desdêmona se prepara para
dormir, morrer talvez, “se eu morrer antes de ti Emília, por favor, envolve-me
com um destes mesmos lençóis”, os lençóis nupciais. Ela canta uma canção triste
que uma moça apaixonada morreu cantando, a Canção do Salgueiro. A cena faz
pensar em Ofélia, de Hamlet, que, em seu desespero e loucura, cantava canções
de amor e morte pelo castelo. Desdêmona e Emília discutem a traição das
mulheres. A fala de Emília é relevante:
Mas
eu penso que é culpa dos maridos
se
as esposas caem. Eles faltam com seus deveres
quando
colocam nossos tesouros em colos estranhos;
ou
explodem em ciúmes irritados,
impondo-nos
restrições; ou nos batem,
ou
limitam nossos haveres por despeito:
porque
nós temos galhas; e embora tenhamos alguma graça,
temos
também alguma vingança. Deixem os maridos saberem
que
suas esposas têm juízo como eles; elas vêem e cheiram,
e
têm paladar para doce e azedo,
assim
como os maridos. O que faz
com
que eles nos troquem por outras? É diversão?
Penso
que sim. É alimentado por afeição?
Penso
que sim. É fraqueza que causa tais erros?
Sim,
também. E nós não temos afeições,
desejos
de diversão, e fraquezas, como os homens?
Então,
que eles nos tratem bem; senão, saibam
que
nossos erros são aprendizes dos erros deles.
But
I do think it is their husbands’ faults
If
wives do fall. Say that they slack their duties,
And
pour our treasures into foreign laps;
Or
else break out in peevish jealousies,
Throwing
restraint upon us; or say they strike us,
Or
scant our former having in despite:
Why,
we have galls; and though we have some grace,
Yet
have we some revenge. Let husbands know
Their
wives have sense like them; they see, and smell,
And
have their palates both for sweet and sour,
As
husbands have. What is it that they do
When
they change us for others? Is it sport?
I
think it is. And doth affection breed it?
I
think it doth. Is’t frailty that thus errs?
It
is so too. And have not we affections,
Desires
for sport, and frailty, as men have?
Then
let them use us well; else let them know,
The
ills we do, their ills instruct us so.
Ato 5
Cena 1
Na escuridão, Rodrigo e Iago
atacam Cássio, que fica ferido, mas consegue ferir Rodrigo. Iago volta como se
viesse socorrer Cássio e mata Rodrigo. Otelo pensa que Cássio morreu pelas mãos
de Iago:
É
Cássio! – Oh corajoso Iago, honesto e justo,
Fizeste um nobre juízo do erro de
teu amigo!
Tu me ensinaste. Querida, teu
amado jaz morto,
E teu destino funesto se
aproxima. Puta, estou indo.
Afasta de meu coração teus
feitiços, teus olhos, tudo maculado;
Teu leito, marcado pela luxúria, pelo
sangue da luxúria será manchado.
’Tis
he! – O brave Iago, honest and just,
That
hast such noble sense of thy friend’s wrong!
Thou
teachest me. Minion, your dear lies dead,
And
your unblest fate hies. Strumpet, I come.
Forth
of my heart those charms, thine eyes, are blotted;
Thy
bed, lust-stain’d, shall with lust’s blood be spotted.
Ato 5, Cena 2
Otelo entra no quarto onde Desdêmona
dorme. Otelo declama um solilóquio de vinte e dois versos, e começa saudando a
beleza da moça. Mas um verso me chama a atenção:
Yet she must die, else she’ll betray more men.
No entanto, ela deve morrer, senão trairá outros
homens.
Ora, Otelo quer fazer um
serviço à comunidade masculina, livrando outros homens de possíveis traições? Otelo
não suporta a ideia de uma separação civilizada que tornará a ex-esposa
disponível para outros homens, aos quais, naturalmente trairá, dada a natureza
dela, como ele a vê. Então, ridiculamente, Otelo se justifica como libertador
antecipado do possível sofrimento dos futuros cornos. Ela não vai morrer porque
o traiu, mas porque trairá e levará sofrimento a outros.
Desdêmona adormecida, Otelo a beija
diversas vezes: “Fica assim quando estiveres morta, e eu te matarei e te amarei
depois”. Esta sugestão necrófila de Otelo não é incomum na literatura, tampouco
no desejo masculino: o desejo de possuir uma mulher que dorme, ou que faz de
conta que dorme, ou que está bêbada e impossibilitada de reagir. Seria, talvez,
um desejo de ter uma mulher absolutamente dócil, ou, quem sabe, um desejo de
estupro, desejo de possuir um manequim, uma boneca, um robô. Na literatura, o
famoso romance de Yasunari Kawabata, A casa das belas adormecidas, fala
de homens que pagam para contemplar mulheres que dormem profundamente sob o
efeito de narcóticos. Em Proust, o narrador de A prisioneira tem “amor
carnal” com Albertine enquanto ela dorme – ou finge dormir:
Então,
sentindo que ela estava em pleno sono e que eu não iria chocar-me em escolhos
de consciência recobertos agora pela preamar do sono profundo, deliberadamente
galgava sem fazer ruído o leito, deitava-me a seu lado, tomava-lhe a cintura
com um dos braços, pousava os meus lábios no seu rosto, no seu coração, depois
em todas as partes de seu corpo a minha mão livre, que era então, como as
pérolas, levantada também pela respiração de Albertine; eu mesmo me sentia, de
leve, movido pelo seu movimento regular: estava embarcado no sono de Albertine.
Às vezes me propiciava ele um prazer menos puro. Não havia para isso
necessidade de nenhum movimento, bastava deixar minha perna encostada à dela,
como um remo largado ao qual se imprime de vez em quando uma ligeira oscilação
semelhante ao bater intermitente de asa nas aves que dormem no ar. [...] O
ruído de sua respiração, ao se tornar mais forte, podia dar a ilusão do prazer
ofegante e, quando o meu chegava ao fim, eu podia beijá-la sem lhe interromper
o sono.
Desdêmona acorda: “Tenho medo
de ti, teus olhos giram, sinto medo sem saber o motivo, nunca te ofendi e nunca
amei Cássio”. Sobre o malfadado lenço, Desdêmona diz que não o deu a Cássio. Otelo
a sufoca, mas ela não morre de imediato. Emília entra.
Desdêmona:
Morro
uma morte sem culpa.
A
guiltless death I die.
[...]
Emília:
Ela é mais que um anjo
e tu és o mais negro demônio!
O, the more angel she,
And you the blacker devil!
[...]
Otelo:
Cássio montou sobre ela; pergunta a teu marido.
Eu fui condenado além de toda profundeza do inferno
mas procedi por motivos justos
nesta ação extrema. Teu marido sabe de tudo.
Cassio did top her; ask thy husband else.
O, I were damn’d beneath all depth in hell
But that I did proceed upon just grounds
To this extremity. Thy husband knew it all.
Emília rebate as acusações
contra Desdêmona, pois Iago, diz ela, é um mentiroso, e pede socorro. Entram os
nobres e Iago. Emília: “Disseste que ela era falsa?” Iago: “Eu disse o que pensava,
e nada mais do que ele achava adequado e verdadeiro”. Otelo tomba na cama.
Emília: “Deita e ruge, pois mataste a inocente mais doce que jamais abriu os
olhos”. Otelo ainda fala do lenço. Emília: “Mouro tolo” e conta tudo sobre o
lenço. Iago apunhala Emília e foge.
A fala de Otelo: “Quem pode controlar
o seu destino?” E, dirigindo-se ao corpo de Desdêmona:
Agora,
como tu pareces agora? Moça desventurada,
pálida
como tuas roupas! Quando nos encontrarmos no juízo,
este
teu olhar arremessará minha alma do paraíso
e
demônios vão agarrá-la. Fria, fria, minha garota?
Now
– how dost thou look now? O ill-starr’d wench,
Pale
as thy smock! when we shall meet at compt,
This
look of thine will hurl my soul from heaven,
And
fiends will snatch at it. Cold, cold, my girl?
Trazem Cássio ferido e Iago prisioneiro.
Otelo: “Se és um demônio, não posso te matar”. Fere Iago, mas não consegue
matá-lo. Otelo quer saber o motivo das armadilhas de Iago: “Perguntem àquele
semidemônio por que ele enredou minha alma e corpo.”
Iago permanece mistério:
Não
me perguntem nada. O que vocês sabem, vocês sabem.
De
agora em diante, não mais falarei palavra.
Demand
me nothing; what you know, you know:
From
this time forth I never will speak word.
Revela-se toda a trama, a
desonra de Cássio, Rodrigo, o lenço, tudo. Otelo se preocupa com a posteridade,
como se fosse possível controlar a forma de ser visto no futuro:
Falem
de mim como sou; nada diminuam,
nem
declarem algo com malícia. Devem falar
de
alguém que amou sem sabedoria, mas imensamente;
Speak
of me as I am; nothing extenuate,
Nor
set down aught in malice. Then must you speak
Of
one that lov’d not wisely but too well;
Otelo se mata da maneira como
matou um “turco aturbantado e perverso” em Aleppo. Cássio fica no governo da
ilha. Quanto a Iago, cabe a Cássio fazer cumprir a pena do “vilão infernal, o
tempo, o lugar, as torturas”.
Final da peça. Penso que o
leitor pode ter dúvidas se Iago foi realmente punido. Nunca saberemos. Iago é
manhoso, as leis são manhosas, ele está em Chipre, sob o governo de Cássio, mas
poderia ser enviado de volta a Veneza e julgado. Imagino, ainda, que Iago possa
convencer os carcereiros e fugir. Triunfo do mal?
Para encerrar, segue o Credo
de Iago na ópera de Verdi.
Credo
de Iago
Arrigo
Boito (libreto da ópera Otelo de Giuseppe Verdi)
Creio
em um Deus cruel que me criou
À
sua imagem, e que em fúria nomeio.
Da
vileza de um germe e de um átomo
Vil
nasci,
Sou
celerado
Porque
sou homem:
E
sinto o lodo originário em mim
E
creio o homem joguete da iníqua sorte
Do
germe do berço
Ao
verme do jazigo.
Vem,
depois de tanto escárnio, a Morte.
E
depois? A Morte e o Nada.