Herdeiros

Todos os dias, o desenhista faz um desenho novo. Todos os dias, o pintor pinta uma nova tela. Eles trabalham todos os dias do ano. Trezentos e sessenta e cinco desenhos e telas para serem guardados ao final de cada ano. Outro pintor e outro desenhista trabalham cinco dias por semana. Como existem cinquenta e dois finais de semana, ou seja, cento e quatro dias não úteis, este pintor e este desenhista acumulam duzentos e sessenta e um desenhos e telas no ano. Para guardar. Excluídos os poucos que foram vendidos.

O desenhista vende um desenho por mês, por cem moedas. Passa fome. Mas o pai e a mãe, ou um ou outro, complementam a renda do desenhista. O pintor vende uma tela por mês, por mil moedas. Passa fome, não dá para sustentar uma família, mal e mal ele subsiste.

O escritor escreve três livros por ano. Não consegue publicar nenhum. Publica ele mesmo. O escritor faz outro trabalho para ganhar o de comer; tradução, ensino, Uber. Gasta, do pouco que ganha, para autopublicar seu um livro por ano. O livro é vendido por cinquenta reais, valor que não paga o custo da publicação. As visitas que o escritor recebe em sua casa ganham um livro de presente. O livro vai direto para a poeira eterna das estantes na casa do presenteado, ou para a mesinha da recepção do condomínio, ou para o porteiro do prédio. O escritor espera que alguém, algum dia, descubra a qualidade de seus livros e o convide para uma grande editora.

O desenhista vê amarelar o papel dos desenhos antigos. Até mofo. O apartamento é mínimo, não há mais espaço para socar tantos desenhos. Periodicamente, o desenhista seleciona desenhos piores e queima. Amigos ganham desenhos já emoldurados que serão dados à sogra dos amigos ou guardados na garagem ou no quarto de despejos. O pintor vê o mofo se instalar no verso das telas, a tinta craquelar e esmaecer. Queima algumas telas.

O pintor morre um dia. O desenhista morre um dia. Os herdeiros – herdeiros de porra nenhuma, herdeiros só no nome – entram na casa vazia, separam o que presta, copos e pratos e alguma cadeira e poltrona, jogam o resto no lixo. O escritor morre um dia. Ninguém sabe a senha do computador. O sobrinho que escolheu para si o computador bacana manda o técnico formatar o disco do computador. Nem precisou queimar as centenas de milhares de páginas acumuladas. A biblioteca do escritor, pequena até, por falta de espaço, foi vendida por quilo no sebo, inclusive os livros autopublicados.